A arte do caçador

Autor: Daniel Lucrédio

São Miguel do Vale, 26 de maio de 1861

— Vá embora! — O grito se fez ouvir por trás da grossa folha de madeira.

Olhou para a porta fechada por alguns instantes. Uma tênue luz amarelada escapava por baixo. Devia ser uma lamparina, ou uma lareira aquecida, o que seria ainda melhor. Apertou o casaco de couro junto ao corpo e puxou a lapela para cima, tentando proteger o pescoço e as orelhas. A chuva era fraca e não chegava a molhar sua pele, pois o casaco era grosso e o chapéu cobria toda sua cabeça. Mas o vento castigava. Cada pequena fresta por onde ele entrava rapidamente produzia arrepios que traziam e irradiavam o frio até os ossos.

Batendo mais duas vezes na madeira, disse:

— Está frio aqui fora, não pode ao menos permitir que eu me aqueça um pouco junto ao fogo? — Sua voz soou lamuriosa, irritantemente aguda.

— Tem uma fogueira na praça! Por que não se joga lá?

— Ora, vá para o inferno, então! Eu já disse que vim aqui para ajudar! Bando de ingratos! — Deu um chute na madeira. — Eu devia era ir embora daqui!

— Já devia ter ido!

Deu mais um chute antes de se virar de costas e descer os dois degraus que levavam à rua. Acabou usando mais força do que deveria, o que deixou seu pé dolorido, tornando ainda mais difícil a tarefa de não escorregar nos paralelepípedos molhados que cobriam a rua pequena e íngreme por onde caminhava.

Já tinha perdido a conta de quantas portas fechadas teve que encarar desde que chegou ali, duas horas atrás. A carruagem quebrou no meio do caminho, então precisou fazer o restante da viagem a pé, debaixo de chuva e em cima de muita lama. Devido ao atraso, chegou muito mais tarde do que queria. Em parte, era isso o que fazia as pessoas serem tão hostis com ele. Nessa época do ano quase ninguém saía de casa depois que anoitecia, então era esperado que encontrasse alguma dificuldade. Mas dessa vez havia algo a mais. A carta que tinha recebido falava de rumores mais assustadores do que de costume, e a já enfraquecida hospitalidade noturna dava lugar ao medo exacerbado.

Desanimado, resolveu escutar o conselho mal-educado que tinha acabado de ouvir. Não se jogaria na fogueira, é claro, mas pelo menos poderia tentar se aquecer um pouco e combater o castigo do vento. O difícil seria suportar o mau cheiro. Mas não tinha mais opções. Já tinha percorrido quase todas as casas que encontrou, e as que faltavam estavam tão cheias de correntes e cadeados quanto as outras. Seria perda de tempo.

Sentiu o odor assim que avistou as labaredas subindo aos céus. Eram tão altas e brilhantes que pareciam iluminar a parte de baixo das nuvens que cobriam o pequeno vilarejo. As fracas luzes das lamparinas a óleo no entorno da pequena praça sequer eram visíveis perto da luz produzida pela enorme fogueira. O fogo não era natural, pois tinha sido aceso com magia, e estava consumindo restos de criaturas fantásticas que habitavam as profundezas da terra. Era por isso que ardia tão forte e por um tempo tão longo. E era isso que produzia o cheiro insuportável que lhe enchia as narinas. Mas pelo menos era quente.

Caminhou entre as cercas de ferro retorcidas e os bancos de pedra quebrados e chegou o mais perto do fogo que conseguia aguentar. Cobriu o nariz e a boca com um lenço e permaneceu em pé, apreciando o calor e admirando, hipnotizado, os tons de amarelo e vermelho que crepitavam à sua frente. Ainda era possível ver os restos de algumas das criaturas. Havia uma cabeça vermelha, com um nariz bovino alongado e com um chifre quebrado. As órbitas estavam vazias. Um longo bico de corvo de quase um metro de comprimento pendia de um amontoado de penas queimadas. E metade de um corpo nu, já quase todo carbonizado, lembrava a silhueta de uma mulher, exceto pela mandíbula larga e pelos quatro caninos enormes que saíam da boca.

Já havia visto muitas dessas criaturas antes, é claro. Afinal era um caçador, e seu trabalho era matá-las para proteger as pessoas. Mas vê-las assim, sem vida, sempre lhe trazia um mal-estar profundo. Uma náusea inexplicável e um sentimento de repulsa preenchiam todo o seu corpo, e não era apenas por causa do cheiro. Tinha mais a ver com o fato de que estavam sendo roubadas de sua existência de forma sistemática. As caçadas eram uma questão de sobrevivência, é claro. Ou nós ou eles, como lhe diziam sempre. Mas não caía bem no estômago, mesmo assim.

Enquanto pensava sobre o que faria a seguir, ouviu vozes. Vinham do norte, da direção da floresta.

“Caçadores!” — pensou.

Não demorou até que os primeiros aparecessem. A princípio não perceberam que havia alguém ali. Davam risada e conversavam animadamente enquanto se aproximavam da fogueira. Eles não pareciam se incomodar com o cheiro, pois não estavam protegendo seus narizes ou fazendo caras feias. Mas assim que um deles o avistou, o clima mudou.

— Cuidado! Ali, ao lado da fogueira!

Imediatamente, os homens correram até ele e fizeram um semicírculo, apontando suas armas. A maioria estava empunhando uma pistola, mas alguns bacamartes e suas bocas largas miravam diretamente em seus olhos. Ergueu uma das mãos, pois não queria tirar o lenço do nariz.

— Atire! Vamos! — Era uma voz jovem. “Jovem demais” — pensou.

— Não, calma! — Ele ergueu a outra mão, levando o lenço para cima e deixando o nariz livre para inalar o odor fétido. — Eu sou um caçador também, não atirem!

— Fique com as duas mãos para cima!

— Está bem! Me desculpem, é só que… o mau cheiro…

— Vamos matá-lo!

— Calma, Ignácio! — disse uma voz mais calma. — Ninguém atira… ainda!

Olhou para os rostos assustados à sua frente. Havia cerca de quinze homens, todos usando casacos pretos ou marrons e chapéus pontudos cobrindo as cabeças. A maioria aparentava ter cinquenta ou sessenta anos, a julgar pelas rugas ao redor da boca e olhos e pelos fios grisalhos em suas barbas e bigodes. Mas havia alguns jovens entre eles. O jovem chamado Ignácio parecia ser o mais assustado de todos.

— Qual é o seu nome, forasteiro? — perguntou um homem, que parecia estar mais calmo do que os demais. Um de seus olhos não tinha íris ou pupila. Era uma esfera branca de vidro que refletia as chamas da fogueira. Seu outro olho, que tinha um tom verde-escuro, o desafiava a responder a pergunta.

— Meu nome é Lionel! Eu recebi essa carta…

Começou a abaixar uma das mãos em direção ao bolso interno do casaco, mas foi interrompido pelo estampido da bala que passou zunindo perto de seu ouvido.

— Não se mexa! — gritou o homem, e sua voz não dava margem para questionamentos.

Tremendo, Lionel levou a mão de volta ao lugar onde estava. Nesse momento, ele ouviu um grunhido. Uma criatura se mexia atrás dos homens. Era um humanóide, pequeno e franzino, com orelhas grandes e nariz comprido. Sua pele verde estava coberta por sangue escuro e pegajoso, e suas mãos e pés estavam amarrados firmemente à sua frente. Apesar da aparência frágil, sabia que era um demônio sorrateiro e traiçoeiro, que rasgaria o pescoço de qualquer pessoa que passasse por perto, fincando seus dentes afiados e garras pontudas sem demonstrar piedade.

— Perdoe minha desconfiança, forasteiro! — ele continuou, enquanto recarregava a pistola. — Que tipo de caçador não consegue aguentar o cheiro da sua caça ardendo no fogo? Até onde sabemos você pode ser um dos muitos bandidos que aproveitam as noites de caçada para assaltar os moradores que ficam escondidos em suas casas.

Olhou para os homens enquanto pensava no que responder. Alguns estavam tremendo. Um deles apoiava o dedo no gatilho de seu bacamarte com tanta força que era um milagre a arma não ter disparado acidentalmente.

Lionel abaixou a cabeça e deu um sorriso irônico. O homem à sua frente perguntou:

— Qual é a graça?

— É que eu estava me perguntando mais ou menos a mesma coisa. Como vocês conseguem ficar perto desse cheiro sem se incomodar?

— Depois de anos lidando com essas criaturas a gente se acostuma! Qualquer caçador de verdade saberia disso!

— Eu nunca me acostumei, isso faz de mim um monstro?

— Talvez!

— Ou talvez os monstros sejam vocês!

— Como ousa, forasteiro? Quer se juntar aos demônios na fogueira?

— O pior monstro é aquele que não acha que é um monstro!

As armas já apontadas para ele se aprumaram ainda mais, mirando sua testa com maior precisão. O demônio atrás deles continuava gemendo e grunhindo. O homem disse:

— Cuidado, forasteiro, suas próximas palavras podem ser as últimas a sair de sua boca desdenhada!

Suspirando, Lionel disse, quase cuspindo as palavras:

— Eu fui convidado a vir para cá, para ajudá-los na caçada, mas desde que cheguei nesta maldita vila só encontrei hostilidade e xingamentos! Se me deixassem pegar a maldita carta, veriam que não estou mentindo!

— Mexa essa mão novamente e eu a arranco de você com uma bala!

— Atirem logo nele! — Era Ignácio, dessa vez com uma voz que mais parecia um choro.

— Silêncio, garoto! — disse o homem, antes de se dirigir a Lionel. — Quem o convidou?

— Foi uma tal de Diana! — ele respondeu. — Querem ou não ver a carta?

Parecia impossível, mas a expressão assustada dos homens ficou ainda pior após a menção àquele nome. Alguns abriram suas bocas, e outros abaixaram suas armas um pouco, parecendo desconcertados com algo que Lionel era incapaz de apontar. O homem à frente retomou a palavra, com a voz visivelmente trêmula:

— Você disse… Diana?

— Sim, fui eu!

Todos viraram suas cabeças para encarar a dona da voz. A recém-chegada se aproximou vagarosamente e apoiou a mão no braço do homem que estava discutindo com Lionel. Ela disse:

— Calma, Nestor, abaixe a arma!

O homem a olhou sem dizer nada, mas seu único olho parecia tentar perfurar o crânio da mulher. Ela sustentou o olhar por alguns segundos, e depois disse:

— Atirar nele agora só vai piorar as coisas!

— Está certa disso, Diana? Como sabe que podemos confiar nele?

Ela apertou ainda mais seu braço e abaixou um pouco a cabeça, ainda mantendo o contato visual. Ela disse:

— Não precisam confiar nele… Podem apenas confiar em mim!

Resignado, Nestor olhou para Lionel uma última vez antes de abaixar a pistola. Os outros repetiram o gesto, vagarosamente, e ele pode finalmente respirar aliviado.

— Posso abaixar as mãos então? Está tudo esclarecido?

— Sim, mas não tente nada engraçado, forasteiro! — esbravejou Nestor.

— Obrigado! — disse, enquanto recolocava o lenço sobre o nariz.

Depois de mais alguns segundos de silêncio, Nestor disse, dirigindo-se aos outros:

— Venham, vamos queimar logo esse aqui!

Dois homens se voltaram para a pequena criatura que ainda emitia grunhidos e a pegaram pelos bracinhos. Outros quatro guardaram suas armas no bolso e pegaram longos bastões e forcados que estavam jogados no chão. Enquanto os dois primeiros arrastavam o ser até a fogueira, tomando cuidado para não serem mordidos pelas perigosas mandíbulas, os demais se posicionaram ao seu lado, formando uma espécie de corredor.

Os grandes olhos vermelhos da criatura não exibiram qualquer expressão enquanto era arremessada para o fogo. Rapidamente a sua pele se incandesceu, transformando-se do verde-escuro para uma luz violeta intensa. Em sua agonia, o demônio abria a boca mas não emitia som algum, o que de certa forma era ainda mais aterrorizante, surreal. Parecia uma sombra etérea sendo apagada da realidade, deixando dúvidas de que tinha de fato existido. Assim que as cordas se queimaram, a criatura se viu livre e imediatamente ameaçou pular para fora do fogo, mas os homens a impediram, cutucando-a com os bastões e forcados. Ficaram nessa luta por alguns instantes, até que a luz violeta se extinguiu, deixando para trás o que agora parecia ser um amontoado de carvão em brasa.

O cheiro ficou ainda mais insuportável do que antes. Lionel apertou o lenço contra seu nariz, tornando muito difícil sua respiração. Nesse momento, Diana se aproximou. Seu rosto era jovem e bonito. Seus olhos eram grandes e arredondados, bem desenhados no rosto, e tinham um leve tom violeta. Mas o mais estranho era a cor de seus longos cabelos lisos. Por baixo do chapéu pontudo, Lionel reparou que eram praticamente brancos, tais como a neve. Por um instante, reparou que sua boca estava retorcida em repulsa. Mas ela logo cobriu o rosto, do nariz ao queixo, com um cachecol branco que estava enrolado em seu pescoço.

— Cá entre nós… — ela disse. — Eu não suporto esse cheiro!

Mesmo com o rosto quase todo coberto, ele percebeu em seus olhos que ela sorria para ele. Ele retribuiu o sorriso, sem dizer nada. Ela continuou:

— Dizem que um bom caçador se acostuma com o cheiro depois de algum tempo, mas eu nunca me acostumei, e essa já é a minha décima temporada!

Lionel teve uma sensação estranha. Teria ela ouvido a sua conversa com Nestor antes de se anunciar ao grupo?

— Sim, já ouvi isso antes! — ele disse, desconfiado.

— Deixe que eu me apresente, meu nome é Diana, muito obrigada por aceitar meu convite! — Ela estendeu a mão.

Apertando-a, ele disse:

— Muito prazer, eu sou Lionel!

— Oh, eu sei quem você é! — Ela sorriu novamente com os olhos. — Todos o conhecem, na verdade! Por favor, não se deixe impressionar pela falta de hospitalidade. É noite de caçada e estão todos tensos. Mas acredite, apesar de não parecer, estamos muito gratos por você ter vindo!

Lionel sorriu também, satisfeito com o reconhecimento. Ele disse:

— Bom, eu espero sinceramente poder ajudá-los!

— Tenho certeza que vai!

Um silêncio momentâneo se fez, enquanto se olhavam. Lionel tentava decifrar a expressão da moça, mas era difícil, pois estava escuro e seu rosto estava todo coberto. Apenas os olhos violeta davam a impressão de uma admiração profunda ou outro sentimento que ele não soube identificar.

— Ei, Diana! Você vem com a gente? — Uma voz soou atrás dela.

— Não, vão sem mim! Eu preciso cuidar do nosso convidado!

— Ei, eu vim para ajudar! — disse Lionel.— Estão indo para a caçada?

— É claro que sim! — disse Nestor, emburrado. — A noite está apenas começando!

— Contem comigo, então!

Os homens se entreolharam com uma expressão preocupada.

— Nada disso! — interrompeu Diana. — Você deve estar cansado da viagem, e precisa descansar. Já jantou? — ela perguntou, dirigindo-se a Lionel.

— Bem, na verdade não. A carruagem quebrou e não tive tempo de encontrar uma estalagem…

— Nada de estalagem, você vai ficar comigo, na minha casa!

— Diana! — reclamou Nestor.

— Nestor! — Ela parecia irritada agora. — Ele veio aqui por sua própria vontade, decidido a nos ajudar, já esqueceu? Já está na hora de sermos um pouco mais amigáveis com Lionel.

— Não precisa, de verdade, eu… — disse Lionel.

— Deixe isso comigo! — Ela pousou a mão suavemente em seu braço ao dizer isso, calando-o imediatamente.

Ela olhou para os homens ao mesmo tempo em que colocava as duas mãos nos quadris. Eles se entreolharam mais uma vez. Nestor parecia preocupado ao dizer:

— Vamos, homens! Para a floresta!

Lentamente eles se viraram e desapareceram entre os troncos ressecados das árvores da praça. O jovem Ignácio deu uma última olhada para Lionel antes que um colega o puxasse pelo braço e ele também fosse embora.

