O coliseu da discórdia

Autor: Daniel Lucrédio

Era uma vez um reino conhecido como Aserom.

Donos de uma vasta cultura e um apreço pelas belas artes, os aseromianos viviam em paz e harmonia.

Esta história começa na capital de Aserom, mais especificamente no templo dos sacerdotes, onde estava prestes a começar o Coliseu da Discórdia, um evento tão temido quanto esperado.

Sentada na sétima cadeira do altar, Ímoen, uma jovem sacerdotisa, esquadrinhava a multidão que se acumulava. A perna chacoalhava discreta, mas repetidamente, no mesmo ritmo que o tamborilar dos dedos em sua coxa.

Olhou para sua direita. Havia quatro sacerdotes ali, entre eles Úmolor e Ídrila. Esses dois são importantes, guarde o nome deles. Do outro lado havia mais seis, entre eles Iendra, sua melhor amiga. Ninguém sabia disso, é claro, mas eram muito próximas. Iendra também é importante.

E como!

Imagino que você esteja agora fazendo contas em sua cabeça. Se não está, deveria, pois isso também é importante. Havia onze sacerdotes, um número ímpar.

Mas voltemos. O motivo pelo qual Ímoen estava nervosa era o perigo que sempre ameaçava o início de um exorcismo.

Eu não tinha contado que o tal evento temido e esperado era um exorcismo? Falha minha. Sim, é um exorcismo: a expulsão de um demônio da mente de um aseromiano.

O processo é meio confuso. Funciona assim: começa quando o acusado…

Ih, já vai começar! Presta atenção que já vai entender!

Ímoen avistou o acusado. O jovem rapaz entrou ao lado dos pais. Parecia tranquilo, pois, como todo acusado, não sabia de nada. Se soubesse, as consequências seriam terríveis: assim que um demônio percebe que está prestes a ser exorcizado, ele tenta escapar, e pode contaminar todo mundo que estiver por perto.

Por onde ele escapa?

Pela voz.

— Bem-vindos, cidadãos de Aserom — disse, em voz alta, um sacerdote cujo nome você não precisa saber. — Estamos aqui reunidos para proteger a paz e a harmonia de nosso reino.

As palavras amigáveis não combinavam com o movimento sorrateiro dos guardas por trás da multidão.

— Quem tem um nome? — perguntou o sacerdote.

— Ôramir, filho de Ôladed! — gritou o pai. Antes que o rapaz pudesse reagir, os guardas se materializaram em sua frente. Seguraram seus braços, enfiaram uma espécie de bolota em sua boca e amarraram uma mordaça por cima.

— Ôladed — disse o sacerdote —, por que devemos acreditar em você?

— Ele é nosso filho! Não faríamos uma acusação leviana — respondeu o pai, abraçando a esposa e chorando compulsivamente.

Deixe-me explicar: um Coliseu da Discórdia era convocado sempre que havia uma denúncia. Para enganar o demônio, que era esperto, a denúncia era sempre anônima. Apenas o acusador e alguns sacerdotes ficavam sabendo. No momento da acusação, o sacerdote pedia uma prova de confiança, e não deve ser difícil para você compreender o motivo: se não fosse assim, qualquer um poderia acusar qualquer um, e isso seria um verdadeiro caos. Neste caso, os próprios pais acusarem o filho era prova suficiente, pois nenhum pai ou mãe ia querer ver o filho sendo exorcizado sem necessidade.

Por quê?

Você já vai ver.

— Coloquem o acusado na mesa de exame!

Os guardas arrastaram o rapaz até uma mesa em forma de cruz que havia no centro do templo, e prenderam seus pés e mãos com grilhões de ferro. Para completar a preparação, removeram-lhe os calçados.

Que mesa é essa?

Desculpe, eu não tinha narrado antes porque precisava que você estivesse prestando atenção na descrição, já que — adivinha só? — é importante!

A mesa estava posicionada de um jeito especial. Os pés do acusado ficavam um pouco erguidos e apontados para os sacerdotes, de modo que eles — e apenas eles — pudessem enxergar suas solas.

O sacerdote sem nome pegou uma jarra prateada, foi até a mesa e despejou um líquido transparente nos pés do acusado.

