Os cintos de dona Ester

Autor: Daniel Lucrédio

Josias estava deitado, tentando dormir, quando achou ter ouvido algo. Levantou um pouco a cabeça, tentando não bater na cama de cima; havia pouco espaço entre os andares do enorme beliche. Depois de um minuto de silêncio, ouviu de novo, e dessa vez não houve dúvidas. Era seu nome, sendo sussurrado:

— Psst, Josias… Está acordado?

Deslizou para fora, devagar, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Não queria acordar os sortudos que tinham conseguido entrar no reino dos sonhos. E também não queria, é claro, atrair a atenção de um guarda.

Xingou o amigo ao sentir o frio congelante do chão sob seus pés. Correu até sua pequena caixa de pertences o mais rápido que conseguia e calçou o único sapato que tinha. Pelo menos um dos pés não iria congelar.

Olhou para o dormitório e viu, do outro lado do corredor, a figura de Benjamim, chamando-o com as mãos.

Segurando a calça com as mãos para que não caísse e tentando não tropeçar por causa do calçado único, foi até onde estava o colega.

— O que foi?

— Venha, eu te mostro.

Os amigos seguiram furtivos até um canto mais vazio do dormitório. Ainda tinham que falar baixo, pois apesar de ter menos pessoas ali, ficava mais perto da entrada. Um guarda poderia ouvi-los mais facilmente.

— Diga logo o que é. Está frio.

— Certo, aqui está.

Benjamim tirou um embrulho de dentro das calças e o entregou para Josias. Este o recebeu com um sorriso e correu a abri-lo. Estava envolto em papel. Abri-lo provocou um barulho que, no silêncio da madrugada, parecia muito mais alto do que realmente era.

— Psst, cuidado!

— Me desculpe.

Assim que viu o conteúdo do pacote, os olhos de Josias lacrimejaram. Era um sapato.

— É o pé direito que estava faltando, né? — perguntou Benjamim.

— É, é sim.

Josias calçou o sapato e ficou em pé. O calor não se fez imediatamente, pois ainda demoraria para que a sola semi-congelada do seu pé se aquecesse.

— Ficou meio grande — disse Benjamim.

— Sim… uns três números a mais do que eu uso. Mas não importa, pelo menos meu pé não vai mais congelar. — Josias sorria de orelha a orelha.

— Que bom. Mas eu não consegui recuperar o cinto. O guarda pegou antes.

— Que pena.

— Mas não se preocupe. Jacó me disse que o prisioneiro que vai comprar o cinto do guarda está usando uma corda para segurar as calças. Se eu descobrir quem é, trago para você. Quero dizer, não é um cinto, mas…

— Seria um sonho poder andar por aí sem segurar as calças o tempo todo — Josias interrompeu o amigo, que acenou com um sorriso.

— É isso aí. Vamos torcer.

— Benjamim… nem sei como lhe agradecer.

— Relaxa! Somos amigos. Você faria o mesmo por mim.

— Sim, somos.

Ficaram em silêncio por um tempo. Benjamim disse:

— Se eu pudesse, eu te daria meu cinto também… mas eu preciso dele, senão não vou conseguir varrer…

— Eu entendo. Não se preocupe, logo eu consigo um para mim.

Mais um silêncio. Josias se sentou ao lado de Benjamin e enrolou os braços ao redor do corpo para se proteger um pouco mais do frio. Benjamim parecia querer dizer algo, mas não tinha coragem. A luz forte dos holofotes do campo de concentração penetrou pela janela, iluminando por alguns instantes seu rosto barbudo e cheio de cicatrizes. Parecia preocupado.

— O que é, Ben?

Benjamim deu um riso triste. Depois suspirou fundo e respondeu:

— Lembra da dona Ester?

— Claro que lembro. Ela tinha uma macieira, não era? Que a gente subia para pegar frutas.

— Acho que era um pessegueiro. E você quis dizer que a gente roubava as frutas, né?

— É verdade. — Josias sorriu com a lembrança.