Esfregando as mãos, ela se virou e disse:

— Está esfriando, melhor irmos! Tem alguma bagagem?

— Sim, mas ficou na carruagem, disseram que iriam trazer mais tarde.

— Não tem problema, eu dou um jeito! Venha, minha casa não é longe daqui.

Começaram a caminhar lado a lado, devagar e em um silêncio desconfortável. Diana o olhava a todo momento, e ele começou a ficar incomodado. Depois de alguns minutos, ele começou a falar, para quebrar o gelo:

— Er… eu…

— Oh, me desculpe! Estou encarando você, né? É que… eu realmente não acredito que você está aqui!

— Hã? Bem, eu…

— Ninguém acreditava que você viria, sabia? Mas você veio, aceitou o meu convite!

— É, eu sempre tento ajudar quando posso. Além do mais, fazia tempo que eu não participava de uma caçada, estou meio enferrujado, acho que estava sentindo falta de um pouco de ação. Eu nem sei se vou poder contribuir.

— Está brincando? Alguém como você, enferrujado?

Lionel sorriu, encabulado. Fazia tempo que não recebia elogios dessa natureza.

— Me desculpe, deixei você sem graça de novo! Devo estar parecendo uma tola, toda excitada por causa de um forasteiro! — Nesse momento, ela baixou o cachecol, revelando novamente seu belo rosto jovial.

— Imagine, eu fico muito feliz e grato com o reconhecimento! Mas já adianto que não é merecido! A fama é sempre maior do que o sujeito, isso eu posso garantir!

Ela sorriu novamente, e dessa vez ele pode ver sua boca se esticando no rosto. Ela disse:

— Deixe de ser modesto, professor!

— Professor? Está aí um título que há muito tempo não ouço!

— E quais títulos você ouve?

— Ultimamente, nenhum, para falar a verdade! O ostracismo tem esse efeito nas pessoas. Mas quando eu estava na ativa, era “caçador” mesmo. Eu gostava.

— Sei! E tem esperança de ser chamado assim novamente?

Ele ficou sério ao responder:

— Se acha que eu estou aqui somente para recuperar minha fama, está enganada! Eu fiz um juramento, e meu desejo de ajudar é genuíno!

— Não, não, me perdoe, não foi isso que eu quis dizer! — Ela pareceu chateada. — Eu me referia ao termo “professor”.

Duvidando um pouco da sinceridade da moça, ele respondeu:

— Bom, não sei dizer. Eu nunca me considerei um professor!

— Sua opinião não importa, se o chamam assim é porque ensinou muita coisa.

— Suponho que tenha razão… por que me chamou assim, então? O que aprendeu comigo?

Ela sorriu mas não respondeu. Parou de caminhar e virou-se de costas. Foi até a porta da casa mais próxima e começou a destrancar uma série de fechaduras e cadeados, produzindo um tilintar metálico que ecoava no silêncio da noite. Ao terminar, encarou-o e disse:

— Pode entrar, é aqui!

Lionel entrou na casa acompanhado pelo olhar da moça. Estava escuro. Apenas a fraca luz das lamparinas da rua iluminavam a região próxima à porta. Diana foi até uma mesa que havia ao lado da entrada e acendeu um lampião, antes de fechar a porta.

— Quer acender o fogo? — Ela perguntou, apontando com a cabeça em direção à lareira de pedra que ficava do outro lado da sala.

Ele assentiu com a cabeça e foi até a lareira. Enquanto empilhava alguns pedaços de madeira dentro do cubículo cheio de fuligem, ela desapareceu por uma porta. Uma luz se acendeu no quarto onde ela estava, e sua voz chegou até ele:

— Devo ter algumas roupas aqui para você usar enquanto sua bagagem não chega. Tem alguma preferência?

— Qualquer coisa que esteja seca, por favor! Estou com as pernas todas enlameadas e os pés encharcados!

— Se é assim, então tenho alguns vestidos que ficariam ótimos em você!

Ele sorriu enquanto terminava de atiçar as chamas recém acendidas. Ela tinha senso de humor. Ele respondeu:

— Se não tem outra opção, eu aceito de bom grado!

— De um cavalo dado não se olham os dentes? — ela surgiu às suas costas.

— Mais ou menos isso!

Ela sorriu enquanto se aproximava dele.

— Fique à vontade, Lionel, aquele quarto ali é o seu. Eu já acendi a chama para a banheira, imagino que queira se banhar antes do jantar. E eu deixei três vestidos em cima da cama, pode escolher o que achar mais bonito!

— Muito obrigado! Tenho certeza que vou gostar!

— Eu é que tenho que agradecer, professor!

— E surge o título de novo! Ainda não respondeu à minha pergunta. O que aprendeu comigo?

— Eu te conto durante o jantar!

— Falando nisso, precisa de ajuda?

— Não.

— Certo, e teremos companhia para o jantar?

— Não.

Diana tinha um sorriso enigmático. Ela desapareceu em um outro cômodo, deixando-o sozinho na sala.

Ele foi até o seu quarto e fechou a porta. Como prometido, uma chama aquecia a água em uma banheira. E sobre a cama havia um par de calças marrons, camisas e meias brancas, que pareciam ter seu tamanho exato. Na verdade se pareciam muito com o tipo de roupa que ele costumava usar. Diana parecia conhecê-lo muito bem, bem até demais.

***

Após se banhar e se trocar, Lionel retornou até a sala, onde encontrou sua anfitriã sentada em um sofá em frente à lareira. Ela também tinha trocado de roupa, ou ao menos tinha tirado o casaco e o chapéu. Usava calças pretas justas, e uma camisa branca apertada, que estava desabotoada até a metade, deixando uma grande porção da pele de seu colo à mostra. Seus cabelos brancos estavam soltos, e caíam livres pelo rosto e sobre os ombros, contornando os belos olhos violetas que brilhavam com a luz da lareira. Em suas mãos, segurava duas taças de vidro. Ofereceu uma ao seu hóspede, dizendo:

— Vinho?

— Sim, obrigado! — ele disse, enquanto se sentava e pegava seu cálice da mão dela.

— Sinto informar que não tive tempo de preparar um jantar completo. É só isso o que temos! — ela apontou para uma pequena mesa à sua frente, onde estavam dispostas diferentes variedades de pães, queijos e frios.

Bebendo de sua taça, Lionel sentiu-se agraciado. O vinho tinha um corpo médio, com um aroma delicioso, misturando notas de frutas vermelhas, café, cacau e tâmaras. No paladar, taninos elegantes e macios complementavam a sensação que já era familiar. Era um de seus vinhos preferidos.

— Impressionante! — ele disse — Setúbal?

— Sim!

— E presunto cru? Queijo Roquefort? Parece que você acertou na mosca em meus gostos! — ele disse, servindo-se de uma fatia do presunto.

— Fico feliz que tenha gostado, eu…

— Vamos parar com a conversa mole?

— Perdão? — ela pareceu desconcertada.

— Como você sabe tudo isso sobre mim? Meu vinho preferido, meu jantar preferido, até o tamanho da minha roupa você parece saber perfeitamente! — ele puxou o tecido das calças para mostrar que o caimento era de fato preciso.

— Bem, eu… — ela ruborizou — as calças eram do meu pai, ele tinha a mesma estatura que você…

— Na verdade, pode começar explicando por que me chamou aqui!

Lionel terminou de mastigar sua fatia de presunto e se serviu de um pedaço de pão enquanto se encostava no sofá, aguardando que sua companhia falasse.

Ela ficou olhando para as próprias mãos por alguns instantes. Depois disse, levantando-se de repente:

— Espere um pouco!

Ela foi até um outro cômodo e retornou depois de alguns minutos, trazendo alguns papéis. Na frente deles havia uma conhecida revista. Já sabendo do que se tratava, ele sorriu e disse:

— Ah, sim, página trinta e sete, eu me lembro dessa entrevista!

— Me desculpe! — ela voltou a se sentar, parecendo muito envergonhada — Eu só tentei agradá-lo!

— Eu menti!

— Hã?

— Nessa entrevista, eu menti! Disse que gostava de queijo Roquefort, mas era só para parecer mais refinado para o público. Na verdade eu detesto queijo!

Ela colocou a mão nos olhos e disse:

— Deve estar me achando uma idiota! Oh, Deus, eu SOU uma idiota! Pareço uma adolescente ingênua encontrando seu escritor de romances favorito!

Ele continuou encarando-a. Ainda não tinha respondido à sua pergunta. Ela continuou:

— Bem, a verdade é que eu o admiro, sim! E confesso que posso ter ficado um pouco excitada quando você respondeu ao meu convite dizendo que vinha. Só quis preparar um jantar que o agradasse.

— E por que me convidou?

Suspirando, ela disse:

— Bem, se você reconheceu essa revista, também deve reconhecer esse outro artigo aqui!

Entregou a ele uma cópia amarelada de um manuscrito que ele tinha publicado tempos atrás. O título era “A arte do caçador”. Ele reparou que o texto estava todo rabiscado, com muitas palavras sublinhadas e anotações que preenchiam cada centímetro vazio do papel. Seu conteúdo havia sido estudado com afinco por alguém, que ele supunha ser Diana.

— Você me perguntou porque o chamei de professor — ela disse — Bem, esse artigo me ensinou tudo o que eu sei sobre as caçadas. Foi por causa dele que eu consegui me tornar a melhor caçadora da região. Seus ensinamentos iam muito além do conhecimento passado de pai para filho pelas pessoas daqui. Você foi o primeiro — e o único, até onde eu sei — que tratou a caçada como uma ciência propriamente dita!

Enquanto ouvia, Lionel lia as anotações de Diana em seu manuscrito. Elas mencionavam outros estudos correlatos, faziam resumos e conclusões lógicas e conectavam ideias aparentemente distantes no texto. Ele ficou impressionado.

— Antes de colocar suas ideias em prática, era comum a gente perder parentes e amigos nas caçadas. A própria ideia de usar fogo-fátuo para incinerar as criaturas, que você viu lá na praça, fui eu quem ensinou para os caçadores daqui, com base em seu artigo, é claro! Antes disso, as criaturas mais resistentes eram mantidas presas até se desintegrarem, o que demorava várias semanas, além de ser muito mais perigoso.

— E eles sabem disso?

— Do que?

— Os caçadores daqui! Eles sabem que fui eu quem descobriu o uso do fogo-fátuo para exterminar as criaturas? Pelo jeito que me trataram, parece que não estavam por dentro dessa novidade, não?

— Bem…

— Ou você quis ficar com os créditos todos para você?

— Não, não é isso! — ela parecia cada vez mais incomodada com a conversa — Eles sabem sim, é claro que sabem, eu disse a eles. Mas eles não devem ter se tocado que você é… bem, você!

— E você não podia ter avisado?

— Entenda, Lionel, esta é uma pequena cidade do interior! É bem diferente de onde você vive, na capital! As pessoas aqui são honestas, trabalhadoras… mas são homens rudes, mal-educados, não se interessam pelas sutilezas da ciência.

Ela apoiou sua taça de vinho na mesa de frios à sua frente e se levantou. Começou a caminhar lentamente pela sala, enquanto continuava a falar:

— Você não sabe como eu desejei ter alguém como você por perto! Alguém com quem eu pudesse discutir as ideias, os conceitos! Explorar as raízes da magia adormecida por baixo das montanhas, dos rios, das florestas! Mas as pessoas aqui só querem saber de empilhar corpos e contar os membros decepados a cada noite! Até os mais jovens são assim! Parece que já nascem com uma tocha e um forcado nas mãos, esperando apenas aprender a dar seus primeiros passos para sair por aí espetando e queimando demônios!

— Ainda não respondeu à minha pergunta!

— Respondi, sim! Em parte, é claro! Eu o chamei aqui porque o admiro! — ela ergueu o queixo ao dizer aquilo — Admito que a curiosidade em conhecer meu mentor me moveu a escrever aquele convite!

— Mas não foi somente por isso, foi?

— Não! Até um tempo atrás, eu não me atreveria a entrar em contato. Afinal, nossos caçadores estavam dando conta do recado muito bem, com a minha ajuda e a do seu artigo, é claro! Mas desde o início do ano apareceram rumores um tanto… diferentes! Tão diferentes que eu achei que seus escritos não eram suficientes para resolver o problema. Achei que era necessária a presença do próprio autor desses estudos.

— Rumores diferentes, como?

— De uma criatura diferente, mais astuta que as outras. Tão assassina e sanguinária como qualquer demônio que estamos acostumados, mas com um comportamento… peculiar!

— Que tipo de comportamento?

Diana se sentou novamente, agora bem perto de Lionel, de modo que sua coxa ficou colada à dele. Ele pode sentir seu perfume suave de lavanda. Ela pegou mais alguns papéis da pilha que tinha trazido e os mostrou a ele. Eram recortes de notícias de jornal, que relatavam mortes misteriosas em uma cidade vizinha.

— Esses assassinatos, veja, aconteceram em intervalos de tempo de vinte e oito dias, ou um número múltiplo disso. Sabe o que significa, não sabe?

— Sim, é o ciclo lunar. Uma vampira fêmea, provavelmente?

Ela sorriu, satisfeita com a resposta.

— Foi exatamente isso o que eu deduzi. E pegamos a criatura depois que eu triangulei as distâncias entre os locais dos assassinatos, com base na movimentação exclusivamente noturna desse tipo de demônio, veja!

Ela abriu o manuscrito de Lionel na seção que versava sobre a mobilidade das criaturas. Havia uma fórmula para o cálculo da velocidade dos bípedes humanóides. Estava, assim como o restante do texto, toda circundada de anotações e rabiscos.

— Impressionante! Eu nunca teria pensado em aplicar essa fórmula desse jeito!

Sorrindo orgulhosa, Diana tirou uma mecha de cabelos do rosto, prendendo-a atrás da orelha, e continuou:

— A maioria das criaturas são monstros sanguinários que atacam desordenadamente qualquer desavisado que cruze seu caminho. Essas são mais fáceis de capturar e matar. Outros, como os vampiros, são verdadeiros caçadores, matando sistematicamente e longe de seu habitat natural. A princípio, é difícil entender seu comportamento, mas ainda são seres irracionais que agem segundo padrões simples. Portanto, basta compreender esses padrões e podemos prever suas ações com bastante precisão!

— “Antes de capturar a presa, ocupe-se em capturar a sua mente” — disse Lionel.

— Oh, sim, me desculpe. Eu me esqueci com quem estava falando! Quem sou eu para lhe ensinar esse tipo de coisa?

— Não diga isso! Faz tempo que eu escrevi esse texto! E tem bastante coisa que você acrescentou aqui e que eu não tinha sequer imaginado! Nunca pensou em publicar um manuscrito seu?

— Meu? — ela abriu a boca, envergonhada — Ora, é claro que não! Quem iria ler?

— Devia publicar! Se ao menos uma pessoa ler e aplicar seus conhecimentos, já fez alguma diferença!

Ela olhou para as próprias mãos, sorrindo envergonhada. Esticou a mão e pegou sua taça de vinho, tomando mais um gole antes de voltar a encará-lo. Seus olhos estavam brilhando ainda mais agora, e ele começou a se sentir incomodado com a admiração — ou outro sentimento parecido — que transparecia em seu olhar. Lionel resolveu retomar o assunto anterior:

— Mas conte-me mais sobre esse monstro peculiar! Agora fiquei interessado!

Ao ouvir isso, ela voltou à sua animação anterior. Gesticulando com as palmas da mão para cima, disse:

— Está vendo? Esse é o outro motivo pelo qual o chamei! Ninguém aqui demonstrou o menor interesse nos rumores! Eles preferem esperar que o monstro apareça espontaneamente em frente à fogueira e fique parado até que alguém lhe dê um empurrãozinho!

Ele sorriu para ela, sem dizer nada. Ela continuou:

— Bem, as notícias são escassas. São quatro mortes até o momento. E a primeira peculiaridade é que as vítimas são todas mulheres, jovens e bonitas.

— Não me parece a ação de um demônio, e sim de um psicopata.