Ímoen sempre ficava nervosa nessa hora. Se o acusado realmente tivesse um demônio, o líquido sagrado revelaria uma marca na sola de um dos pés. Uma runa demoníaca. E aí, os sacerdotes — e apenas eles, como deve ter percebido — ficariam sabendo se havia um demônio ou não.

O sacerdote voltou ao seu assento. Em pouco tempo, Ímoen viu, sem sombra de dúvida, o aparecimento da marca demoníaca na sola do pé direito de Ôramir.

— Eu vejo uma marca! — gritou um sacerdote.

— Eu vejo uma marca! — gritou outro.

— Eu não vejo uma marca! — gritou Iendra.

Calma! Antes que você chame a amiga de Ímoen de mentirosa safada, é preciso explicar uma coisa. Você se lembra do nome do evento? Coliseu da Discórdia? Ele tem esse nome porque os sacerdotes não podem formar unanimidade. Iendra mentiu, sim, mas foi para seguir uma regra milenar. Eu poderia explicar qual é essa regra, mas Ímoen e Iendra vão conversar sobre isso daqui a pouco. Por enquanto basta saber que, se a maioria disser que vê uma marca, o exorcismo acontece. Caso contrário, o acusado é libertado.

A votação continuou. Não havia uma ordem, cada um falava a hora que quisesse. E assim foi, até restar apenas um voto: Ímoen. A contagem estava sete a três a favor do exorcismo, então seu voto não faria diferença. Resolveu seguir a amiga:

— Eu não vejo uma marca!

Olhou para ela, e novamente trocaram um sorriso invisível.

O homem que estava conduzindo o processo se aproximou de Ímoen e entregou um pequeno martelo e um longo espinho.

— Sacerdotisa Ímoen, como a última a votar, expulse o demônio.

Ímoen pegou os instrumentos com cuidado. O martelo era um simples martelo. Já o espinho, era especial, um extrato obtido de uma árvore sagrada. Liso e comprido, tinha na metade uma espécie de pústula com um conteúdo verde. Era o fruto venenoso da árvore.

Ela respirou fundo e se aproximou da cruz. Cheia de piedade, passou a mão nos cabelos do rapaz e disse:

— Me desculpe.

O demônio tentou gritar para escapar, mas não conseguiu.

Ímoen posicionou o espinho dentro da narina direita do acusado. Alinhou o martelo e se preparou.

O silêncio era absoluto.

Antes de dar o primeiro golpe, no entanto, ela paralisou.

Achou ter ouvido uma voz.

Teria a bolota na boca do rapaz cedido um pouco de espaço, permitindo que o demônio produzisse um ganido quase inaudível? Se fosse o caso, seria suficiente para que uma parte do demônio escapasse? E se escapasse, poderia ter se alojado dentro dela? Ela estava bem pertinho…

Droga Ímoen, mate logo esse demônio!

Desculpe, este narrador está um pouco ansioso.

É que eu não gosto de narrar essa parte, pois é meio dolorida. Posso simplificar? Enfia espinho. Segura bem o martelo, e… Bam! Bam! Bam! Entra na narina, perfura o crânio e entra no cérebro. Aperta pústula, veneno entra, mata o demônio e o cérebro meio que morre junto.

Pronto, narrei.

Depois disso, o rapaz amoleceu e dormiu imediatamente.

Após o exorcismo, um aseromiano perde o demônio e se torna puro, mas perde também a capacidade de raciocinar. Continua vivo, mas movido por puro instinto. Por isso, não é mais capaz de viver em sociedade e passa a viver longe do reino, junto com os animais.

Esse foi o destino de Ôramir. Foi libertado dos grilhões e entregue aos pais para ser levado embora com toda a dor e tristeza do mundo. Findado o espetáculo, a multidão começou a se dispersar também, feliz e aliviada pelo exorcismo bem sucedido.

— Foi um serviço limpo — disse Iendra, aproximando-se.

— Obrigada.

— Votou pela discórdia?

— Não quis que você ficasse sozinha.

— Você sempre vota igual a mim, gosta de me imitar.

— Gosto.

— E se estivesse precisando desempatar? Mentiria apenas para me imitar?

Psiu. Lembra quando eu disse que eram onze sacerdotes? É disso que elas estão falando.

