Fome

Autor: Daniel Lucrédio

— Estou com fome — choramingou José.

Roberto o olhou. Tentou censurá-lo sem dizer nada, na esperança de que o lamento não se repetisse. Não podia entrar em uma discussão naquele momento.

Não deu certo.

— Queria comer o bolo da minha mãe… — O choro se intensificou.

— Silêncio — sussurrou Roberto. — Quer nos entregar?

— Eu não aguento mais. Eu queria…

Roberto saiu de sua posição, abaixou a arma e se ajoelhou em frente ao outro. Olhou-os nos olhos e disse:

— Eu sei.

O rosto de José era um misto de tristeza, ansiedade e cansaço. Eram as mesmas sensações que ele mesmo sentia, porém desenhadas na forma de rugas que não deveriam estar ali. Ele era jovem demais para sentir tudo aquilo. Tentou reanimá-lo:

— Falta pouco, agora. Aguente só mais um pouquinho.

— Mas não sobrou ninguém além de nós dois.

Doía vê-lo daquele jeito. Roberto suspirou antes de responder:

— Eu sei, mas não vamos desistir.

— De que adianta? — A voz chorosa de José aumentou de volume perigosamente.

José colocou o dedo nos lábios imediatamente e sussurrou:

— Cale a boca, caramba! Vai atraí-los direto para cá.

— Desculpa.

José voltou à sua posição, próxima à parede de tijolos desgastada. Esticou a cabeça o suficiente para que seu olho direito pudesse esquadrinhar a rua de paralelepípedos. O céu estava cinza, ameaçando chover.

“Droga, logo agora?”

Do outro lado, estava tudo quieto. Não viu ninguém, amigo ou inimigo, mas sabia que eles estavam lá, atrás das portas e janelas de madeira velha. A qualquer momento, as calçadas estragadas seriam pisoteadas pela gangue rival. Sairiam correndo sem avisar, e então seria o fim.

Virou-se de costas e voltou a encarar José. O amigo parecia mais calmo quando falou:

— Fale a verdade, Beto. Nós temos alguma chance de sair vivos dessa?

Roberto até tentou, mas não conseguiu evitar que a verdade transparecesse em seu rosto. Talvez tenha sido o leve tremor dos lábios, ou o jeito como olhou para baixo rapidamente. Não importava. O amigo o conhecia bem demais, era inútil esconder dele seus verdadeiros sentimentos de derrota e desânimo.

José comprimiu os lábios e disse:

— E então? De que adianta continuar tentando?

— Não podemos desistir.

— Por quê? Só estamos sofrendo aqui. Eu preferiria acabar com tudo, sair correndo e enfrentar nosso destino de uma vez.

— Não! Isso, nunca!

— Por quê? Me diz!

Roberto se aproximou de José, a ponto de seus narizes quase se tocarem. Falou, entre os dentes cerrados:

— Já esqueceu que fizemos uma promessa?

A imagem se materializou em sua mente, em uma mistura enevoada. Era como se estivesse assistindo à lembrança em uma televisão antiga. O grupo estava animado, conversando ao redor de uma lata velha de lixo. Mateus falava rapidamente, em sua habitual agitação. Muitos diziam que ele era meio maluco, mas Roberto sabia que era apenas seu jeito de expressar os pensamentos que surgiam em uma velocidade enorme dentro de sua cabeça. Ele era o mais inteligente do grupo, e por isso agia como uma espécie de líder, ainda que a gangue não tivesse uma hierarquia bem definida:

— Jorge, José e Roberto vão cobrir esse lado do quarteirão. Usem as armas mais pesadas, já que vão ficar parados. A mobilidade não vai ser tão importante para vocês, certo?

— Certo — responderam os três comandados, acenando com as cabeças e entreolhando-se em concordância.

— Vítor, Celso, vocês vão ser os batedores. Tentem se revezar para patrulhar os corredores atrás da velha padaria. Se virem qualquer movimento, voltem correndo e me avisem. Levem uma bomba cada um, e armas leves. Não tentem o confronto, entenderam? Mesmo que avistem um inimigo sozinho, não ataquem. Pode ser uma armadilha.

— Tem um buraco aberto ali no muro — respondeu Vitor. — Dá para a gente passar por ali, sem ter que dar a volta.

— Cuidado para não ficar entalado, hein? — caçoou Celso.

Todos riram. Menos Roberto. Ele parecia pressentir algo.

— E você? — perguntou.

— Eu vou ficar aqui — respondeu Mateus —, junto com os demais. Assim que soubermos onde eles estão, vamos todos juntos para acabar isso de uma vez.

— É isso aí!

— Perfeito!

— Vamos lá!

A animação contagiante começou a tomar conta do grupo, mas Mateus ainda tinha um último aviso:

— Tem mais uma coisa…

Todos ficaram em silêncio. Os rostos animados se tornaram preocupados, e a atenção voltou-se para o líder nato:

— Ninguém… desiste! Não importa o que aconteça, cada um de nós vai lutar até o fim. Prometam!

Os sorrisos se desfizeram. Era como se Mateus estivesse prevendo que cada membro da gangue em breve se veria numa situação onde abandonar o grupo era a única forma de não enfrentar a morte certa.