— Sim, se não fosse pelo jeito com que essas garotas foram mortas. Marcas de garras e dentes afiados pelo corpo, e a pele do rosto arrancada a mordidas! Os legistas confirmaram a presença de queratina das unhas da criatura. Essa é a segunda peculiaridade.

Lionel estremeceu. De fato era peculiar. Ele nunca tinha ouvido falar de um demônio que agia assim.

— Não poderiam ser de um animal, como um urso ou lobo?

— O que está insinuando? Que um psicopata interessado em matar garotas treinou um animal selvagem para comer o rosto delas, e somente o rosto?

— Não sei, é possível!

— Mas existe uma explicação mais plausível, não? Um transmorfo? Um humano que se transforma em demônio?

Lionel respirou fundo antes de responder.

— Sim, mas isso é raro, já faz muito tempo desde que…

— Terceira peculiaridade… — ela interrompeu — O intervalo de tempo entre as mortes é aparentemente irregular.

— Mais um motivo para descartar a hipótese de ser uma criatura fantástica. Isso já foi muito bem demonstrado em estudos. A magia que movimenta as criaturas está conectada a eventos astronômicos. É por isso que as caçadas acontecem somente uma vez a cada estação, e é por isso que vampiros e lobisomens sempre atacam em determinadas fases da Lua. Mas você já sabe disso, é claro!

— Sim, mas repare que eu disse “aparentemente” irregular! — Diana deu um sorriso enigmático.

— O que quer dizer?

— Veja as datas das mortes!

Ela entregou a ele um pequeno bloco de notas, aberto em uma página onde havia quatro datas anotadas. Enquanto ele as lia, ela disse:

— Segundo o princípio da origem astronômica, quanto mais raro o evento, mais evoluída é a criatura. Conjunções celestiais raríssimas entre planetas, por exemplo, podem ser utilizadas para despertar criaturas tão grandes quanto uma montanha, como foi o famigerado caso…

— Da grande invocação de 1628, sim, eu conheço essa história!

— É claro que conhece, me desculpe a arrogância. Bem, mas talvez não conheça o corolário que eu propus… bem… talvez não seja um corolário de fato…

— Ora, que interessante! Não queria alguém para discutir conceitos? Então não se acanhe, compartilhe suas ideias comigo!

— Bem, cruzando os dados históricos, eu deduzi que as criaturas animadas por eventos raros são mais difíceis de serem eliminadas. Em casos mais simples, como fases da Lua ou estações do ano, o fogo-fátuo é eficaz. Em casos mais complicados, como alinhamentos celestiais, pode ser necessário um ritual bem mais elaborado. Durante o alinhamento das Luas de Galileu em 1829, surgiu uma criatura tão difícil de matar que os caçadores tiveram que extrair todo o seu sangue e jogá-lo no oceano para que ela finalmente pudesse ser queimada!

— Sim, sim, isso faz sentido! Quando propus o uso do fogo-fátuo eu listei algumas exceções conhecidas, mas nunca me toquei que poderiam ter relação com a raridade dos eventos. Fascinante, Diana, você precisa publicar isso!

— É, talvez eu publique!

— E quão raro é o evento de que estamos falando? — voltou a analisar as datas anotadas.

— Ainda não percebeu? — ela sorriu — Vamos lá, professor!

Ele pensou por alguns instantes, enquanto fazia cálculos mentais. Após alguns instantes, exclamou:

— Eclipses lunares?

— Parabéns, professor!

— Mas não são eventos muito raros, não é?

— Mais do que a média. E segundo meu corolário, todos os casos conhecidos fazem parte da sua lista de exceções ao método do fogo-fátuo!

— Então estamos lidando potencialmente com um transmorfo que não pode ser eliminado em fogo-fátuo. Algo mais?

— Sim, faltou dizer o óbvio! Ele vai atacar no próximo eclipse lunar, e uma jovem e bela garota estará em perigo a menos que consigamos rastreá-lo e eliminá-lo a tempo!

— E quando é o próximo eclipse lunar?

— Em três dias!

São Miguel do Vale, 27 de maio de 1861

A noite não foi tranquila. A certa hora da madrugada, o cheiro voltou a incomodar. Certamente os caçadores tinham reabastecido a fogueira diversas vezes, a ponto de fazer a nuvem fétida se espalhar até a casa de Diana. Também havia gritos e guinchos. Risadas dos caçadores se misturavam ao lamento dos demônios que protestavam contra seu destino. Quando a luz do dia entrou pelas frestas da janela, Lionel tinha descansado muito pouco. Mas não quis ficar na cama por muito tempo. Assim que ouviu a movimentação de Diana na sala, ele se lavou na bacia de água limpa que tinha sido preparada por sua anfitriã e se juntou a ela.

— Bom dia. Noite difícil? — ela disse ao vê-lo entrando na sala.

— É, não consegui dormir direito. E você?

— Eu dormi sim, estou acostumada! Além disso, tenho acordado muito cedo nesta temporada de caça, então ando sempre exausta! O vinho também ajudou! — deu uma piscadela.

— Acho que eu bebi pouco, então!

— Me lembre de dobrar sua dose esta noite!

— Achei que eu iria me juntar aos outros na caçada!

— Oh! — ela exclamou — Na verdade…

— O que?

— Bem, eu esperava que pudéssemos trabalhar na teoria primeiro, sabe? Capturar a mente do monstro?

— Podemos fazer isso durante o dia, não?

— Suponho que sim. Tem certeza que quer ir à caçada? Como lhe expliquei ontem à noite, nosso problema não é a falta de braços, e sim a falta de cérebros!

— Eu faço questão! Antes de ser um acadêmico, eu sou um caçador! Meu juramento me obriga!

Ela titubeou um pouco, antes de falar:

— Está certo. Tenho que avisar aos outros, então!

— Por que eu tenho a impressão que eles não querem a minha ajuda?

— Se você perguntar, eles dirão que não, definitivamente!

— E se não perguntarmos?

Ela sorriu ao responder:

— É mais ou menos isso que eu pretendo fazer. Acho que se simplesmente aparecermos com armas na mão, eles não poderão negar nossa companhia!

— Por mim está ótimo! Não estou aqui para fazer amigos!

— Nem ao menos uma amiga? — ela sorria do mesmo jeito que na noite anterior.

— Está bem, talvez uma amiga, o que já seria uma grande coisa!

— Fechado, então. O grupo se reúne na praça antes do pôr-do-sol, para acender a fogueira.

— Espero que a carruagem traga minha bagagem até lá!

— Ah, sim, mais tarde eu vou averiguar isso, pode ficar tranquilo! Por ora, vamos nos preocupar com o tempo, que é curto. Quer me ajudar a preparar o café? Assim já começamos logo nosso trabalho!

— Sim, é claro!

Lionel e Diana se dirigiram à cozinha, onde prepararam e fizeram seu desjejum. Depois que estavam satisfeitos, foram até o escritório onde ela conduzia seus estudos. Ela o acomodou em uma cadeira em frente a uma grande e lustrosa mesa de madeira, e começou a colocar uma enorme quantidade de papéis e livros à sua frente.

— Por onde quer começar? — ela perguntou.

— Me mostre tudo o que sabe sobre as mortes!

— Ah, sim, eu tenho as notícias dos jornais, deixe-me encontrá-las — vasculhou entre a papelada e foi selecionando pedaços recortados e colocando-os à frente de Lionel.

— Certo, vamos ver… — ele começou a ler, e logo disse — não tem fotos das vítimas? Por que você cortou fora essa parte?

— É que eu… achei que não era importante…

Ele a olhou com desconfiança, o que fez com que ela confessasse:

— E eu não gostava de ficar olhando para os rostos delas! — parecia envergonhada — São histórias tristes, e vê-las ali, sorrindo para mim, tornava tudo pior.

— Sei como se sente!

— Mas eu ainda tenho os recortes, se acha que é importante…

— Sim, por favor!

Ela percorreu a papelada mais uma vez com os dedos e puxou algumas fotografias recortadas, colocando-as nas mãos de Lionel.

— Obrigado! Tem um bloco de notas para me emprestar? O meu ficou na bagagem.

Ela atendeu ao seu pedido, entregando-lhe uma caderneta pequena com uma capa de couro. Abrindo-a na primeira folha, começou a tomar notas.

— Todas as vítimas são mulheres, e jovens… as mortes aconteceram exatamente durante um eclipse lunar… hum…

— O que foi?

— Eclipses lunares duram uma ou duas horas apenas… quais são as chances de um demônio, em sua forma bestial, sair por aí durante a noite e simplesmente encontrar uma garota que lhe agrade em um período de tempo tão curto?

— Se for um transmorfo, ele tem forma humana, poderia fazer isso durante o dia, não?

— Sim, mas isso implica que há premeditação!

— E daí?

— Um demônio não ataca de maneira premeditada! Já sabemos disso, o princípio da origem astronômica diz que a ação demoníaca é regida pelos astros, exclusivamente! Enquanto humano, a criatura é e permanece essencialmente humana. Apenas quando está sob efeito da magia é que se torna um demônio. Portanto, a premeditação teria que acontecer de uma fase para outra, o que é impossível! Para todos os efeitos, é como se fossem dois seres distintos que se alternam controlando aquele corpo.

Diana pensou por alguns instantes, e disse:

— A não ser que…

— Sim?

— A não ser que o humano em questão, além de um demônio transmorfo, seja um psicopata!

— Está querendo dizer que existe um assassino em série que sabe que se transforma em um demônio nas noites de eclipse, e que planeja sistematicamente a captura de suas vítimas para alimentar a sede de sangue do seu demônio?

— É uma hipótese!

— É absurda! Nunca ouvi falar de algo assim! Além de ser uma combinação bem improvável de doença psíquica e magia, a pessoa teria que ser conhecedora dos fenômenos mágicos e astronômicos, e planejar muito bem suas ações para manter seu demônio sob controle durante os momentos de bestialidade irracional!

— Psicopatas são conhecidamente inteligentes, sedutores, frios e calculistas. Tudo isso que falou é bastante plausível!

— Bem, não gosto dessa hipótese, mas não vamos descartá-la ainda, mas apenas para não ferir o método científico.

— E tem outra hipótese, professor?

— Sim, já que estamos falando de absurdos… outra explicação igualmente absurda e da qual não se tem registro seria se o monstro estivesse ativo e espreitando de dentro da pessoa o tempo todo. Ou seja, mesmo com aparência humana, e capaz de se misturar à sociedade, é em sua essência um demônio o tempo todo, capaz de premeditar suas ações.

— Hum… interessante, e esse demônio, por algum motivo, consegue se controlar durante a maior parte do tempo, aparentando e agindo como um humano? Exceto nas noites de eclipse, quando precisa de alguma forma manifestar sua maldade interior?

— Exato! Como eu disse, é igualmente absurda, mas é uma hipótese alternativa!

Diana pensou por alguns instantes e disse:

— Não sei… para mim…

— O que?

— Para mim as duas hipóteses são basicamente a mesma coisa! Não são?

— Claro que não, o princípio é completamente diferente! Um demônio é um monstro de magia, enquanto um psicopata…

— É um monstro sem magia? A diferença é apenas semântica, não?

Lionel a olhou, pensativo, e não conseguiu discordar. Enfim disse, sacudindo a cabeça:

— Bom, vamos deixar a filosofia de lado por enquanto, precisamos de mais informações! O que mais temos aqui? Investigou o perfil das vítimas?

— Na verdade não!

— Como não? Seja um psicopata ou um demônio em forma humana, precisamos encontrar um padrão de comportamento!

— Eu sei, sinto muito! — ela abaixou a cabeça — Agora vejo como fui burra. Seu artigo menciona padrões muito mais simples, como o dos vampiros, que sempre preferem vítimas do sexo oposto, mas nada além disso! Não fui além da aparência física das vítimas!

Lionel a olhou desconfiado. Ela parecia ser mais inteligente do que estava demonstrando.

— Me desculpe se o decepciono! — ela disse, parecendo sinceramente desanimada — Mas é como eu disse, nos faltam cérebros, e é por isso que você está aqui!

— Não se preocupe, podemos fazer essa investigação agora e ver se descobrimos algo!

— Sim, capturar a mente do monstro! Vamos! — ela se animou.

Ficaram a manhã toda lendo os recortes de jornais que Diana tinha selecionado, mas conseguiram poucas informações sobre as vítimas, exceto que eram estudantes universitárias ou recém-formadas na universidade. Também descobriram que as vítimas eram todas da capital, e que tinham sido mortas em descampados, em parques ou áreas mais afastadas do centro da cidade.

— Hum, isso é realmente estranho! — ele disse, após anotar suas últimas descobertas.

— O que?

— Hã? — ele tinha se distraído com seus pensamentos. Não quis revelá-los em sua totalidade para Diana, então disfarçou:

— Não sei… descampados? Sob a Lua avermelhada por um eclipse? Me parece…

— Deliberado demais?

— É!

— Nossas hipóteses — ou hipótese única, se aceitar minha interpretação — explicariam isso também!

— Sim, sim… — ele continuava pensativo.

— Bem, já está na hora do almoço! Me ajuda a preparar? — ela tocou de leve em seu braço ao se levantar, chamando-o para que a seguisse até a cozinha.

— Acho que eu preferiria ficar aqui sozinho mais um pouco.

Ela parou e se virou devagar, encarando-o com o olhar sério:

— Sozinho, por que? Não quer mais minha ajuda?

— Não me entenda mal, você é muito boa nisso! Mas eu às vezes sinto que consigo pensar melhor sem ninguém por perto. Você não sente o mesmo de vez em quando?

— Sim, mas eu achei que estávamos em uma sintonia tão boa!

— Por favor, Diana! — ele suplicou — É só por alguns instantes, para eu organizar meus pensamentos! Eu prometo que não descubro nada enquanto estiver longe!

— Está bem! Mas se descobrir algo, mesmo sem querer, grite que eu venho correndo, hein?

— Pode deixar! — ele sorriu para ela, tentando ser o mais amigável que podia.

Ainda relutante, Diana deu uma última olhada para ele, e para todos os papéis jogados por ali. Olhou para as estantes, parecendo preocupada, e enfim saiu do escritório.

Assim que a perdeu de vista, Lionel desfez seu sorriso falso e levantou-se. Foi até o outro lado da mesa e logo encontrou o que procurava: as quatro fotos das garotas assassinadas. Retornando à sua cadeira, pegou os recortes com as notícias originais e começou a comparar, um a um, o formato dos pedaços de papel. Como tinha desconfiado ao examiná-los pela primeira vez, nenhuma das fotos parecia se encaixar no recorte da notícia correspondente. As fotos não eram daquelas reportagens. Diana — ou outra pessoa — as tinha substituído.

Anotou em sua caderneta: “quem de fato são as vítimas?”.

Em seguida, encontrou uma anotação que tinha feito antes, onde se lia: “demônio atacou exclusivamente na capital”. Acrescentou ao lado uma pergunta: “Então por que eu vim para São Miguel do Vale?”.

“Diabos, são quatrocentos quilômetros de distância!” — pensou — “O que a faz pensar que o demônio vai atacar aqui desta vez?”

As reais intenções de Diana cada vez mais pareciam divergir de sua narrativa oficial. Ela realmente entendia do assunto, isso era um fato. Também tinha praticamente decorado seus tratados e artigos publicados, principalmente “A arte do caçador”. Mas ela cometia alguns erros simples de lógica. E também não tinha explicado a origem dos tais rumores que em tese a levaram a convidar Lionel para passar um tempo ali, com ela.

“Será que isso tudo é um pretexto para me trazer aqui? Para, de alguma forma, saciar sua vontade de conversar com um colega acadêmico, ou melhor, segundo ela mesma, conversar com alguém diferente de todos que moram nesse fim de mundo? Ela está tentando me atrair, disso não restam dúvidas! Suas roupas apertadas, a camisa desabotoada demais, os toques e olhares… o jantar na primeira noite…”

Isso criava outra hipótese. A de que não havia demônio algum, apenas um assassino em série. Por mais terríveis que tenham sido, ainda assim os assassinatos seriam obra de humanos normais. Talvez com uma psique monstruosa, sim. Mas humanos, desprovidos de magia. Era uma hipótese muito mais plausível.

