O boxeador que achava ser um esgrimista

Autor: Daniel Lucrédio

Glória!

Não, não é um cântico de louvor, não acho que eu precise. Muito do que vou relatar aqui é mérito próprio, ainda que eu mesmo, enquanto ser existente, tenha sido obra de criação de alguém, ou algo, ou outrem.

Também não é Glória Menezes ou Pires ou Estefan (esta é desnecessário reforçar, pois o leitor, astuto, percebeu que usei o acento agudo, inútil em Cuba, país da cantora).

É a mais pura glória da vitória. Uma vitória maiúscula, cujo substantivo comum não faz jus à substância. Talvez eu devesse chamá-la de Vitória. Não a Beckham nem a Justice, pois estas, o leitor, astuto, sabe que não usam acentos em cima de seus ós, sendo filhas da língua inglesa. Língua, um substantivo comum, que tem sim acento agudo, em uma ironia linguística coincidental. Ou uma coincidência irônica linguacional.

Divaguei.

Mas não peço desculpas! A expectativa é a mãe da grandiosidade que torna os relatórios mais memoráveis. E o que está prestes a ler não é apenas memorável. É épico! É memorável e épico. Inesquecível. Ou melhor: não-esquecível, nem por mim, nem por aqueles que esquecem de vestir as próprias calças.

Aliás, onde estão minhas calças? Olho para baixo, não estou usando calças. Nem camisa.

Estranho.

Como qualquer relato épico que se preza, vou dividi-lo em atos. Três, como se espera de um relato épico que se preza. E antes dos atos em si, faço um alerta: cada ato contém, em si, para si e por si, um pensamento. São, portanto, atos pensamênticos.

Veja, a luta não foi fácil. Meu rival era habilidoso, inteligente e corajoso. Se eu apenas agisse sem pensar, certamente estaria agora derrotado, caído, ensanguentado, sem falar coisa com coisa.

Há algo em meu nariz. Líquido pegajoso.

Meu cérebro também é pegajoso. Agarra-se às ideias, gruda-se nelas, justamente nos momentos em que deveriam se esvair.

Digo isso pois eu não apenas agi. Eu pensei. Pensei antes de agir. Pensei durante a ação. E penso, agora, pós-ação. Foram meu pensamento e raciocínio, nascidos do meu intelecto, que produziram três descobertas fundamentais. Três princípios naturais: um astronômico, um físico e um fenomenal. Este último, por sinal, não ganhou o nome de “fenômeno” à toa. Aguarde-o, pois ele chegará em seu respectivo ato.

E para que o leitor não se confunda, vou nomear cada ato com o pensamento a ele associado. Juntos, os três atos formarão o todo, cujo nome é: Vitória Beckham Justice Menezes Pires Estefan.

Acho que esse deve ser o título. Ou o nome da minha filha.

Eu tenho uma filha? Não lembro.

Ato I - O Cinto, a Pérola e a Corda

Peço desculpas pelo spoiler óbvio e explícito contido no título deste ato. O leitor, astuto, certamente já sabe tudo o que aconteceu só de ler este título tão bem descritivo. Não importa, vou seguir com o relato do ato mesmo assim.

A luta começou.

Meu rival me estudava. Tentava prever meus movimentos.

Tolo.

Era eu quem ditava os movimentos para fazê-lo prever o que eu faria a seguir. E eu fazia exatamente o que ele achava que eu ia fazer, apenas para enganá-lo, dando a entender que ele iria prever meus movimentos, quando na verdade estava apenas seguindo o que eu previa que ele ia prever. Controle mental. Eu controlava a nós dois, simultaneamente, sem que ele percebesse. Eu percebia, é claro.

Pois bem, certa hora achei que era hora de golpeá-lo. Eu precisava vencer a luta, afinal de contas. O problema é que ele era muito rápido. Na verdade, eu é que era muito rápido, como acabei de demonstrar inequivocamente.

Eu não conseguia atingi-lo, por mais que tentasse, por mais que lutasse, por mais que me esforçasse. Ele era como o ar, esvaindo-se e fluindo para perto, inalcançável.