— Eu nunca deixaria um demônio escapar só por causa disso.

— E se fosse para empatar?

— Empatar? Como, se somos em onze?

— Se o acusado for um dos sacerdotes, tem um voto a menos.

— Isso pode acontecer? Achei que…

— Que nós, sacerdotes, éramos imunes à possessão?

— Não, só… nunca pensei nisso.

— E aí? Você mentiria para provocar um empate?

— O que acontece quando há empate?

— Giramos a mesa.

— Aaah, é pra isso que serve aquela engrenagem?

Preciso parar de narrar de novo para explicar. Havia, na parte inferior da mesa, uma engrenagem que permitia que ela fosse girada, de forma que a sola dos pés do acusado ficasse de frente com a multidão, invertendo os papéis. Nessa posição, os sacerdotes não podiam ver a marca, mas o público, sim.

Iendra continuou:

— Sim, nesse caso, o voto de desempate é feito pelo público.

— Isso já aconteceu antes?

— Não! Nunca aconteceu, e nunca poderá acontecer!

— Por quê?

— Seria o caos! O público acha que nem todo mundo pode ver a marca, certo? E acha que a gente vota honestamente, dizendo se estamos vendo ou não, quando na verdade a marca é visível para todo mundo! Se a mesa girasse, todo mundo iria saber que alguns de nós estão mentindo!

— E aí os sacerdotes perdem o poder?

— Não se trata de poder. Antigamente, os exorcismos aconteciam ali na praça. Era bem mais brutal. Todo mundo se acotovelava para ver os pés do acusado, saía briga, contaminações, era um inferno. Depois que foi criado o alto conselho dos sacerdotes, tudo passou a funcionar de forma bem mais tranquila. Não há mais problemas, desde que haja discórdia entre nós.

— Isso eu sei. Se sempre votarmos igual, o povo pode desconfiar que estamos agindo em complô.

— Exato, e é por isso que nós, sacerdotes, devemos sempre mostrar que somos imparciais, e discutir entre nós o tempo todo.

— Não sei… me parece um jeito de os sacerdotes poderem acusar quem quiserem, com ou sem marca.

Iendra se aproximou e cochichou no ouvido de Ímoen, não conseguindo esconder um leve sorriso:

— Cuidado! Se a mesa girar, o povo vai descobrir que você é uma puta de uma mentirosa!

Ímoen sorriu e respondeu, também cochichando:

— Se eu sou, você também é!

As duas tentaram segurar seus risos da melhor forma que podiam, só conseguindo sucesso quando foram interrompidas por Úmolor:

— Estão brigando? Muito bem, mostrem discórdia, cumpram seu papel.

— Não me parece uma briga. — Ídrila se aproximou também. — Me parece uma brincadeira de amigas.

— Cuidado — disse Úmolor, com preocupação sincera. — Se desconfiarem que vocês são amigas, pode ser perigoso.

— Por quê? — perguntou Ímoen.

— Não faça perguntas idiotas! — disse Iendra, irritada. — Preciso ir. Até mais.

Ímoen acompanhou a irmã se afastando, com a certeza de que a bronca tinha sido da boca pra fora.

***

Alguns dias se passaram, e um novo Coliseu foi convocado. Ímoen estava mais leve naquele dia. Por algum motivo, não estava sentindo a ansiedade que a acometia antes de um exorcismo. Talvez estivesse se acostumando. Parecia distraída, em outro lugar. Não percebeu a movimentação dos guardas ao seu redor.

De repente, ouviu seu nome:

— Sacerdotisa Ímoen!

Não teve tempo para reagir. Sentiu seus braços sendo segurados e uma bolota sendo enfiada em sua boca. Antes que pudesse sentir que gosto tinha, uma mordaça selou seus lábios.

— Sacerdotisa Ídrila — disse alguém —, por que devemos acreditar em você?

— Eu a encontrei outro dia, no banho público, e pensei ter visto uma marca demoníaca aparecendo na sola do pé dela. Temendo pela paz e harmonia do reino, resolvi fazer a acusação, mesmo que isso custe a minha reputação.

— Denúncia aceita — respondeu a voz de Úmolor. — O povo deve saber que nós, sacerdotes, não recebemos nenhum tratamento especial.