— Ei, Lionel? — Diana colocou metade do rosto para dentro do escritório — Você vai demorar? Não quero apressá-lo, é só para eu calcular o tempo de cozimento…

— Não, já acabei. Não descobri nada, viu? Só fiz umas notas aqui, espera aí…

Escreveu a última anotação: “Perguntar sobre os rumores. Para OUTRA pessoa!”

— Pronto! — fechou a caderneta e a colocou no bolso, ao mesmo tempo em que se levantava e sorria para ela.

Ela abriu um largo sorriso que se irradiou para os olhos. Lionel começava a apreciar como seu rosto se iluminava sempre que sorria. Ela aguardou até que ele estivesse bem perto para se virar de costas e voltar à cozinha, balançando os quadris à sua frente.

***

A tarde foi pouco produtiva. Não tinham descoberto muita coisa além do que já sabiam, e Lionel não quis tocar nos assuntos pendentes que estavam em sua mente. Tentaria conversar com outra pessoa depois.

No meio da tarde, eles foram até a entrada da cidade para resgatar a bagagem. Lionel quis ficar mais uma vez sozinho para tentar bisbilhotar um pouco, mas ela insistiu que ele fosse junto, alegando que não poderia trazer sua bagagem em seu nome, e ele concordou. Ao retornar, Diana sugeriu que tentassem descansar um pouco, pois a caçada durava a noite toda. Lionel concordou e surpreendeu-se com a facilidade com que adormeceu.

Ele acordou com o barulho de vozes do lado de fora. Uma grande algazarra parecia estar em curso nas ruas e calçadas. Espiando pela janela, ele viu do que se tratava. Os caçadores estavam se dirigindo à praça, e eram saudados pelos moradores em suas casas. Eles batiam palmas e berravam gritos de apoio, enquanto os homens de casaco e chapéu desfilavam e acenavam para todos. Um deles, que tinha o olho de vidro, acariciava a cabeça de uma criança, sorrindo, quando passou bem em frente à janela de onde Lionel espiava. Era Nestor, o caçador hostil que tinha confrontado-o na noite anterior. Ao ver que era observado, imediatamente amarrou a cara e continuou seu caminho em direção à praça.

Lionel abriu sua bagagem e procurou por sua pistola e munição. Maldizendo seu atraso, e juntando toda a pressa que conseguia, encontrou seu cinto de couro e o amarrou na cintura, onde pendurou a arma em seu coldre e sua faca de caça. Também pegou sua sacola, que encheu com munição. Colocou o chapéu na cabeça, jogou o casaco nas costas e colocou as botas, antes de sair do quarto.

A sala estava vazia, mas sobre a lareira encontrou um bilhete, que dizia, em uma caligrafia caprichada:

“Querido Lionel, você estava dormindo profundamente, então não quis acordá-lo antes da hora. Aproveitei e saí para conversar com os caçadores para prepará-los para sua chegada. Se tiver acordado e eu não estiver em casa, venha até a praça. Não esqueça de trancar bem as portas e janelas! D.”

Ao lado do bilhete havia um molho de chaves, que Lionel pegou e utilizou para trancar tudo. Havia vários cadeados e traves de madeira, então a tarefa demorou um certo tempo. Ao travar o último cadeado, o Sol já estava quase desaparecendo no horizonte, e a maioria das pessoas já tinha se recolhido para dentro de suas casas. As ruas estavam vazias e a atmosfera festiva de minutos atrás dava lugar a um silêncio fúnebre.

Enquanto caminhava, não ouvia nada além do barulho de suas botas contra o pavimento. Ao avistar a praça e ver que havia pessoas lá, esperou ouvir conversas. Mas as cerca de quinze pessoas que esperavam ao redor da grande pilha de madeira estavam todas quietas. Ao ouvir os passos de Lionel, viraram suas cabeças para encará-lo, mas não disseram nada. Diana estava ali também.

Quando ele estava mais perto, ela deu alguns passos em sua direção e colocou a mão em seu ombro. Aproximou o rosto de seu ouvido e sussurrou:

— Está tudo bem! Eles aceitaram!

Lionel assentiu com a cabeça e olhou para os demais. Todos pareciam apreensivos, mas não estavam com as mesmas caras assustadas da noite anterior. Até o jovem Ignácio parecia mais calmo.

— Pois bem, forasteiro! Diana nos disse que é o inventor do fogo-fátuo! Por que não acende a fogueira e nos mostra como é que se faz?

Lionel olhou para Nestor e respondeu:

— Gostaria que eu o chamasse de camponês o tempo todo? Por que não me chama pelo meu nome?

Nestor sorriu e disse:

— Me desculpe, é que eu chamo todo mundo pelo apelido, é meu cacoete! E se eu o chamasse de professor? Diana o chama assim, não é?

— Qual é o apelido dela?

Ele sorriu ainda mais ao responder:

— Chamo todo mundo pelo apelido, menos ela!

Lionel olhou para Diana. Ela claramente continha um sorriso. Parecia divertir-se com a situação.

Suspirando, caminhou até a base da fogueira. Havia apenas grandes toras de madeiras e galhos grossos. Precisava de um pouco de combustível para iniciar o fogo, um pouco de mato seco ou galhos menores. Um dos homens se aproximou, trazendo um galão cheio de gasolina. Ele olhou para Diana e disse:

— Vocês usam gasolina para acender o fogo?

Ela pareceu sem graça ao responder:

— Sim, por que?

— A magia fica enfraquecida! Pode dificultar a eliminação de alguma criatura! Não acontece de alguns demônios ficarem queimando mais do que o normal antes de morrerem?

— Sim! — respondeu Nestor, dando um sorriso — Mas nada que não possamos resolver separando alguns membros e queimando um pedaço de cada vez!

Lionel sentiu-se nauseado. Ele ordenou:

— Tragam-me palha e galhos secos, vou lhes mostrar como acender um fogo eficiente!

Por alguns instantes, ninguém se mexeu. Até que Diana começou a recolher pedaços de galhos que encontrou ao redor. Olhando para os demais de maneira insistente, convenceu-os a colaborar. Em pouco tempo havia um monte razoável de combustível ao pé da fogueira. Lionel organizou tudo, formando uma pequena pirâmide de madeira seca e fina.

— Ótimo, obrigado! Agora precisamos do cadáver! Onde guardam as carcaças?

— Estão ali! — Ignácio apontou para uma caixa de madeira que ficava do outro lado da fogueira.

Lionel deu a volta e abriu a caixa. Precisou tapar o nariz com o lenço, pois havia um grande amontoado de ratos mortos dentro. Pegou um deles pelo rabo, mas ao puxar não conseguiu remover a carcaça inteira, pois a cauda em decomposição se desprendeu. Teve que enfiar a mão por baixo para retirar completamente o corpo do animal morto. Fechou a tampa com o pé e voltou ao local inicial.

— Você já vai colocar a carcaça aí? Antes de acender o fogo? — perguntou Diana.

— Se iniciarmos o fogo já com o cadáver por cima, a chama demora mais para acender, mas depois ela permanece forte por muito mais tempo!

— Não temos a noite toda, professor! — disse Nestor.

— Querem minha ajuda ou não? — respondeu, irritado.

Ninguém retrucou, mas ele já sabia a resposta.

Ao colocar o rato morto sobre os galhos, o material orgânico começou a escorrer, como esperado. Bastava esperar que um pouco de gás se acumulasse nos espaços vazios e ele poderia dar início ao acendimento da chama. Colocou as mãos nos bolsos e virou-se para encarar os caçadores.

— Vai demorar muito? — perguntou Nestor.

— Uns trinta minutos, precisamos esperar o gás se acumular, para que o potencial…

Nestor não estava mais ouvindo. Pegou o galão de gasolina da mão do outro homem e passou por Lionel sem olhar para ele. Começou a derramar o líquido sobre o trabalho cuidadoso de madeira que tinha feito.

— Ei, o que está fazendo?

— Me desculpe, professor, mas temos demônios para caçar! Isso aqui não é uma sala de aula!

Em seguida, ele retirou uma pederneira do bolso e produziu uma faísca sobre a pilha de madeira. Houve um pequeno estampido seco, e as chamas começaram imediatamente a queimar a madeira e a gasolina, junto com o rato morto.

— Vai demorar do mesmo jeito para começar a fazer efeito, talvez até um pouco mais!

— Precisamos ficar aqui esperando? — disse Nestor.

— Bem, não, mas seria prudente…

— Então já podemos sair?

— Se o fogo ficar fraco, pode ser que não seja tão eficaz…

— Como eu disse, a gente dá um jeito depois! Mas fique aqui, se quiser, e tome conta do fogo para nós, sim?

Olhando para os demais, Nestor começou a caminhar para fora da praça, no que foi seguido por todos, exceto por Diana. Ela se aproximou de Lionel e colocou a mão em seu ombro. Disse:

— Eu te avisei! Eles não ligam para as sutilezas da ciência!

— Disse bem!

— Mas eu quero entender melhor esse processo, depois! Para o transmorfo, suspeito que vamos precisar de toda a potência que conseguirmos produzir na fogueira! Você pode me mostrar amanhã como se faz?

Ela o encarava com a mesma admiração de antes. Sem poder evitar de apreciar seu esforço em agradá-lo, ele sorriu e assentiu com a cabeça. Disse:

— É melhor irmos atrás dos outros.

— Sim!

***

— Cuidado! Tem algo ali!

— Onde?

— Atrás daquela árvore!

— Tem certeza, Nestor?

— Sim! Esperem aqui!

Agachando-se, o velho caçador se esgueirou com agilidade entre os arbustos até desaparecer, fazendo tanto barulho quanto um gato. Depois de alguns segundos ouviu-se um suspiro rápido, seguido pelo barulho de metal cortando carne. O gemido gorgolejante que se seguiu penetrou nos ouvidos de Lionel e despertou uma sensação antiga. Fazia muito tempo desde que tinha presenciado a carnificina de uma caçada.

Nestor voltou arrastando uma espécie de pássaro. O bico longo e serrilhado estava aberto, e as asas estavam encharcadas de sangue escuro. Parecia um corvo, exceto pelo fato de que tinha quatro garras ao invés de duas. Jogando-o em frente aos demais, disse:

— Já está morto! Este não precisamos queimar imediatamente! Coloquem o corpo num dos sacos e vamos prosseguir!

Lionel começou a entender melhor a hierarquia do grupo. Nestor era o líder, indubitavelmente. Além de ditar ordens aos demais, ele tomava a frente o tempo todo. Outros dois homens, que se chamavam Manoel e Santiago, agiam como seus subordinados diretos, distribuindo as ordens para suas respectivas divisões do grupo. Foi este último quem pegou o demônio morto do chão e o entregou a outro homem, que carregava uma grande mochila nas costas. Depois de colocarem o corpo dentro do saco, foram atrás de seu líder.

Ninguém conversava. Caminhavam em silêncio e trocavam olhares e gestos o tempo todo. A coordenação era impressionante de se ver. Apenas quando havia algo estranho é que alguém usava sua voz, mas era sempre em um tom baixo e direcionado. Este era um grupo acostumado a sair junto, e Lionel se sentia um pouco mal por isso. Talvez fosse melhor ficar na retaguarda, mergulhando o nariz nos escritos e nas teorias, como tinha sugerido Diana. Desde o acendimento da fogueira, sentia que estava mais atrapalhando do que ajudando.

A única que não parecia ter uma posição bem definida era Diana. Talvez por estar responsável por cuidar do forasteiro ela estivesse temporariamente deslocada de sua função habitual. E ela levava essa função à risca. Ficava constantemente olhando para Lionel, certificando-se de que ele estava bem e acompanhando o grupo de perto. Era irritante. Mas mesmo sem essa peculiaridade, ela parecia fora de lugar. Os homens também ajudavam a protegê-la, de certa forma. Ajudavam-na a subir algum pedaço mais íngreme de solo ou a transpor um obstáculo mais alto, pois ela parecia ter dificuldade em se locomover. Neste sentido, ela também estava mais atrapalhando do que ajudando, e Lionel imaginou se ela era de fato uma veterana nas caçadas, como tinha alegado. Resolveu arriscar a pergunta:

— Você vem sempre caçar com eles? — disse, sussurrando para ela.

— Sim!

— Há dez anos, é verdade, você me disse! E você consegue acompanhar o grupo?

Parecendo desconfiada, ela respondeu:

— Eu sou muito ágil!

— É claro que sim!

Ficaram mais um tempo em silêncio. Lionel insistiu:

— É que não me parece comum uma mulher participar de caçadas. Geralmente elas ficam em casa!

— Acha que eu não estou à altura dos outros caçadores?

— Não é isso! É que…

Neste momento, uma sombra escura caiu sobre a cabeça de Diana. Entrelaçando suas garras nos cabelos brancos dela, a criatura começou a guinchar e a fazer barulho. Assustado, Lionel deu alguns passos para trás, enquanto ela gritava e tentava soltar o demônio de sua cabeça.

— Tira! Alguém, tira, por favor!

Parecia com um morcego, mas não era possível ver direito, pois o bicho se mexia o tempo todo. Nestor se aproximou e acendeu uma tocha, iluminando o corpo da criatura. Seus olhos eram vermelhos e sua boca, cheia de dentes amarelados. Sua pele negra era coberta de escamas que cintilavam à luz do fogo. As garras nas pontas das asas estavam começando a arranhar a testa e bochechas de Diana, que ainda gritava:

— Ai, tira, pelo amor de Deus!

— Calma, não se mexa! — disse Nestor.

Ele aproximou a chama até quase tocar na criatura, o que fez com que ela ficasse paralisada. Puxando uma das garras com a mão, ele conseguiu soltá-la dos cabelos dela. Lionel se aproximou e fez o mesmo com a outra garra, enquanto observava o rosto aterrorizado da moça. Em pouco tempo ela se viu livre, e se afastou rapidamente, passando as mãos nos cabelos para ter certeza de que não havia mais um demônio preso ali. Nestor e Lionel ficaram segurando a criatura, ainda entorpecida pelo fogo, com as asas abertas. Nestor disse:

— Forasteiro, estou com as duas mãos ocupadas!

Entendendo o recado, Lionel retirou sua faca do cinto e a enfiou no peito da criatura, que saiu momentaneamente de seu torpor e guinchou alto por alguns segundos, até ficar completamente imóvel. Nestor a puxou e a jogou para um dos homens com mochila. Este, por sua vez, colocou o bicho nas costas, junto com o outro.

Fazendo um sinal positivo com a cabeça para Lionel, Nestor se dirigiu ao local onde Diana estava sentada. Ela ainda parecia um pouco descontrolada, passando as mãos insistentemente nos cabelos. Ele ofereceu a mão e ajudou-a a se levantar. Disse:

— O que deu em você?

— Me desculpe, Nestor, eu me distraí…

— Quieta! Quer atrair mais monstros?

Ela abaixou a cabeça, sem dizer mais nada. Nestor apagou a tocha batendo com a outra mão e retomou seu lugar à frente do grupo. Ao passar perto dele, Lionel pode ouvi-lo murmurando:

— Essa daí, sempre dando trabalho…

Diana veio logo atrás, ainda de cabeça baixa. Sentindo pena dela, ele esticou seu braço e apoiou a mão em seu ombro, como ela já tinha feito várias vezes com ele. Ela levantou o rosto e olhou para ele, parecendo ao mesmo tempo assustada e reconfortada pela interação com Lionel. Ele disse, bem baixinho, para que ninguém mais o ouvisse:

— A culpa foi minha, devia ter ficado quieto!

Ela esboçou um sorriso e negou com a cabeça, ao mesmo tempo que colocava sua mão sobre a dele. Depois levou o dedo aos lábios e retomou sua caminhada, chamando-o para fazer o mesmo com um movimento de cabeça.

***

A noite avançava.

Lionel tinha perdido todo o seu senso de direção. Depois de horas caminhando em zigue-zague pela floresta, ele não sabia mais onde estava, ou para que lado ficava a cidade. Mesmo quando a Lua cheia surgiu no céu, transformando o verde-escuro da floresta em um azul profundo, parecia tudo igual. Troncos e folhas, pedras e cascalho, moitas e espinhos. E demônios. Havia muitos deles.