A resposta, como o título já entregou, estava nas estrelas.

Sim, as estrelas! Três delas, para falar a verdade, as que nomeiam este capítulo: Mintaka, conhecida como “o Cinto”; Alnilan, conhecida como “a Pérola”; e Alnitak, conhecida como “a Corda”. As três Marias, constelação tão conhecida por essas bandas. Aliás, acho que ela é mais conhecida do que todas as bandas. Exceto os Beatles. Nada é mais famoso do que os Beatles. Nem mesmo Jesus, filho de Maria, uma das três.

Divaguei.

Elas apareceram para mim, do nada, as três Marias. Não as Marias bíblicas. Quero dizer, sim, são sim as três Marias da Bíblia, mas apenas sua projeção astral. No sentido astronômico, é claro, e não no sentido astrológico.

Caso esteja se sentindo confuso, não se preocupe, foi de propósito. Eu deveria ter falado em “Cinturão de Órion”, pois é um nome mais apropriado para uma constelação de estrelas. É mais grego, ou gregoriano, sei lá.

Seja qual for o nome que preferir, as tais das três estrelas apareceram para mim. Três estrelas, em um arco periférico que interpolava uma curva perfeita, assimétrica ascendente e, por que não dizer, descendente, também? Somos todos descendentes dos gregos e católicos apostólicos romanos gregorianos, não?

Ao ver as estrelas, logo percebi o que elas representavam: os ombros e cabeça do meu rival!

Sim, percebi aquele padrão esotérico, em forma de pontos luminosos que mimetizavam a estrutura músculo-esquelética: clavículas, acrômios e úmeros sob seus respectivos deltóides. E a cabeça no centro, crânio pensador, cérebro-ator que comandava as gigantescas bolas de gás.

E eu soube imediatamente o que fazer. Ouvi, clara e cristalina, a voz do meu intelecto, gritando a plenos pulmões mentais, indicando a direção em que eu deveria golpear:

— Direita, caralho!

Então segurei meu florete à frente do meu corpo, como mandam os manuais de esgrima.

Não tinha contado antes? Ih! Perdão pelo lapso narrativo. Estava empolgado e me adiantei tanto que acabei atrasando. Então digo agora, antes que seja tarde demais: a luta épica foi um embate na arte da esgrima! Espadas, lâminas afiadas, cortes precisos e sangue, o resultado fatal.

Estava eu, portanto, segurando meu florete — um tipo de espada, caso não tenha se atentado — à frente do meu corpo. Bem, não exatamente à frente, talvez alguns graus, minutos e segundos rotacionados à direita em relação ao eixo que transpassa meu centro de gravidade.

Apontei a ponteira do florete para Alnitak, e movi o braço naquela direção.

Um golpe certeiro!

Um ponto sorrateiro!

Um terço da Vitória estava garantido. Fim do primeiro ato.

Ato II - Referencial orbital gravitacional de Einstein

Refiro-me a referencial aqui por motivos óbvios. Antes mesmo de Einstein, já se sabia que tudo era relativo. Até mesmo as relações menos relevantes. Em uma luta, tudo é relativo mesmo. Uma hora, você acha que está ganhando, mas pode, na verdade, estar perdendo.

Era o meu caso, acredita?

Eu tinha estocado o ombro-estrela de meu rival e ganhado um ponto, mas sentia que estava perdendo a luta. Ele também sentiu, ah, se sentiu! Deu dois passos para trás e mudou de estratégia. E eu, claro, mudei a minha.

E aí as coisas mudaram de referencial.

Ele passou a gingar, rebolar com molejo e balançar o corpo para lá e para cá, para frente e para trás. Eu já sabia que ele faria isso, claro, mas como estava tão concentrado no meu próprio molejo, acabei me confundindo. Achei que ele era eu. Me perdi.

Por sorte, só durou poucos segundos. Logo o segundo ato pensamêntico me atingiu com tudo.