— Lembra como ela saía correndo atrás da gente? Com aquelas pernas curtas?

— Lembro, rss… rss… — Josias teve que colocar a mão no nariz e boca para não fazer barulho. — Ela parecia um sapo pulando.

— Rss… rss… — Benjamim também se segurava para não rir alto. — Para de rir, caramba!

— Desculpa. — Josias deu um suspiro mais alto para se acalmar. — Sabe o que aconteceu com ela?

— Ela morreu logo nos primeiros dias, ainda na época do gueto. Pegou uma gangrena, se não me engano.

— Eu gostava da filha dela, a Sara. Lembra?

— Ô, se lembro da Sara. — Benjamim colocou as duas mãos em forma de concha na frente do peito e desembestou a rir mais uma vez.

— Rss… rs… ah, como eu desejei aqueles pêssegos.

— Rss… rs… estavam mais para melões, né?

— Melancias… rs… rs…

Os dois precisaram tapar os narizes e bocas por vários segundos até conseguirem voltar a respirar normalmente.

— Aaah, Sara… — disse Benjamim — Será que está viva?

— Não sei, já faz muito tempo…

— Deve estar, ela sempre foi forte, deve ter conseguido trabalho no campo dela.

— Quanto tempo faz que a gente está aqui? Três anos?

— É, quase três, acho.

— Caramba.

O silêncio voltou, junto com mais uma passada da luz branca dos holofotes pelo quarto. As dezenas de beliches de quatro andares, apinhadas com os corpos esqueléticos e fracos dos prisioneiros, se iluminaram um pouco. Havia muitas camas vazias.

— Enfim — disse Benjamim —, eu estava cansado de levar surra da dona Ester, então um dia eu entrei na casa dela, mexi no armário do marido dela e peguei todos os cintos que encontrei ali.

— Sério?

— É, depois disso ela começou a usar um chinelo, não lembra?

— Lembro! Como eu agradeci pela mudança, o chinelo doía bem menos.

— Pois é.

— Não sabia que tinha sido você meu benfeitor. Minhas costas lhe devem uma.

Benjamim sorriu. Ainda parecia querer dizer algo. E ele parecia prestes a chorar.

— O que foi, Ben?

— Então, em algum lugar lá perto de casa… — seus lábios começaram a tremer, e os olhos se encheram de lágrimas —, tem um saco com uma CARALHADA de cintos, enterrado.

— Benjamim…

— Se eu pudesse pegar um… unzinho só, você agora poderia andar sem ter que segurar a PORRA da sua calça o t-tempo todo… se eu…

Josias colocou a mão na nuca do amigo e apertou forte. Benjamim abaixou a cabeça e a encaixou entre os joelhos. Ele soluçava alto, incapaz de conter o choro. Josias se aproximou e o abraçou, e eles ficaram ali por um tempo.

De repente, a porta do dormitório se abriu. Os dois amigos levantaram a cabeça, assustados. Barulhos de botas e uma respiração pesada, junto com o brilho forte de uma lanterna.

— O que está acontecendo aqui? — disse o guarda. — Por que não estão descansando para trabalhar amanhã?

Josias e Benjamim ergueram as mãos ossudas. Seus rostos cadavéricos exibiram uma expressão idêntica de súplica. Não disseram nada, mas estava claro que imploravam para que fossem perdoados.

— Levantem-se e venham comigo. Andem!

A arma se fez visível ao lado da lanterna, convencendo-os a se mexerem logo. Benjamim se levantou primeiro e ajudou Josias, para que este pudesse se levantar sem que suas calças caíssem no chão. Assustados, eles caminharam em direção à saída do dormitório.

— Para onde vamos? — perguntou Benjamim assim que sentiu o vento gelado e a neve castigando sua pele.

— Apenas andem, sem perguntas. — A voz do guarda não dava margem a discussões.

Foram guiados pelas ruas barrentas do campo, passando pelos enormes barracões. Por dentro, eram frios, mas por fora pareciam quentes e aconchegantes, principalmente para dois prisioneiros andando de madrugada sem um casaco grosso.