Após cerca de três horas de caçada, o grupo tinha capturado uma dúzia de criaturas. A maioria eram seres pequenos, como os primeiros abatidos da noite. Um deles tinha o tamanho de um cachorro, e se parecia com um sapo de olhos enormes e que cuspia um veneno mortal. E o último que tinham caçado era tão grande quanto uma pessoa. Caminhava nas quatro patas, mas de vez em quando ficava em pé para atacar com suas garras. Era lento, mas forte, e foi difícil imobilizá-lo. Tentaram eliminá-lo ali mesmo, mas não conseguiram. Decidiram se separar. Oito caçadores levaram o monstro de volta à praça, para queimá-lo junto com as carcaças dos menores que estavam nos sacos. Os oito restantes, entre eles Lionel e Diana, estavam agora em uma clareira, descansando sentados ao redor de uma fogueira.

— Esse último deu trabalho, hein? — um dos caçadores disse.

— Pois é, você viu? Não consegui nem cortar a cabeça dele com o machado!

— A pele é muito dura! Vamos torcer para a fogueira funcionar!

Todos olharam para Lionel nesse momento. Ele disse:

— Vai funcionar! Era um Coboldo. Eles têm a pele grossa, mas é uma proteção física, não mágica!

Parecendo impressionados, os homens continuaram a conversar entre si. Lionel olhou para Diana. Ela esteve quieta a noite toda depois do incidente com o morcego, e continuava assim. Não participou de nenhum momento importante da caçada, preferindo ficar afastada. Até Lionel tinha ajudado a matar algumas criaturas, sendo certeiro com a pistola, mas ela não ajudou em nada.

Estava ocupada limpando seus ferimentos. As garras do morcego não tinham penetrado fundo, mas deixaram marcas. Sua pele era bastante clara, e o luar a deixava ainda mais pálida, de modo que os riscos vermelhos eram bastante visíveis, principalmente dois maiores, um na testa e um na bochecha. Lionel levantou e se sentou ao lado dela. Ela passava um pequeno pano branco embebido em algum líquido na face, mas não parecia acertar exatamente a localização dos ferimentos.

— Quer ajuda? — ele perguntou.

Ela se virou para ele e entregou o pequeno pedaço de pano, dizendo:

— Sim, obrigada!

Ele pegou o tecido e começou a limpar sua pele gentilmente. Ela o olhava profundamente, diretamente em seus olhos. Parecia querer dizer algo.

— Está doendo? — ele perguntou.

— Deve estar me achando uma idiota!

— Por que?

Ela levantou os ombros e abaixou os olhos, ao responder:

— Disse que mulheres não deveriam participar de caçadas, e eu estou provando que você tem razão!

— Não foi isso que eu disse, eu…

De repente, algo caiu na cabeça dela, fazendo-a se levantar e começar a gritar desesperadamente. Imediatamente, os homens caíram na risada. Atrás dela, Ignácio se curvava enquanto dava gargalhadas:

— Cuidado, Diana! Tem um morcego no seu cabelo!

Lionel olhou para o chão e viu uma enorme folha caída, que tinha sido usada pelo garoto para pregar a peça.

— Droga, Ignácio! — ela disse, parecendo muito irritada — Não tem graça! Vê se cresce!

— Urururururururu! — ele respondeu em uma voz fina e batendo os braços, imitando um demônio imaginário, enquanto voltava a se sentar do outro lado da fogueira, ainda rindo.

Ela voltou ao seu lugar e pegou rispidamente o tecido da mão de Lionel, retomando o trabalho de limpeza sozinha. Ela disse, mais para si mesma do que para Lionel:

— Idiotas!

Pensando se deveria continuar conversando ou não, Lionel a admirou por alguns instantes. Estava muito chateada e pouco a fim de conversar. Mas foi ela mesma quem quebrou o silêncio:

— Às vezes eu penso se eu não deveria…

— Eu disse que não é comum ter mulheres em caçadas — Lionel interrompeu.

— O que?

— Isso faz de você incomum, e não incapaz!

— Ora, eu não disse que era incapaz, eu apenas me distraí, só isso!

— Fui eu quem a distraiu, me desculpe!

— Não, eu… — ela parou de se limpar e colocou a mão nos olhos, apertando-os com o indicador e polegar. Depois virou o corpo para ele. Ficou olhando para suas próprias mãos por alguns instantes. Depois levantou os olhos, encarando-o de frente, e disse:

— Na verdade eu ando bem distraída nas últimas horas. Desde que você chegou!

Lionel ficou sem saber o que responder, imaginando onde ela queria chegar. Ela continuou:

— Detesto admitir, mas eu posso estar tentando parecer alguém que não sou. Eu sempre admirei sua ciência, seu conhecimento, seus escritos… e além de tudo era um caçador também! Eu pensei…

— Que poderia fazer de conta que era uma caçadora também, para me impressionar?

Ela prendeu a respiração e arregalou os olhos. Ele continuou:

— E que poderia comprar uma roupa nova? Calças justas e uma camisa apertada, para parecer mais atraente, talvez? Não dão muita mobilidade, não é? Difícil imaginar uma caçadora de verdade usando roupas assim! Acho que é por isso que você não queria vir na caçada esta noite, não é?

Ele esticou a mão até as costas dela e puxou a ponta da etiqueta que estava presa no colarinho, indicando que tinha reparado que a roupa era nova.

— E preparou meu jantar favorito? Comprou queijo Roquefort… que eu odeio, aliás!

Ela deu um sorriso sem graça, inclinando a cabeça um pouco para o lado e abaixando os ombros. Disse:

— Bem… a fonte parecia confiável! Você mentiu naquela entrevista!

— Nada disso funcionou, sabia?

— Não? — ela parecia decepcionada.

— Já suas anotações em meu artigo… Está na cara que você é uma estudiosa, uma acadêmica, e não uma caçadora! Seus conhecimentos e sua dedicação aos estudos… seu corolário… tudo isso me atraiu muito!

Ela ficou séria. Seus olhos saltavam de um olho para o outro dele, e de vez em quando desciam até sua boca. A dela estava entreaberta, e sua respiração ficou mais pesada.

— Diaaanaaaa, me ajuuuudeeeee! — uma voz lamuriosa soou atrás deles.

— Droga, Ignácio, seu moleque! Cale a boca de uma vez! — ela disse.

— Diaaaan…

— Diana! — era Nestor agora, em uma voz assustadoramente grave.

Lionel se virou de costas. Assim que viu o que estava acontecendo, levantou-se em um pulo. Diana fez o mesmo.

Um longo tentáculo tinha envolvido o pescoço de Ignácio. Ele estava em pé, e parecia um zumbi, com os braços para frente, caminhando lentamente. Nestor se aproximou, levantando sua faca para cortar o tentáculo, mas teve seu próprio pescoço também envolvido por outro membro do monstro. Deixando cair sua faca, em poucos segundos ele assumiu a mesma pose que o garoto. Levantou os braços e passou a caminhar em direção ao casal.

A criatura surgiu da escuridão logo em seguida. Parecia um enorme polvo feito de gelatina apodrecida. Estava coberta de galhos, musgo, folhas e mofo, e emitia um brilho amarelo nauseante. Os caçadores formaram um semicírculo ao redor do demônio. Apontaram suas armas e dispararam, mas as balas não surtiam efeito.

— Precisamos cortar os tentáculos! — gritou Lionel.

— É para já! — gritou Santiago, avançando em direção a Nestor.

— Não, cuidado! Ele tem quatro tentácul…

Não deu tempo de avisar. O caçador foi surpreendido por um terceiro tentáculo que surgiu em meio aos outros dois. Derrubou sua faca como se fosse um chicote e em seguida envolveu seu tornozelo, puxando-o para longe da fogueira com violência. Em poucos segundos Santiago se juntava aos outros dois zumbis, emitindo um lamento e caminhando vagarosamente.

— Cuidado agora… — disse Lionel — Precisamos…

Diana já tinha começado a se mexer. Correndo em direção à fogueira, ela chutou a brasa em direção ao monstro. Ele emitiu um chiado estranho e os zumbis pararam de andar imediatamente. Pegando um pedaço de lenha, ela correu para um lado da fogueira e disse:

— Corram para lá, rápido! — apontou para o lado oposto de onde estava — Preparem-se para cortar os tentáculos na hora certa!

Os caçadores pareceram entender o plano imediatamente e ficaram aguardando. Mas um deles estava paralisado pelo medo. Havia três tentáculos a serem cortados, e somente dois caçadores a postos, além de Diana. Lionel se mexeu. Posicionando-se a poucos passos do zumbi Nestor, levantou sua faca e ficou aguardando pelo movimento dela.

Diana balançou a tocha improvisada à sua frente, o que atraiu o quarto e último tentáculo do monstro em sua direção. Apesar de não haver mais perigo imediato, Lionel julgou que ainda não era hora de atacar os tentáculos nos pescoços dos homens, pois o monstro que os comandava fazia seus braços se agitarem violentamente à sua frente. Se tentassem algum movimento com a faca, poderiam ferir seus companheiros.

Diana continuou balançando a tocha por mais alguns instantes, e depois jogou-a no chão à sua frente. Tirou sua faca da cintura e começou a balançar o corpo de um lado para o outro. A criatura ergueu seu tentáculo como se fosse uma cobra prestes a dar o bote. A ponta chicoteava de um lado para o outro, em movimentos imprevisíveis. A qualquer momento lançaria-se à frente e surpreenderia a moça. Lionel e os demais prenderam a respiração.

Aconteceu em poucos instantes. Diana se jogou no chão e rolou no exato momento que o tentáculo desceu em um movimento brusco. Desviando-se por um triz, ela levantou a perna e pisou no tentáculo firmemente com a bota. Olhando para os demais, fez um sinal com a cabeça. Eles se prepararam, levantando suas facas. Assim que percebeu que estavam prontos, ela enfiou sua faca no tentáculo e começou a fazer movimentos circulares. Ao mesmo tempo que um líquido vermelho escuro espirrava por todo lado, a criatura emitiu um guincho alto. Era uma mistura de grito e bolhas sendo estouradas embaixo d’água. Nesse momento os zumbis pararam seus movimentos e os caçadores atacaram com suas facas.

Sabendo o que aconteceria a seguir, Lionel fechou os olhos no momento em que fazia um movimento cortante perto do pescoço de Nestor. Sangue. Sangue humano. Mais precisamente, sangue dos humanos que estava sendo sugado aos poucos pela criatura. Assim que os tentáculos foram cortados, a criatura os recolheu rapidamente para baixo da massa disforme que constituía seu corpo. Os homens caíram desfalecidos, com o sangue escorrendo pelos pescoços.

— Lionel! — Diana gritou — Na minha bolsa, ali, façam os primeiros socorros! Preciso matá-lo, ou ele voltará! — Após dizer isso, ela saiu correndo em disparada atrás do monstro.

Imediatamente ele foi até o local apontado por ela e abriu a bolsa. Encontrou gaze e medicamentos necessários para estancar o sangue e desinfectar as feridas. Distribuindo um pouco para cada homem ao seu redor, ele voltou até o local onde Nestor estava deitado. Pressionou a gaze contra os buracos profundos com uma mão enquanto derramava um líquido gelado com a outra, o que fazia surgirem bolhas brancas no local. Colocando os dedos sobre sua jugular, Lionel aliviou-se quando sentiu a artéria pulsando. O sangue parou de escorrer e ele terminou de fechar o ferimento com esparadrapo. Olhou para seus companheiros e viu que eles tinham sido igualmente bem sucedidos, até mesmo com Ignácio, que havia sofrido por mais tempo.

Nesse momento, Nestor abriu os olhos e disse, respirando com dificuldade:

— Obrigado, forasteiro!

— De nada, camponês!

— Me desculpe… obrigado, professor! — e sorriu ironicamente.

— Por que não tenta… caçador?

— Não force a barra! Ajude-me a levantar!

— Fique deitado um pouco!

— Bobagem, me ajude logo, ande!

Fazendo força com os braços, o homem se sentou. Olhou para os lados e acenou para seus companheiros que também estavam despertando de seu pesadelo forçado. Em seguida apoiou-se em Lionel e ficou em pé, cambaleante. Deu um sorriso amigável que até então Lionel não tinha visto em seu rosto.

Nesse momento, ouviram um grunhido. Era Diana, que gemia enquanto arrastava o pesado corpo gosmento puxando um dos tentáculos cortados.

— Aaargh! Ufa, me ajudem aqui!

Lionel se juntou aos demais para ajudar a puxar o pesado demônio para o centro da lareira. Nestor disse:

— O que faremos com ele? Não conseguimos levá-lo inteiro até a cidade! É muito grande!

— Podemos cortá-lo em pedaços? Perguntou Santiago.

— Não! — gritou Lionel — Ele vai se multiplicar, cada pedaço pode gerar uma criatura nova! Precisamos queimá-lo aqui!

— Vamos fazer fogo-fátuo, então! — disse Diana — Vou tentar caçar um pequeno roedor.

— Mas não temos gasolina! — disse Ignácio.

Sorrindo para Lionel, Nestor disse:

— Não tem problema, peguem galhos e folhas secas. Certo, professor?

Lionel assentiu com a cabeça. Nesse momento, Diana passou ao seu lado. Segurando-a firmemente pelo braço, Lionel disse:

— Eles chamaram por você!

— O que? — seu rosto estava banhado em sangue. O branco dos cabelos iluminados pela Lua cheia produzia um contraste surreal com o vermelho de sua face.

— Na hora do perigo, os homens chamaram por você, até mesmo Nestor! Achei que tinha dito que estava apenas fingindo ser caçadora!

Olhando para a mão que a segurava, ela sorriu, mostrando os dentes brancos que brilharam em meio ao sangue escuro. Respondeu:

— Eu nunca disse isso! Eu disse que, graças ao seu artigo, tinha me tornado a melhor caçadora da região, não se lembra?

Ela sorria desafiadoramente para ele. Ele a soltou e acompanhou com os olhos enquanto ela desaparecia na mata. Nesse momento, Nestor surgiu ao seu lado e disse:

— E ela não está brincando! É de longe a melhor caçadora que já vi!

— Mas… ainda há pouco… você reclamou…

Virando-se para ele e colocando a mão em seu ombro, Nestor sorriu amigavelmente e disse:

— Só porque está caidinha por você não quer dizer que ela esqueceu como fazer seu trabalho!

Deu uma piscadela e um tapa forte no braço de Lionel antes de se virar de costas e continuar a pegar lenha para a fogueira.

São Miguel do Vale, 28 de maio de 1861

Espiou pela porta entreaberta do quarto. Diana parecia dormir profundamente em sua cama, pois sua respiração se fazia ouvir a intervalos demorados. Tentando não emitir nenhum som, afastou-se cuidadosamente e voltou ao seu quarto. Pegou as botas mas não as vestiu. Aguardou até que estivesse do lado de fora da residência. Apreciando a luz quente do alvorecer em seu rosto depois de uma noite longa e fria, suspirou profundamente, calçou as botas e saiu caminhando pela pequena rua de paralelepípedos.

As caçadas eram eventos grotescos, mas tinham um efeito incomum. Quase sempre geravam um incomparável sentimento de estar vivo, ou pelo menos era isso o que Lionel sentia. Não era algo filosófico como a gratidão que os sobreviventes das experiências de quase-morte relatavam. Era mais visceral. Era um misto de sensação de dever cumprido, de ter salvado vidas humanas, de ter feito a diferença nesse mundo. De ter vencido a luta contra feras perigosas, demonstrando o domínio da raça humana sobre os demônios, negando-se a aceitar o destino sombrio arquitetado pelo mal que habitava sob a terra. E a visão do Sol surgindo no horizonte, trazendo cores para um mundo sombrio, encerrava a experiência de maneira avassaladora.