E o que eu percebi, quando fui golpeado por essa nova torrente mental direta na cara? Que até poderia ganhar alguns pontos utilizando fundamentação astronômica; as estrelas podiam me guiar até um determinado ponto, tal qual faziam os navegadores portugueses; mas para vencer a luta, eu precisaria apelar à mãe da astronomia. Precisaria subir no ombro dos gigantes da Física.

Sim, sim. Eu percebi que a Física, substantivo próprio, matéria elementar e elemental, me daria o necessário para superar o novo e inesperado desafio que se apresentava à minha frente.

E quem melhor do que Einstein, o pai-avô da Física, que subiu nos ombros de Órion, para me dar a chave da vitória?

Referencial, meu caro. Referencial.

Veja, na física referencialística (que alguns chamam de relativística), tudo é relativo. Você acha que está parado agora? É, agora mesmo! Está parado? Não, não está. A Terra está se movendo.

Sim, o planeta, substantivo comum que significa “errante” ou “em movimento”, está — pasme — em movimento. E a Terra, substantivo próprio que herda todas as características do comum, também o está, obviamente.

Mas em uma luta, não é só a Terra que está em movimento. Lembra que eu disse que meu rival estava se molejando todo? E que por isso eu não conseguia atingi-lo? E que por isso eu sentia que estava perdendo a luta?

Pois bem, o ato pensamêntico número dois foi justamente o de mudar meu referencial. Comecei a girar de modo a sincronizar minha rotação com a da arena ao meu redor, que por sua vez, sincronizava-se com o movimento do planeta Terra. Juntos, eu, a arena e o planeta Terra, nós três, atingimos um patamar teórico e giroscópico inalcançável.

Pobre rival, não pode fazer nada exceto acusar o segundo golpe.

Dois a zero.

Fim do segundo ato.

Ato III - O fenômeno dos transportes

Sou um fenômeno desde que nasci. Um fenômeno da natureza física e biológica. Você também é, leitor, você também é. Meu rival também era, mas nessa disputa de fenomenologia, eu definitivamente estava na frente. Portanto, tal qual a lebre em sua disputada corrida contra a tartaruga, permiti-me um momento de descanso, sabendo que meu rival estava a léguas de distância.

Foi até bom, pois ele balançava, o pobre homem. Parecia vir para cima de mim, mas também parecia ir para longe de mim. Parecia uma onda. Parecia…

Uma onda! De líquido viscoso e pegajoso. Propriedades físicas dos fluidos mecânicos. Coeficientes diversos que ditavam a forma e o formato daquela onda.

Fui uma lebre tola. Não sabia que a tartaruga podia chegar a qualquer momento?

A Vitória estava perto, sentada na primeira fileira. Riu para mim, mandou até um beijinho. Ela era ruiva, e usava um batom vermelho bem sedutor. Me perdi naqueles lábios, e com isso, quase perdi a luta.

Mas ignorei a Vitória, pois eu queria a Vitória. A outra, não a ruiva.

O terceiro ato pensamêntico me atingiu como uma onda. Molhou meu rosto, meus olhos, meus cabelos, o meu nariz, meu pescoço, meu tórax e o meu bumbum, e também o fazedor de xixi. Onde foi que já ouvi isso antes? Acho que foi um rato que cantava enquanto tomava banho.

Acho que eu preciso de um banho. Estou todo melecado, nem consigo respirar.

Divaguei.

A onda me atingiu como um ato pensamêntico. Dessa vez, eu percebi o que faltava: ainda no ramo da física, mas agora entrando na engenharia, terceira porta virando o corredor, à esquerda.

Veja, líquidos fluem segundo uma lógica líquida. Não parece, mas há equações que descrevem seus movimentos fluido-mecânicos. Mecânica dos fluidos, fenômenos do transporte de massa.

Sim, eu precisava de um fenômeno natural para acabar de vez com aquela luta. Precisava transportar a massa do meu florete diretamente para o peito do meu oponente. E esse transporte precisava ser fluido, não-direto, não-mexido, sem gelo nem uísque.

Os fluidos, caso não saiba, fluem como placas planas paralelas infinitas. Imagine uma placa bem fininha. Parada. Agora imagine outra, em cima dela, deslizando devagarzinho. Também fininha. Agora outra, menos devagarzinho. E outra, e outra. Quando você vê, já não são mais placas, nem planas nem paralelas, e sim tubos, vórtices em um turbilhão caótico de líquidos e gases.