A mente de Ímoen começou a girar enquanto era carregada. Sentiu seu corpo sendo erguido e colocado sobre a mesa de exame. Braços e pernas foram fortemente aprisionados, e seus calçados, removidos. Quando sentiu seus pés sendo molhados, percebeu o que estava acontecendo.

Ela era a acusada da vez.

— Eu vejo uma marca! — alguém gritou.

— Eu vejo uma marca!

Os pensamentos não eram rápidos o suficiente para acompanhar a contagem.

— Eu não vejo uma marca!

“Alguém está me defendendo! Quem será?”

— Eu vejo uma marca!

“Será um complô contra mim? Querem me expulsar? Quem…”

— Eu vejo uma marca!

Reconheceu a voz. Era Ídrila.

Levantou o rosto e a encontrou. Ela parecia sorrir, ainda que seus olhos e boca não demonstrassem.

— Eu vejo uma marca! — Úmolor definitivamente não sorria.

“Será que eu tenho mesmo uma marca… Naquele dia… a voz do demônio…”

— Eu não vejo a marca!

“Isso! Eu não senti nada, ainda sou eu…”

— Eu não vejo a marca!

“Ainda sou…”

— Eu não vejo a marca!

Pelas suas contas, estava cinco a quatro a favor do exorcismo. Faltava apenas um voto. Faltava o voto da pessoa cuja voz ainda não tinha ouvido.

Faltava a voz de sua melhor amiga.

Sua confidente.

Sua irmã.

Iendra daria o último voto.

Buscou-a em meio aos colegas. Em desespero, custou a encontrá-la. Quando a viu, chorou.

Iendra estava destruída. O rosto, pálido, brilhava, embebido em lágrimas. O queixo tremia e o peito soluçava em convulsões intermináveis.

Estranhamente, naquele momento, Ímoen relaxou. Deixou a cabeça cair novamente e fechou os olhos, pronta para enfrentar seu destino.

Deixe que este narrador explique a qual conclusão nossa pequena sacerdotisa chegou: se a sola de Ímoen de fato estivesse marcada por uma runa demoníaca, Iendra diria a verdade, pois não iria querer que a amiga vivesse com um demônio. Ímoen faria o mesmo se estivesse em seu lugar.

Agora, se a sola de Ímoen estivesse limpa, o que significava que tinha sido vítima de um complô, Iendra teria que decidir entre mentir e condená-la a um exorcismo desnecessário, ou dizer a verdade e empatar a votação. Se houvesse empate, a mesa seria girada e, como a própria Iendra nos explicou antes, o caos voltaria.

Foi por isso que Iendra disse:

— Eu vejo uma marca!

A voz saiu embargada, carregada de choro, dor, desespero, amargura e trist…

Desculpe…

Eu engasguei.

Você está lembrando quem é que deve executar o exorcismo, né?

Pois é!

Triste.

Ímoen abriu os olhos. Viu a amiga ali pertinho, segurando os instrumentos em sua mão trêmula. Iendra passou as mãos em seus cabelos, com todo o carinho e ternura do mundo.

Disse:

— M-me desculpa!

Ímoen acenou com a cabeça, tentando tranquilizar a amiga da melhor forma que podia. Fechou os olhos novamente e esperou.

Sentiu o espinho entrando. Tentou manter a boca fechada. Apertou aquela bolota com toda a força de sua mandíbula. Não permitiria que o demônio, se é que tinha um, escapasse de sua boca e contaminasse sua irmã.

Abriu os olhos no exato momento em que a agulha perfurou seu crânio. Não sentiu quando o veneno foi injetado.

Pobre Ímoen. Foi levada para as planícies, para viver o resto de seus dias longe dali, sem sua mente.

Pobre Iendra. Manteve a mente intacta, mas permaneceu sozinha naquele reino pacífico, harmonioso, rico em artes e cultura.

Já sei o que está pensando. Afinal de contas, havia ou não um demônio em Ímoen?

Sendo sincero, eu não sei. Na hora do exame, eu estava ali do lado dela, não deu pra ver direito.

Mas mesmo se eu soubesse, eu não diria.

Não está prestando atenção?

Se você souber, o reino acaba!



Fim



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