Estava muito cansado, mas também muito agitado para dormir. Fazia tempo que não se sentia assim, queria aproveitar um pouco. E também estava com fome. As rações compartilhadas pelos caçadores — Lionel não teve tempo de preparar e levar um lanche para a caçada — tinham servido apenas para silenciar o estômago e evitar que seus roncos atraíssem algum demônio. Precisava de uma refeição de verdade. E também queria, é claro, conversar com mais alguém além de Diana, Nestor e os outros homens da caçada. A hipótese do psicopata transmorfo estava muito longe de parecer plausível, e as inconsistências na narrativa de Diana, junto aos acontecimentos da noite passada, lhe diziam que sua presença ali tinha uma razão mais obscura do que ajudar nas caçadas.

A cidade estava acordando. Portas eram destrancadas e as pessoas saíam para as ruas, transformando o cenário tétrico da noite em uma pintura viva e agradável. Ver pessoas normais, usando roupas casuais, ocupadas em suas tarefas do dia-a-dia, ao invés de homens de roupas escuras e chapéus pontudos arrastando e queimando cadáveres, trazia um alento mais do que necessário. Suas peles não estavam sujas de terra ou sangue, ou o que quer que escorresse de dentro da podridão imunda das criaturas que agora dormiam na floresta. Estavam limpas e suas expressões eram serenas, indiferentes aos horrores da noite. Lionel não podia segurar o leve sorriso que insistia em ocupar seu rosto.

Seus pés o guiavam seguindo o cheiro da padaria. Ele não fazia a menor ideia de onde ficava, mas sentia o sabor dos pãezinhos convidando-o pelo ar. Depois de alguns minutos avistou o estabelecimento. Ao se aproximar, viu que havia muita gente esperando do lado de fora. Conversavam animadamente, aparentemente esperando a próxima fornada. Lionel parou ao lado do grupo e ficou esperando também. Depois de algum tempo, a sorridente dona da padaria saiu de dentro e falou, em uma voz animada:

— Só mais alguns minutinhos, pessoal! Já estão saindo do forno!

Os clientes acenaram com a cabeça, mas assim que a mulher avistou Lionel, seu rosto se alterou. Ficando séria, ela perguntou:

— O que quer, forasteiro?

— Er… apenas uns pães, senhora, nada mais!

— Professor?

Lionel olhou para o lado e viu Manoel. Ele ainda estava usando suas roupas de caçador, e sorria para ele. Aproximando-se, deu um abraço e um tapa em seu ombro. Lionel sentiu o cheiro ruim que exalava de suas roupas, mas disfarçou e sorriu de volta. O caçador virou-se para a dona da padaria e disse:

— Cristina, separe os melhores pães de sua fornada para nosso companheiro de caçada aqui! Ele merece!

Ao ouvir isso, a mulher arregalou os olhos e disse:

— Oh, é um caçador? Eu não sabia, me desculpe! — em seguida abriu um sorriso — Entre, por favor, espere aqui dentro!

Meio sem graça, Lionel aceitou o convite e entrou na padaria, seguido pelos rostos sorridentes das pessoas ao seu redor. Alguns lhe deram um leve tapa no ombro, e outros acenavam com a cabeça positivamente, agradecidos.

Por dentro, a padaria era muito aconchegante. Havia algumas mesas e cadeiras, e dois sofás que pareciam muito confortáveis. A maioria estava ocupada, e todos se viraram para encará-lo assim que ele entrou. Cristina o guiou até um dos sofás:

— Vou trazer um café enquanto espera, por favor fique à vontade!

— Muito obrigado! Mas eu prefiro um chá, se tiver!

— Temos sim, já trago!

Ele se encostou no sofá e precisou esperar muito pouco até que uma xícara de chá e torradas aparecessem na mesinha à sua frente. Ele engoliu as torradas e o chá como se fossem um petisco, e ficou olhando o cardápio, escolhendo o que comeria a seguir. Foi surpreendido por uma voz feminina:

— Se quiser algo que não tem no cardápio, é só pedir! Dona Cristina disse para trazer tudo o que quiser!

A garçonete que sorria para ele tinha um rosto bastante amigável. Seus cabelos longos e negros estavam presos em um rabo-de-cavalo, e seus olhos castanhos acompanhavam o sorriso da boca larga.

— É muita gentileza! Agradeço, mas eu queria apenas um pão com manteiga, se já tiver saído do forno!

— Já estão saindo!

— Qual é o seu nome?

— Sofia!

— Muito prazer, Sofia, eu sou Lionel!

— Ah, sim. Você é um caçador, não é?

— Sou eu! Parece que minha fama me precede! — ele disse, abrindo os braços.

— Fique à vontade, Lionel, se precisar é só me chamar!

— Er… Sofia?

Ela já tinha começado a se afastar, mas voltou imediatamente.

— Posso te perguntar uma coisa? — disse Lionel.

— Sim, é claro! Se eu puder responder!

— Deve saber o motivo para eu estar aqui, não?

Ela pareceu assustada ao responder:

— Bem, não exatamente…

— Eu vim para ajudar na caçada!

— Sim, foi o que eu ouvi!

— Mas você sabe exatamente o que eu vim caçar?

— Na verdade, eu…

Neste momento foram interrompidos por Cristina, a dona da padaria, que trazia um grande pedaço de pão caseiro e uma porção de manteiga em um prato.

— Pode deixar, Sofia, eu mesma o sirvo!

A garçonete se afastou, enquanto Cristina colocava a refeição na mesa. Para surpresa de Lionel, ela se sentou no sofá à sua frente e começou a cortar uma fatia do pão. Sem cerimônia, ela falou:

— O que quer saber?

Cristina era uma mulher de idade avançada e cabelos claros e encaracolados. As rugas em seu rosto diziam que já tinha vivido muito, mas o olhar era jovem e aguçado. Sentindo-se acuado, Lionel disse:

— Desculpe-me, eu não quis parecer enxerido…

— Não precisa se desculpar! Está aqui para ajudar na caçada, então devemos tudo a você! — entregou a fatia de pão com manteiga ao seu cliente — E aos demais, é claro! Nossa cidade não existiria sem homens valorosos como vocês para nos livrar daquelas coisas!

— Obrigado, eu tento ajudar no que posso!

— Então, eu também quero ajudar! Diga-me, o que quer saber?

Dando uma mordida no pão e tentando parecer displicente, Lionel disse:

— Diana já deve ter lhes contado sobre o transmorfo que estamos caçando, eu suponho?

— Desculpe-me? Trans… o que?

Mastigando e encarando-a profundamente, Lionel esperou alguns segundos antes de falar:

— Transmorfo, é o que sugerem os rumores, não?

— Não sei dizer… que rumores seriam esses?

— Os rumores que me trouxeram até aqui! As mortes na capital, as jovens garotas… não sabe do que estou falando?

Parecendo genuinamente preocupada, Cristina se aproximou e disse:

— Não, eu não sei de nada disso! Meu Deus, é sério então? Eu estava achando que…

Ela tinha mordido a isca. Lionel parou de mastigar para ouvir o que ela diria a seguir. Mas ela simplesmente parou de falar, parecendo desconfiada. Lionel resolveu mudar de estratégia:

— Não precisa ficar preocupada, na verdade estamos investigando ainda, e as pistas parecem não levar a conclusão alguma — aproximando-se dela e dando um sorriso, completou — Eu, pessoalmente, acho que essas mortes não tem nada a ver com demônios, são obra de um doente mental lá da capital!

Cristina pareceu ficar aliviada ao ouvir isso:

— Oh, isso é bom. Tem certeza?

— Eu tenho quase certeza! — tentou parecer despreocupado — Diana, no entanto, tem uma outra teoria. Ela acha que é um demônio que vai matar uma garota desta vila amanhã à noite!

Cristina levou as mãos ao peito. Lionel disse:

— Mas ainda estamos investigando, como eu lhe disse antes! Pode ser que não seja nada!

Ele terminou de comer vagarosamente sua fatia de pão. Limpou os dedos e começou a cortar mais uma fatia. A mulher parecia preocupada, mas confiante, ao dizer:

— Espero que você esteja certo, e que ela esteja errada!

— Eu também, mas pelo pouco tempo que estivemos juntos, já deu para perceber que ela é bastante astuta!

— Ah, sim, ela é muito inteligente, sim!

— Se ela morasse na capital, acho que estaria fazendo sucesso em alguma universidade de prestígio. Conheci muitas pessoas inteligentes, e acho que ela se daria bem no mundo acadêmico!

— É, acho que esse dom está na família!

— Família?

— Sim, a irmã dela foi para a capital, estudar! Ela não te falou?

— Não, não falou! Irmã?

— Sim, sua irmã mais velha, Anabela. Ela se mudou para a capital e foi estudar astronomia.

Ao ouvir aquele nome, Lionel teve um sobressalto. Tentou não demonstrar reação ao responder:

— Interessante, e Diana nunca quis seguir os passos da irmã? Ela certamente tem o talento…

— Na verdade…

Ela parecia relutante em continuar seu relato. Lionel tentou não exibir expressão alguma no rosto exceto a de uma curiosidade casual. Cristina disse:

— No começo, não! Diana sempre foi feliz aqui, ajudando nas caçadas. E quando Anabela se mudou, ela parecia contente. Na verdade, elas brigavam muito, coisas de irmãs, sabe, aquela competição? — deu um sorriso ao dizer isso — Então foi até bom elas se separarem um pouco. Mas aí, de uns seis meses para cá, Diana mudou. Quase não sai de sua casa, fica estudando o tempo todo…

— Sei…

Cristina parecia ter percebido algo, quando disse:

— Agora que você falou, acho que pode ser isso mesmo que está acontecendo com nossa Diana! Será que ela quer ir para a universidade?

— O chamado da ciência chega quando menos se espera! Eu mesmo, quando era um jovem caçador, decidi que minha vida tinha que ser mais do que aquilo ali. Resolvi estudar e aprender, e nunca mais parei!

— Bom, se ela de fato for embora, é uma pena! Gostamos muito dela!

— Mas não é como se ela fosse embora para sempre! Anabela, por exemplo, nunca volta para visitar a irmã?

Cristina fechou o rosto imediatamente ao responder:

— Não! Depois que ela se mudou para a capital, parece que se esqueceu da gente!

— Sinto muito!

Ficaram em silêncio por mais alguns segundos. Sentindo que não havia nada mais para perguntar, Lionel disse:

— Bem, senhora Cristina, eu preciso descansar um pouco agora, o sono já está batendo forte. Seu pão é uma delícia! Quanto eu lhe devo?

— Não é nada!

— Eu insisto!

— Não, eu é que insisto! Muito obrigada por ajudar, de verdade! E tomara que você esteja certo sobre o monstro!

— Bom, muito obrigado então! E não se preocupe… depois de nossa conversa, tenho ainda mais certeza de que não há nenhum perigo novo para esta cidade!

Ela sorriu aliviada e se levantou. Agradecendo mais uma vez, pegou a bandeja e foi embora.

Lionel saiu da padaria e não conseguia parar de pensar naquele nome.

Anabela.

Estudante de astronomia.

Ele conhecia uma estudante de astronomia chamada Anabela. Conhecia muito bem.

***

Assim que saiu da padaria, Lionel continuou perambulando. Tinha esperança de visitar uma biblioteca, onde pudesse encontrar os originais das notícias das mortes das garotas e obter uma cópia que não tivesse sido adulterada. Não encontrou nenhuma, mas mesmo que houvesse, dificilmente conseguiria exemplares do jornal da capital. Também tentou conversar com mais moradores sobre os tais rumores, mas ninguém parecia saber muitos detalhes, exceto que Diana tinha convidado Lionel para ajudar nas caçadas. E ninguém parecia preocupado, também. Se esses rumores eram verdadeiros, definitivamente não estavam sendo levados muito a sério pela população.

Tendo visitado todo canto da cidade, resolveu voltar para a casa de Diana. Já era quase hora do almoço, e ela ainda estava dormindo. Como ele também estava muito cansado, deitou-se na cama e adormeceu imediatamente.

Foi acordado por um toque leve em seu ombro. Diana estava sentada na cama ao seu lado. Ela segurava um candelabro que iluminava o quarto com uma luz fraca e amarelada.

— Diana? — ele disse, em um susto — Nossa, acho que dormi demais, que horas são?

— Já anoiteceu, mas não se preocupe! Você parecia cansado demais, deixei você dormir!

— E a caçada?

— Os homens já saíram duas horas atrás!

— Nossa, eu dormi tudo isso? Que horas são?

— Não se preocupe, já disse! — ela sorria para ele enquanto acariciava seu ombro — Eu já tranquei toda a casa, não precisamos sair hoje à noite!

Incomodado por ter dormido tanto, Lionel se levantou e foi lavar o rosto. Diana se levantou e disse:

— Eu já preparei o jantar e o vinho. Sem queijo, desta vez!

Lionel se virou para encará-la. Ela estava diferente. Não estava usando camisa e calças, como tinha visto até então, e sim um bonito vestido vermelho. Não era um traje de gala. Era simples e elegante, e deixava-a com um aspecto bastante atraente, principalmente devido ao grande decote que deixava muita pele à mostra. Seus cabelos estavam presos sobre a cabeça, mas algumas mechas caídas adornavam seu rosto. Se não fosse pelas cicatrizes vermelhas na testa e bochecha, ele jamais imaginaria que aquela era a mesma pessoa da noite anterior.

— Você está… — não conseguiu completar a frase.

Levantando um pouco a saia com a mão livre, ela disse:

— Eu resolvi mudar um pouco o visual, já que não vamos caçar hoje à noite… resolvi experimentar algo diferente para o jantar!

— Devia ter me acordado! Nestor e os outros estavam feridos, eles podem precisar da nossa ajuda!

— Eles estão ótimos, já passaram por coisas bem piores!

— Mesmo assim, eu vim aqui para ajudar, e não para ficar confortável, tomando vinho e comendo queijo enquanto eles se arriscam lá fora!

— Não tem queijo hoje!

— Droga, Diana, eu quis dizer…

— Você foi muito útil ontem! — ela interrompeu — Mas precisamos de você aqui, para pensar em uma forma de capturar e matar o monstro do eclipse! Só nós dois podemos decifrar isso, Lionel, ainda não percebeu?

Não querendo começar uma briga naquele momento, Lionel resolveu baixar o tom da conversa. Suspirou e disse:

— Está bem, você venceu! Pode me dar licença por alguns minutos?

— É claro, fique à vontade!

Dizendo isso, ela deixou o candelabro sobre uma mesa e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Lionel olhou-se no espelho e respirou fundo, procurando se acalmar. Havia muita coisa que ele pretendia descobrir, e para isso ele teria que jogar o jogo dela. Arrumou os cabelos o melhor que podia, escovou os dentes e saiu do quarto.

Diana o esperava no sofá, e segurava uma taça de vinho na mão. Ao seu lado, havia uma grande quantidade de papéis amontoados. Ela segurava um deles com a mão livre, aparentemente estudando seu conteúdo. Ao vê-lo, exclamou:

— Eu tenho algumas teorias que gostaria de discutir com você. Pensei em algumas formas para eliminarmos o monstro, já que o fogo-fátuo provavelmente não…

— Desculpe-me, Diana…

— O que? — ela levantou o rosto.

— Pelo jeito como agi antes, me desculpe! Só estou um pouco frustrado por não ajudar na caçada!

Ela o olhou seriamente agora:

— Eu achava que você era diferente dos outros!

— Como assim?

— Eu já te disse, ninguém aqui dá a mínima para esse monstro perigoso que estou rastreando! Só ficam preocupados em sair e cortar cabeças e queimar carcaças, toda noite! Achei que você era diferente!

— Bem, eu…

— Se quiser sair, pode ir! A floresta fica ao norte, basta seguir a trilha principal, tenho certeza que encontrará o grupo mais cedo ou mais tarde!

Ela voltou à sua leitura, parecendo bastante chateada. Querendo amenizar o clima, Lionel disse:

— Desculpe, sinceramente!

— Lionel, você acredita em mim ou não?

— Não me peça para ter fé, eu sou um homem da ciência, e você sabe disso!

— Então acha que eu sou uma tola por acreditar nisso?

— Só acho que nossas hipóteses até agora são pouco plausíveis! Mas ainda não estou pronto para descartá-las!

Diana pareceu ficar menos aborrecida ao ouvir isso. Lionel precisava que ela estivesse em um humor melhor para questioná-la, então decidiu mudar de assunto.