Ah, não posso esquecer da pressão! Quanto maior o diâmetro de um cano, maior a pressão, para manter a vazão constante. E ali, no calor da luta, o diâmetro — portanto a pressão — somente fazia crescer.

Sem demora, e seguindo os diferenciais das equações, movi meu corpo para um lado, como uma onda, e meu braço na direção contrária, como uma placa plana paralela, até arrancar do peito do meu rival o ponto decisivo.

O ponto da Vitória.

Olhei para a plateia. A ruiva estava ali. Ela não me mandou um beijinho. Ficou de boca aberta, com as mãos no peito, emocionada.

Tentei piscar para ela, mas meus olhos não se mexiam.

Estranho.

Não importava, pois eu tinha acabado de conquistar três donzelas: Vitória, Maria e Glória. Todas minhas, comemorando os três pontos, resultantes dos três atos pensamênticos.

Posso até ver meu troféu. Vai ser uma miniatura de um homenzinho empunhando uma espada. Folheada a ouro. Na base, vai ter uma plaquinha dourada onde vai estar escrito: “O esgrimista que venceu seu rival com a força de seu pensamento.”

Fecho os olhos, sem fechá-los. Tudo ficou escuro. Só restam três estrelas, brilhando para mim:

Vitória, Maria e Glória!

***

— Nocaute! Fim de luta! E que luta, meus amigos. O que achou do soco final, Galvão?

— O desafiante caiu como uma tábua. Mas também, ele já estava visivelmente desnorteado. Vamos acompanhar no replay, Cléber?

— Vamos.

— Você, que está sintonizando agora no Canal do Boxe, não, não está vendo errado! A luta acaba de terminar no primeiro round, com nocaute. A disputa pelo cinturão dos meio-médios terminou com vitória do atual campeão em três socos!

— É isso aí, Galvão. O campeão precisou dar apenas três socos, mas que socos, não?

— Três marretadas, isso sim! No começo, os dois boxeadores se estudaram bastante. Muita movimentação e jogo de pernas. E o desafiante até que acertou alguns golpes, mas nessa hora, humm… olha aí, foi agora! Nessa hora, esse soco cruzado aí, parece que mudou tudo, não é, Cléber?

— Sem dúvida, Galvão. O treinador dele até gritou um “Direita” e um palavrão, mas o desafiante não conseguiu esquivar a tempo.

— Você diria que ele viu estrelas nessa hora, Cléber?

— Com certeza! Ele viu estrelas, viu cometas, viu asteróides, viu de tudo, hahaha!

— E o que achou da mudança de estratégia que o desafiante adotou depois disso?

— Eu sinceramente não entendi, Galvão! Ele ficou com uma mão na cintura e outra esticada para a frente. Eu nunca vi ninguém lutar boxe desse jeito. Parecia que estava lutando outra modalidade, sei lá.

— E aí veio o segundo golpe. Vamos acompanhar no replay… olhaí. Um direto. Deve ter doído, não?

— Ah, doeu. Nessa hora ele começou a girar, olha! Parecia uma bailarina, completamente desnorteado, coitado.

— Eu achei que ele ia cair, mas ele ficou girando, girando… Aliás, o juiz deveria ter encerrado o combate ali ou não? Qual sua opinião, Cléber?

— Deveria ter encerrado, com certeza. Não havia mais condições de luta. O desafiante estava com o rosto todo ensanguentado, não devia estar enxergando mais nada.

— Pois é, mas a regra é clara. A luta só termina quando acaba, não é mesmo? E acabou com o terceiro soco, um gancho, direto no queixo. Espirrou suor e sangue por todo lado! Aí acabou, né? O rapaz ficou paralisado no chão, olhando pro nada.

— É, vamos rezar para que não tenha acontecido nada de grave.

— Com certeza. E vamos encerrando por aqui. Muito obrigado pela sua audiência, querido telespectador. Até a próxima!



Fim



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