Quando se aproximaram da cerca eletrificada, foram recebidos por dois sentinelas. Um deles disse:

— O que foi?

— Transgressores — respondeu o guarda que tinha tirado-os do dormitório. — Estou levando-os para dar uma volta na floresta, como castigo.

— Castigo, é? — o sentinela deu um sorriso maldoso. — Está bem, bom passeio.

Benjamim e Josias caminhavam e tremiam muito. Benjamim caminhava mais fácil. Já Josias, além de lutar contra o frio, tinha que cuidar para que seu sapato grande não saísse do pé e para que suas calças não caíssem.

A caminhada continuou até chegarem às margens de um enorme lago congelado. A terra estava revirada, como se tivesse sido escavada recentemente. Havia algumas pás ali ao lado.

— E-escute, senhor, não precisa fazer isso — disse Benjamim.

— Quietos! Virem-se de costas, olhando para o lago.

— Por favor, senhor, nós podemos recompensá-lo, se poupar nossas vidas — Benjamim insistia.

O guarda riu alto ao responder:

— O que vocês poderiam me oferecer? Roupas velhas e sapatos estragados? Eles valem menos do que as vidas de vocês. Parecem mais cadáveres ambulantes, mal conseguem trabalhar.

Benjamim e Josias se entreolharam, as lágrimas escorrendo em abundância. Benjamim fechou os olhos e começou a dizer uma oração.

— Além disso — continuou o guarda —, vai sobrar mais comida para os outros. Fiquem felizes, vão acabar ajudando os seus companheiros.

Benjamim intensificou sua reza. Não havia mais esperança, ali terminaria sua vida. De repente, Josias disse:

— Ele tem um dente de ouro!

Benjamim arregalou os olhos e olhou para o amigo.

— Se me deixar vivo, guarda — disse Josias —, eu tiro o dente para você, assim não precisa sujar sua mão.

Benjamim estremeceu, mas o terror não teve tempo de tomar conta de seu corpo. O disparo o atingiu nas costas e atravessou seu coração. Ele caiu enquanto ainda tentava entender o que estava acontecendo.

— Me convenceu — disse o guarda. — Tome! Vai logo porque está frio — jogou uma faca pontuda aos pés de Josias.

Josias pegou a faca e se ajoelhou ao lado do amigo. Segurou sua cabeça com as duas mãos e o olhou enquanto ainda lutava para respirar. Benjamim não ofereceu resistência enquanto Josias abria sua boca e enfiava a ponta da faca em sua gengiva. Não sentiu para ter seu dente arrancado, pois a dor já era enorme. Além da ferida no peito, fruto do disparo, sua alma estava dilacerada. Morreu antes que Josias terminasse a extração.

— Aqui está. — Josias entregou o dente ao policial.

— Não é ouro.

— É sim, ele pintava com esmalte branco para que não lhe fosse arrancado, olhe.

Josias raspou um pedaço do dente, revelando o metal dourado por baixo.

O guarda sorriu e colocou a jóia no bolso. Disse:

— Você foi esperto. Se não tivesse dito nada, os dois estariam mortos.

Josias acenou com a cabeça.

— Agora pegue uma pá e enterre-o. Você tem dez minutos antes que eu enfie uma bala em seu peito também.

Josias não disse nada. Ainda segurando suas calças, foi até o corpo de Benjamim e o arrastou até uma porção de terra mais revirada. Pegou uma pá e começou a cavar, mas não conseguia direito, pois suas calças estavam caindo o tempo todo.

— Ande logo, o que está fazendo? — perguntou o guarda.

— Minhas calças, senhor, elas são muito grandes.

— Pegue o cinto dele — disse, apontando para o corpo de Benjamim. — E ande logo, que já estou me arrependendo por deixá-lo vivo.

Josias se ajoelhou ao lado do amigo morto. Com cuidado, e secando a lágrima solitária que conseguiu escapar de seu olho, disse baixinho:

— Eu não disse que logo conseguiria um cinto?



Fim



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