— Podemos discutir suas ideias depois do jantar? Eu acordei faminto!

Ela sorriu e se levantou. Colocou sua taça de vinho sobre a mesa e disse:

— Eu preparei uma janta simples, não espere muito, tudo bem?

— Tudo bem, eu não esperaria que fosse boa cozinheira!

Ela já estava na cozinha quando respondeu:

— Não? E posso saber por que?

— Os caçadores caçam, mas não preparam a comida!

— Mas eu não caço perdizes, e sim demônios! — ela voltou, trazendo uma bela ave assada, acompanhada por legumes.

— Hum, parece delicioso!

— Espere até provar! Você traz o vinho?

Lionel ajudou-a a colocar a mesa e eles se sentaram para começar sua refeição. De fato, estava tão delicioso quanto parecia, e ele a parabenizou por suas habilidades culinárias. Sempre sorrindo, Diana explicou como fez o preparo, e ele não pode evitar de admirar as belas curvas de seu rosto e seu corpo enquanto ela falava.

— Bem, estou definitivamente satisfeito! — ele disse após engolir o último gole de vinho que cabia dentro de si.

— Tem certeza que não quer mais uma porção?

— Absoluta!

— Então sente-se no sofá enquanto eu tiro a mesa!

— De maneira alguma, eu ajudo!

— Não, por favor! Estou ansiosa para que você veja algo! É a primeira folha que deixei separada!

Lionel foi até o sofá e se sentou ao lado dos papéis que ela tinha trazido. A folha separada a que ela se referia era um artigo de uma revista especializada em caçadas. O texto versava sobre transmorfos, e estava cheio de rabiscos por toda parte.

— Onde encontrou isso? — ele perguntou.

Diana estava ocupada indo e vindo da cozinha, mas respondeu mesmo assim:

— Quando eu pensei que meu monstro poderia ser um transmorfo, pedi a um amigo para que trouxesse algumas revistas da capital. Eu nunca tinha visto nada referente a transmorfos na biblioteca da região.

— Tem uma biblioteca aqui?

— Não em São Miguel, mas na cidade vizinha de Guião tem, por que? — ela parou o que estava fazendo para olhar para ele.

— Por nada… isso é fascinante, eu nunca tinha lido um estudo tão detalhado sobre transmorfos!

— Depois da nossa conversa ontem, eu reli esse artigo e acho que podemos descartar sua hipótese. Transmorfos não mantêm a consciência entre uma fase e outra, então a ideia de um demônio que está sempre ativo dentro de um humano seria algo sem precedentes.

— Até aparecer o primeiro!

— Achei que não era um homem de fé, professor!

Ele sorriu e continuou a olhar o texto. Reparou em algo estranho. Remexendo nos demais papéis, encontrou o exemplar anotado de “A arte do caçador”. Comparando os rabiscos, percebeu que a caligrafia era bem diferente. Perguntou:

— É você quem fica rabiscando nos artigos? Tipo esses aqui? — e mostrou os dois artigos para ela.

— Sim! — ela pareceu envergonhada — Gosto de deixar minhas ideias escritas tão logo as tenho, assim não perco nenhum fio de raciocínio!

— A caligrafia está diferente!

— Ah, sim, é que eu li seu artigo há muito tempo. Já esse outro foi nos últimos meses, minha letra mudou. A sua não?

— E quantos anos você tinha quando leu meu artigo?

— Ah, acho que uns treze anos. Faz muito tempo!

— E você já tinha uma queda por mim? — levantou o artigo e apontou para o pequeno coração que adornava o pingo na letra “i” de seu nome.

Ela sorriu e disse:

— Bem, já nem vou mais disfarçar! Você foi uma espécie de paixonite adolescente, já admiti! Mas agora meu interesse mudou, eu juro!

— E o que sentiu quando sua irmã lhe disse que estávamos namorando?

Diana derrubou a taça de vinho que estava segurando na mão, estilhaçando-a no chão. Arregalou os olhos e abriu a boca em espanto.

— O-o… o que d-disse?

— Sua irmã! Anabela! Nós namoramos por um tempo, você sabia disso, não sabia?

Ela ficou paralisada, sem emitir som algum. Apenas o olhava. Lionel a encarou, aguardando o que ela diria a seguir.

— Já sabia que Anabela é minha irmã?

— Eu não fazia ideia, vocês são bem diferentes. Mas quando a dona da padaria me falou sobre ela, a semelhança se tornou muito óbvia na minha mente!

— Esteve na padaria?

— Sim, eu fui tomar café hoje de manhã, depois da caçada. Estava com fome.

— E o que mais ela falou? Cristina?

— Nada demais! Na verdade, nem ela nem ninguém na cidade parece saber muita coisa sobre esses tais rumores.

A respiração de Diana ficou acelerada.

— V-você saiu por aí conversando com todo mundo?

— Sim, qual é o problema?

Respirando fundo e tentando claramente se acalmar, Diana disse:

— Bem, é como eu disse, ninguém dá muita bola para a minha teoria…

— De fato! E ninguém soube explicar direito porque você me chamou aqui!

— Mas eu falei, todos sabem, você…

— Vim ajudar nas caçadas, sim, é o que todos dizem!

— B-bem, eu… eu…

Ela parecia aterrorizada. Lágrimas de terror pareciam querer cair a qualquer momento de seus olhos. Estava prestes a ser desmascarada, e Lionel decidiu chegar logo aonde queria.

— Também não souberam dizer porque você acha que um suposto monstro que parece atacar exclusivamente na capital resolveu vir para São Miguel do Vale para encontrar sua próxima vítima!

— S-sobre isso, eu t-tenho uma t-teoria…

— Eu também! Posso falar a minha primeiro? Na verdade é uma terceira hipótese, que não discutimos antes.

Ela não disse nada, então Lionel falou, calmamente:

— Uma garota sai do interior e vai até a capital para estudar. Ela deixa para trás uma irmã mais nova. Sozinha e presa em uma cidade pequena, a irmã mais nova sofre com o abandono e com o ciúme, pois irmã mais velha tem tudo o que ela sempre quis. Em determinado momento, chega a notícia de que a irmã mais velha está namorando. E seu amor é justamente o homem que a irmã mais nova sempre admirou, desde a adolescência, e ela sabia disso. Elas brigam, e não se falam mais depois disso. E é aqui que eu entro na história de vocês, sem saber, é claro. Mesmo assim, sinto muito!

Lionel parou de falar para medir a reação de Diana. Ela continuava paralisada, ouvindo atentamente, com a boca aberta. Lionel continuou.

— Mas vamos à hipótese! Não há monstro, nem psicopata. Na verdade, as mortes na capital não têm relação entre si. Sequer são todas mulheres jovens e belas. São uma invenção da irmã mais nova, elaborada para atrair esse homem para perto de si e tomar de volta o que é seu de direito! Além, é claro, de conseguir provar que ela é tão inteligente quanto a irmã!

Ficou mais um pouco em silêncio, antes de encerrar seu monólogo:

— Não é uma hipótese muito mais plausível?

Diana apoiou-se na cadeira e se deixou cair com um barulho forte. Ela começou a olhar para as próprias mãos, desconcertada. Lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto.

Lionel ficou em silêncio por um tempo. Não sabia o que aconteceria a seguir. Diana não falava nada. Nem confirmava e nem negava sua dedução, o que de certa forma servia como sua confirmação. Resolveu quebrar o silêncio:

— Ela me largou, sabia?

— O-o q-quê disse?

— Anabela me deixou!

— Anabela te deixou? — Diana parecia surpresa com a notícia.

— Sim. Mas suponho que se vocês estavam brigadas ela não se daria ao trabalho de lhe contar.

— Como foi a separação?

Lionel levantou os ombros e disse:

— Ela me deixou sem aviso, sem nada. Um dia ela estava lá, e no dia seguinte ela se foi!

— Sem dar nenhuma explicação?

— Sem dar nenhuma explicação!

— Mas vocês estavam brigando, ou algo assim?

— Sim, a coisa já não vinha bem. E eu a entendo, de verdade! Eu confesso que não sou uma pessoa fácil! Eu acho que eu mesmo não me aguentaria por muito tempo — sorriu timidamente.

— E quando foi que isso aconteceu?

— Há alguns meses!

Diana parou de chorar. Enxugou os olhos com as mãos e se levantou. Foi até a cozinha, deixando Lionel sozinho na sala. Depois de um tempo, ele perguntou:

— Diana, está tudo bem?

Ela voltou trazendo um copo de água na mão. Ela tremia. Sentou-se novamente na cadeira e bebeu devagar.

— Eu preciso me deitar!

— Está tudo bem? — repetiu Lionel — Quer que eu me retire? Posso procurar aquela estalagem, ou me juntar aos outros na caçada, acho que ainda dá tempo!

— Não, não! Eu estou bem, é só… — olhou para ele e deu um sorriso triste — olha só… eu nem sei o que dizer nesse momento!

— Não precisa dizer nada!

— Eu preciso ficar sozinha, vou para o meu quarto. Mas por favor, fique! É perigoso sair agora, e ninguém vai abrir a porta para você! — ela tinha retomado seu olhar amigável e um sorriso, apesar de tímido.

— Está bem, boa noite, Diana!

— Boa noite, Lionel!

Ela se levantou e foi até o quarto sem olhar para trás. Fechou a porta e a trancou.

São Miguel do Vale, 29 de maio de 1861

Mais uma vez Lionel passou a noite em claro. Além de ter dormido praticamente o dia todo, houve o confronto com Diana, que o deixou bastante agitado e com pena da moça. O barulho dos caçadores e o mau cheiro da fogueira tampouco ajudaram. Ficou a noite toda planejando a sua viagem de volta. Arrumaria sua bagagem e partiria assim que o dia raiasse. Mas o sono chegou junto com os primeiros raios de Sol, e ele resolveu dormir um pouco.

Acordou perto do meio-dia, a julgar pelo brilho da luz do dia. Espreguiçando-se, levantou e foi se lavar. Arrumou sua bagagem e deixou tudo pronto para ir embora. Suspirando, abriu a porta do quarto e saiu, mas não encontrou ninguém. Diana não estava na sala, nem em seu quarto e nem na cozinha. Depois de procurar por um tempo, encontrou seu bilhete sobre a lareira:

“Querido Lionel, eu fui dar uma volta. Não devo demorar. Por favor, me espere! D.”

Coçando a cabeça, pensou no que faria a seguir. Não queria sumir sem falar com Diana uma última vez, então decidiu esperar. Sentou-se no sofá e começou a ler o artigo sobre os transmorfos que ela tinha separado na noite anterior.

Apesar de saber que tudo não passava de um embuste, e que não havia nenhum transmorfo rondando aquela região, achou o artigo interessante. Era de um pesquisador renomado, que ele conhecia e sabia se tratar de um cientista sério. As conclusões eram bem fundamentadas em evidências e casos conhecidos. Uma delas era que, de fato, parecia inegável que os transmorfos não tinham qualquer tipo de compartilhamento de consciência entre humano e demônio. Também havia pontos em aberto, como sobre a forma mais eficiente de se matar um transmorfo. Fogo-fátuo ou sangria não eram suficientes, segundo o autor. Anotado na caligrafia de Diana havia algumas frases: “Há elo fundamental entre humano e demônio? Se existir, talvez essa seja a chave para a eliminação bem sucedida”.

Os demais papéis não traziam nada de muito interessante, mas denunciavam que ela tentava levantar questionamentos e dúvidas sobre como eliminar transmorfos. Não havia conclusões ou teorias, apenas um catado de informações, certamente destinadas a estimular as discussões e nutrir o interesse de Lionel por ela. Ele tinha que admitir que Diana era muito inteligente. Toda a história tinha sido muito bem elaborada, e ela se dedicava aos estudos de maneira bastante aprofundada. A leitura daqueles textos não era algo superficial, apenas para fazer de conta. Ela era uma cientista de fato. E ela fez parecer que acreditava realmente na iminência de capturarem um transmorfo.

Ele tinha se sentido atraído por ela, e isso ele também não podia negar. Era bonita, simpática, corajosa e inteligente. Não tinha como não gostar disso. Mas o fato de que ela tentou enganá-lo desde o início levava o sentimento na direção oposta.

Diana demorou para voltar. O Sol já começava a descer quando ela apareceu. Usava suas roupas tradicionais, calças e camisa branca, e um casaco por cima. Seu rosto estava sereno, e ela parecia muito cansada.

— Oi! — ela disse — Obrigada por me esperar! — ela apontou para sua bagagem feita, que estava ao lado da porta.

— Eu não iria embora sem me despedir!

— Sinto muito, por tudo! Não queria que fosse embora!

— Eu sei!

— Quer que eu o acompanhe até a carruagem?

— Não precisa, obrigado! E obrigado por tudo, pelos jantares… pelo queijo — sorriu — e pelas conversas… você deveria publicar aquele artigo hein?

— Obrigada pelo incentivo! Mas acho que vou voltar às caçadas somente! Pensei muito, sobre tudo, desde ontem à noite!

— Tem certeza? Aquele artigo sobre os transmorfos é bem interessante, eu não tinha lido ainda!

— É? O que achou das conclusões? Achei que faltou um fechamento melhor.

— São muito bem fundamentadas! E concordo com você, há um erro ali, no final!

— Sobre remover o elo fundamental entre humano e demônio? — ela pareceu ficar mais animada.

— Bem, sobre isso, não sei. Mas sobre a sangria, ele definitivamente está errado! Eu li um relato de um transmorfo que foi queimado com sucesso após uma sangria completa. Está nas minhas referências, posso te mandar o artigo assim que chegar em casa! Não me lembro se o estudo era conclusivo, mas definitivamente merece ser estudado mais a fundo!

Ela ficou séria por um instante, e depois sorriu, um sorriso aberto, franco.

— Sério?

— Sim, pode esperar! E não importa o que aconteça, nunca deixe de estudar!

— Agora eu entendo a minha irmã! Você é uma pessoa fascinante! Sinto muita falta de ter alguém assim por aqui. E eu sinto muita falta dela!

Ela abaixou a cabeça e começou a chorar. Relutando, sem saber se devia fazer algo, Lionel ficou parado por alguns instantes. Mas ele não resistiu por muito tempo. Deu alguns passos, aproximando-se dela, e a abraçou, deixando que ela chorasse em seu peito. Passando a mão sobre seus cabelos lisos, ele podia sentir seu perfume doce e inebriante.

Ela levantou os olhos e o encarou. Estavam muito próximos, os lábios quase se tocando. Ela estava ofegante, e seus olhos devoravam cada centímetro do seu rosto. Lionel disse:

— Eu preciso ir embora, Diana…

— Por favor, fique mais um pouco…

— Não, eu…

Ela se afastou e o puxou pela mão, guiando-o até seu quarto. Sem lutar com muita força, ele se deixou levar, inebriado pela beleza dela. Assim que entraram, ela fechou a porta e foi até um dos lados da cama. Começou a desabotoar a camisa, sem tirar os olhos dele. Tirou-a primeiro. Em seguida desabotoou as calças e as abaixou. Subiu na cama e ficou de joelhos, antes de tirar o resto da roupa e se deitar.

— Fique! — ela disse.

Lionel estava paralisado, sem saber o que fazer. Sua razão o pedia educadamente para se retirar, mas seus instintos gritavam para que se juntasse a ela. Suas pernas venceram o dilema e o levaram até a cama. Ela deu um sorriso maravilhoso e o puxou para seu lado. Deitou-o na cama e subiu em cima dele. Desabotoou sua camisa e a retirou delicadamente. Passando as mãos pelo seu peito, ela se aproximou de seu ouvido e sussurrou:

— Obrigada por ficar!

— De nada! — ele sorriu.

— Espere aqui um pouquinho, eu já volto!

— O que vai fazer?

Ela não respondeu. Apenas sorriu e se levantou, deixando-o deitado na cama. Ela foi até o banheiro, mexendo os quadris sinuosamente e olhando para trás de vez em quando. Ele sorriu e colocou as mãos atrás da cabeça. Assim que ela desapareceu, ele ficou pensativo. Não era certo o que estava fazendo. Ela o desejava, disso não havia dúvidas, então ele estava apenas atendendo ao seu desejo. Mas ele não tinha intenções de ficar com ela. A não ser que ela se mudasse para a capital, como tinha sugerido Cristina. Isso poderia funcionar. Mas pensaria nisso depois.

Virou-se para o lado e viu, no pequeno móvel que ficava ao lado da cabeceira da cama dela, um porta-retratos abaixado. Pegou-o nas mãos e admirou a jovem que sorria para ele. Anabela. Era tão bonita quanto Diana. Os cabelos eram diferentes. Anabela tinha os cabelos negros e meio enrolados, bem diferentes dos cabelos lisos e brancos da irmã. O namoro não durou muito, mas eles tinham sido muito felizes juntos. Passavam horas conversando e observando o céu. Ela estudava astronomia, e ele também achava o estudo dos astros muito interessante. Tinham combinado até de observar o eclipse lunar, mas o relacionamento terminou antes disso.

Olhando o porta-retratos com mais atenção, ele reparou que havia um papel por trás da foto. Olhou para o banheiro, e vendo que Diana ainda não tinha retornado, abriu-o e retirou o papel de seu lugar. Era um recorte de jornal, uma foto muito parecida com a do porta-retratos.

— Ela é linda, não é? — disse Diana ao surgir na porta.

— Bem, não acho apropriado falar dela agora! Só estava bisbilhotando.

Diana sorriu e caminhou de volta para a cama, subindo de novo em cima dele. Ela retirou o porta-retratos de sua mão e o recolocou no móvel ao lado. Ele a segurou pela cintura e começou a acariciá-la, passando a mão em suas coxas. Ela abaixou o rosto novamente e sussurrou em seu ouvido:

— Tem razão, não vamos falar dela!

— O que você foi fazer no banheiro?

— Que curioso! O que se faz no banheiro, oras!

— E por que tem um recorte de jornal no porta-retratos da sua irmã?

Ela afastou o rosto e o olhou bem de perto. Sorrindo, ela disse:

— Você é muito curioso! É por isso que é um bom cientista!

— Obrigado!

— Feche os olhos!

Lionel obedeceu, apreciando enquanto ela acariciava seus cabelos. Ele apalpava e apertava cada centímetro de sua pele macia, e quase não percebeu quando uma agulha penetrou em seu pescoço. Colocou a mão o mais rápido que pôde, mas ela já tinha retirado a seringa.

— O que…

Enquanto ele sentia a consciência fugindo, Diana o encarava com seu rosto sério, observando-o de cima, aos poucos desaparecendo entre as nuvens que lhe embaçavam a visão.

***

— Prenda direito!

— Está bem preso!

— Deixe-me ver!

Lionel acordou com a última frase. Tinha sido dita por Diana. Ao abrir os olhos, viu-a puxando as cordas que prendiam seus pulsos com firmeza.

— Coloque mais uma, acho que não vai aguentar!

— Diana! — Lionel murmurou, com dificuldade para abrir a boca.

Ela olhou para ele, mas rapidamente desviou os olhos e virou-se de costas.

— O que estão fazendo comigo?

— Não falem com ele! — era Nestor — É melhor assim!

Olhou ao redor, tentando entender onde estava. Estava escuro, mas reconheceu as grades de metal retorcido e os bancos de pedra quebrados. Era o centro da praça. Uma grande trave de madeira tinha sido presa entre dois postes de metal. Suas mãos estavam firmemente amarradas na trave, e dois caçadores estavam reforçando os nós em seus pulsos, conforme tinha sugerido Diana. Embaixo dele, havia uma pequena pirâmide feita com galhos secos e palha. Um rato morto em decomposição exalava um cheiro terrível, e suas entranhas derretidas escorriam sobre a madeira.

— Oh, Deus! — Lionel exclamou — O que pensam que estão fazendo?

Ninguém respondeu. Lionel tentava se desvencilhar, mas não conseguia. Tentou chutar a pirâmide, mas percebeu que seus pés também estavam presos.

— E a gasolina, Nestor? Não estão com pressa hoje, seus desgraçados? Eu não sou nenhum monstro para ser queimado!

Nestor se aproximou. Ergueu o rosto e apontou seu único olho para Lionel. Disse:

— O pior monstro é aquele que não acha que é um monstro!

— Monstros são vocês! Eu não fiz nada!

Diana apareceu ao lado de Nestor. Olhando nos olhos de Lionel, disse:

— Sei que você não é um monstro, Lionel! Mas daqui a pouco ele vai tomar conta do seu corpo!

— O que está dizendo? Eu…

— Me desculpe por isso!

— O que…

Ela pegou uma faca do cinto e cortou um de seus pulsos, produzindo uma dor imensa. Lionel gritou. Sem poder se mexer, ficou acompanhando enquanto ela caminhava até o seu outro braço e fazia o mesmo com seu outro pulso.

— Sua desgraçada, maluca! — Lionel gritava e chorava de dor.

— É suficiente, Diana? — perguntou Nestor — Não é melhor abrir mais um corte?

— Vamos esperar para ver! — ela respondeu.

— Esperar o que? — Lionel perguntou.

— A sangria terminar! — ela respondeu secamente.

Lionel fechou os olhos, fazendo força para não desmaiar. Sentia o sangue escorrendo pelos braços em grande quantidade. Em breve perderia a consciência.

— Diana! — Lionel suplicou — Por que está fazendo isso?

Ela tinha virado de costas e estava dando ordens aos outros caçadores, pedindo para que trouxessem mais lenha.

— Diana!

Ela se virou para ele, com a cabeça baixa, e disse:

— Há uma quarta hipótese, que você sequer considerou! E que eu não fiz questão de compartilhar, é claro!

— Hipótese? Do que está falando?

— Nunca acreditei de fato na história do psicopata transmorfo. Você tinha razão, é muito improvável! E eu sempre soube que os transmorfos não compartilham a consciência com o demônio no qual se transformam! Você não sabe que se transforma em um monstro. Se soubesse, se lembraria dela!

— Dela? Quem?

— Anabela!

— Ora, é claro que eu me lembro dela!

— Mas você acha que ela terminou com você, não acha?

— Sim, porque foi o que aconteceu!

— Não, você a matou! Arrancou seu rosto com os próprios dentes e garras! Mas não se lembra, pois não era você, era o demônio!

— Não, não pode ser! Eu… eu me lembraria!

— E a sua terceira hipótese? A de que eu quis atraí-lo aqui e seduzi-lo para me vingar da minha irmã? — ela sorriu com desdém — Bem, a primeira parte é verdade, eu tentei seduzi-lo. Mas eu não esperava que você soubesse que Anabela era minha irmã. Achei que se descobrisse, você iria embora e meu plano falharia. Por sorte, você decidiu ficar!

Lionel estava sentindo um formigamento tomar conta de todo seu corpo. Diana continuou, agora olhando para ele:

— A hipótese mais provável, pois é a verdade, é a seguinte: um transmorfo causou aquelas mortes. Mas não havia premeditação. Elas eram simplesmente as namoradas dele. Suas namoradas, Lionel. Você se sente atraído por mulheres inteligentes, e elas tiveram o azar de estar junto a você no momento da sua transformação.

— Mas, mas… eu me lembraria…

— Sim, por isso eu recortei as fotos das notícias do jornal, para que você não as reconhecesse.

— Eu não as matei! N-não…

— Sei que não, Lionel! Você não é um monstro! — ela se aproximou e colocou a mão em seu pulso delicadamente — Mas você as levou para observar o eclipse. Sempre gostou de astronomia. E aí ele as matou. E ele está chegando novamente, o eclipse está próximo. Sabe que não podemos deixá-lo atacar mais ninguém! — em seguida puxou a pele dele violentamente, abrindo a ferida e apressando a saída do sangue.

— E vai me matar assim?

— Sangria e fogo-fátuo. Era a chave final do quebra-cabeça, a única coisa que eu não sabia, e que você finalmente confirmou, agora há pouco! Primeiro capture a mente, depois a presa!

— Não, não! Não acredito! E-eu… — sentiu seus olhos se fechando.

— Vai desmaiar! — alguém disse.

— Não, não vai, olhem! — era Nestor.

Lionel abriu os olhos e olhou para cima. Entre as poucas nuvens que flutuavam no céu, viu a Lua começando a ficar vermelha. Olhou para seu braço e viu, no mesmo tempo em que sentiu, pelos grossos brotando em sua pele.

— O-o q-que está acontecendo comigo?

— Está se transformando!

— A sensação de desfalecimento de antes começou a melhorar, à medida que seu braço aumentava de tamanho e mais pelos surgiam. Eram pelos dourados, que brilhavam à luz das lamparinas da praça.

— Acendam o fogo! Agora! — gritou Diana.

Lionel ouviu um estampido quando o gás da carcaça abaixo de si, que estava acumulado dentro da pirâmide de galhos, explodiu ante a faísca produzida por um dos caçadores. As chamas acenderam e logo assumiram uma cor roxa, indicando que o procedimento tinha sido muito bem feito. O fogo-fátuo rapidamente subiria alto em direção ao céu.

O corpo de Lionel não parava de mudar. Seu tórax também começou a se encher de pelos, e sua visão começou a se alterar. Passou a enxergar tudo de uma maneira muito mais nítida e brilhante. Viu as expressões preocupadas dos homens à sua frente, com os olhos arregalados e a boca aberta. Ignácio parecia aterrorizado. Nestor, preocupado! E viu também o rosto de Diana. Ela o olhava com um misto de pena e ódio. Uma lágrima escorria em sua bochecha. Ele podia vê-la brilhando claramente contra a pele branca.

Neste momento, sua pele começou a queimar e a brilhar. Sentindo muita dor, Lionel soltou um urro bestial. Parecia com o rugido de um urso ou um tigre, ou ambos, misturados. Uma incandescente luz violeta tomou conta de sua visão, indicando que a queima estava funcionando. Em breve ele se transformaria em um monte de carvão. Deu uma última olhada para os homens à sua frente. Eles pareciam respirar aliviados. Olhou para Diana. Ela ainda chorava. Lembrou-se de seus últimos momentos com ela. Nua, na cama com ele, deixava-se agarrar deliberadamente, seduzindo-o apenas para poder matá-lo depois. Sentiu um ódio imenso. Apertou os olhos e sentiu suas pupilas se dilatarem, e ela se tornou o centro de suas atenções. Ela se transformou em sua presa, e nada mais importava exceto dilacerar seu rosto.

Mas ele não tinha forças para soltar os pulsos e as pernas. Estavam bem amarrados, e não havia sangue em seu corpo. Fechando os olhos, soltou mais um urro, mas nenhum som se produziu. Ele já estava no plano etéreo que separava aquele mundo de seu destino final. Faltava pouco tempo para cruzar esse limiar.

De repente, sentiu seu coração pulsando dentro do peito. De algum lugar, sangue novo brotava em suas veias, e o coração o levava até a sua pele, apagando a sua incandescência e devolvendo a coloração dourada dos pelos. Aos poucos, sua força ia voltando. Olhou para sua mão direita, e viu que as cordas que a prendiam estavam queimando. O mesmo acontecia com a mão esquerda. Sorrindo com sua boca demoníaca, esperou alguns segundos, até que sua pele estivesse completamente restaurada. Flexionando os poderosos músculos, arrebentou o resto das cordas que prendiam uma de suas mãos.

— O que está acontecendo?

— E-eu não sei! — era Diana. Sua voz estava carregada de medo e desespero. Lionel apreciou isso.

Fazendo um pouco mais de força, Lionel soltou sua outra mão. Imediatamente, os homens à sua frente começaram a cutucá-lo com bastões e forcados. Mas sua pele era muito grossa. Protegida por magia. Sentia o metal penetrando, mas não sentia nem um pingo de dor. Ainda sorrindo, ele soltou seus dois pés e saltou para fora da fogueira. Sabendo que agora ele poderia ser ouvido, decidiu aterrorizar aqueles humanos. Soltou um urro forte que estremeceu o chão sob seus pés. Os homens caíram ajoelhados ou sentados no chão.

Apoiando-se em suas mãos e pés, assumiu uma posição mais confortável. Era um quadrúpede. Mesmo nessa posição, precisava olhar para baixo para encarar aquelas criaturas franzinas à sua frente. Respirando fundo, procurou por sua presa. Achou-a poucos passos à sua frente. A vadia maldita que tinha enganado-o iria sofrer primeiro.

Ele se aproximou e saboreou o cheiro de medo que exalava dela. Quando estava quase a ponto de tocá-la com sua garra, o humano chamado Nestor saltou à sua frente e disparou com uma pistola diretamente em direção ao seu olho. Não teve nenhum efeito, exceto o de um cisco carregado pelo vento. Rasgando o ar com sua poderosa garra, arremessou-o para o lado. Ele caiu a poucos metros dali, e Diana saiu correndo em seu auxílio. Ela gritou, desesperada, em uma voz que penetrou fundo nos ouvidos sensíveis de Lionel:

— Pai! Pai, você está bem?

“Pai?” — o humano dentro de si estava falando algo. Essa palavra evocou algumas lembranças. O demônio não tinha pai, mas o humano sim. Tinha uma família, assim como Diana. Assim como Anabela.

O humano pensava em Anabela agora. Ela o olhava da mesma forma que Diana o fazia agora. Não acreditava que ele tinha se transformado naquilo. Estavam felizes há poucos minutos atrás, mas agora Lionel devorava seu rosto. Lembrou-se das outras, também. Camila. Joaquina. Inês. Todas elas haviam sido mortas por ele. “Não vou deixá-lo matar novamente!” — o humano pensou.

— Não! — Lionel gritou, e Diana o ouviu. O humano percebeu a deixa, e gritou:

— D-Diana! E-eu estou aqui! — sua voz era demoníaca. Ele nunca tinha ouvido sua voz demoníaca antes.

— L-Lionel? — ela o encarou, com os olhos arregalados.

— O eclipse ainda está c-começando! — era difícil falar. Era difícil segurar os músculos da feroz criatura, mas ele tentou mesmo assim.

— Lionel! O que está acontecendo? A sangria não funcionou! — ela gritava.

— O elo! O elo entre humano e demônio! Ele repõe o sangue!

— O que? Não estou entendendo!

— Meu coração! — Lionel gritou — Meu coração ainda é humano! Ele repõe o sangue, você precisa… p-precisa removê-lo!

Diana fez uma expressão que demonstrava que tinha compreendido. Levantando-se, ela empunhou sua faca e ficou esperando por um momento.

— Agora! — disse Lionel — Eu ainda estou aqui e não vou reagir! Rápido, Diana, não vou aguentar muito!

Lionel abriu os braços e concentrou toda sua energia para mantê-los assim. Sentiu uma leve pontada no peito e ouviu o gemido de Diana enquanto ela fazia força para cortar através da pele grossa. Permaneceu assim até que sentiu sua força diminuindo. Olhou para baixo e viu Diana segurando seu coração ensanguentado nas mãos. Soltando um urro grave, relaxou os músculos e deixou-se cair no chão, produzindo um pequeno tremor de terra. Sentiu o sangue saindo pelo buraco aberto, e a força se esvaindo cada vez mais rápido.

— Rápido, joguem-no na fogueira! — ouviu Nestor gritando.

Sentiu muitas mãos puxando-o pelo chão da praça. Ele era muito pesado, mas logo estava envolto pelas chamas novamente. Levantou o rosto e olhou uma última vez para Diana. Ela ainda segurava seu coração na mão, e era abraçada por Nestor. Respirando aliviado, Lionel sentiu quando sua pele voltava a brilhar na cor violeta. Estava acabando. Ele morreria em breve, e nenhuma pessoa mais seria vítima do demônio que roubava seu corpo nas noites de eclipse.

Ainda olhava para os caçadores à sua frente. Sua visão antes aguçada agora estava ficando embaçada. Mas ele pode ver quando os caçadores tiraram seus chapéus e fizeram uma reverência. Nestor falou:

— Você honrou seu juramento… caçador!

Diana chorava, enquanto era consolada pelo pai. Ignácio sorria, aliviado.

Lionel fechou os olhos, e a última coisa que ouviu antes de desaparecer foi:

— Vamos, caçadores! A noite ainda não terminou!



Fim



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