Foi Roberto quem primeiro se adiantou e estendeu a mão com a palma voltada para baixo. Mateus acenou com a cabeça e se juntou a ele. Todos os outros repetiram o gesto, selando a promessa.

Foi a última vez que estiveram juntos ao redor daquela lata de lixo.

— E agora? — a pergunta despertou Roberto do passado recente.

— Eu não sei.

— Vamos esperar até quando?

— Eu não sei.

— Por que eles não estão vindo?

— Eu não sei! — o gritou saiu um pouco mais alto do que queria.

Os dois se olharam, assustados. Dessa vez foi José quem se levantou e foi espiar pela esquina.

— Ei, eu acho que estou vendo algo.

— O quê? — Roberto foi até ele e apoiou a mão em seu ombro.

— Eu acho que é… o Celso!

— Onde?

— Ali, na janela.

— Mas… não pode ser! Nós vimos quando ele foi capturado. Sai da frente, deixe-me ver!

Roberto trocou de posição com José e arriscou um pouco mais o pescoço para fora. O céu tinha aberto um pouco, deixando passar um raio de sol que o atingiu direto nos olhos. Cobriu o rosto com as mãos e tentou olhar dentro do ambiente escuro através da janela.

Estava difícil enxergar. A luz atrapalhava. De repente, uma nuvem cobriu o sol, diminuindo o brilho, e ele viu. Não apenas Celso, mas também Vítor. Eles estavam ali dentro do apartamento do outro lado da rua.

Estavam vivos.

— São eles! Celso e Vítor! — Roberto sussurrou, feliz, para José, que estava grudado às suas costas.

— Tem certeza?

— Sim, olhe.

Trocaram de lugar novamente, mas Roberto não se escondeu. Manteve sua cabeça grudada em José e viu seus amigos sendo empurrados pela arma de um dos inimigos, e depois obrigados a levantar as mãos e a se ajoelhar, de frente para a parede.

— Droga! Como vamos salvá-los? — perguntou Roberto.

— Salvá-los? Está maluco? É impossível.

— José… A promessa, esqueceu?

— Eu não prometi nada disso. Prometi lutar até o fim, e não entrar em uma missão suicida.

Roberto apoiou a mão no ombro do amigo e disse:

— Você mesmo acabou de falar: sobramos só nós dois. Se ficarmos aqui parados, já era. Nossa única chance de sobreviver é resgatá-los.

José retomou a sua cara de choro, mas seus ombros caíram um pouco. Roberto o conhecia muito bem para saber que aquilo significava que tinha cedido. Disse:

— Acho que a nossa melhor chance é tentar entrar por aquela janela.

— Quer atravessar a rua? Em campo aberto?

— Quero. Eles não vão esperar por isso. Devem estar planejando nos flanquear. Vamos abaixados até aquela janela. Eu levanto, disparo e derrubo o captor. Nossos amigos vão perceber e sair correndo em nossa direção.

— Isso não vai dar certo.

— Tem que dar! Vamos logo, antes que acabem com os dois,

José o encarou, comprimindo os lábios em claro nervosismo. Roberto nunca tinha visto-o tão assustado antes. Não querendo deixar que o amigo perdesse o ânimo, começou a se mexer.

Espiou pela esquina. Tudo vazio.

Olhou para a janela. Celso e Vítor estavam ali. Ainda vivos.

“Aguentem firme, amigos. Estamos chegando!”

Olhou para José. Ele tremia dos pés à cabeça. A ponta de sua arma balançava erraticamente para os lados.

“Sou eu que vou ter que atirar.”

Respirou fundo e saiu.

Lutando para permanecer agachado o máximo que conseguia, Roberto avançou rápido pelos paralelepípedos desgastados, até chegar à calçada velha. Encostado na parede, foi se aproximando da janela aos poucos. Ouviu uma voz. Reconheceu-a. Era o inimigo:

— A essa altura, seus amigos devem estar presos lá atrás. Nossos homens devem estar chegando. Assim que eu ouvir o sinal, executo vocês dois. Comecem a rezar.

Roberto respirou fundo e se posicionou abaixo do peitoril. Olhou para José. O amigo parecia prestes a chorar.

Apertou a arma junto ao corpo. Passou o dedo indicador pelo gatilho, tentando não disparar sem querer. Torceu para que não travasse naquele momento. A arma costumava travar de vez em quando.

“Não agora, por favor. Não vai me deixar na mão agora, arma!”

Roberto agiu com precisão inigualável.

Levantou o corpo até que seus ombros e a arma passassem por cima do peitoril. Avistou a cena rapidamente. Havia um inimigo, e dois amigos, como esperava. Apontou a arma para o inimigo e puxou o gatilho. O tiro foi certeiro. Abaixou-se para se proteger.

— E aí? Acertou?

— Acertei. — Roberto desembestou a rir. — Peguei o desgraçado.

José riu também. Mas as risadas pareciam estranhas. Tinha mais alguém rindo.

— Você errou! — A voz veio de dentro.

José e Roberto se entreolharam, em pânico. A voz lá dentro continuava rindo.

— Eu sabia que vocês tentariam isso. Por isso me protegi atrás de um vidro grosso!

— Desgraçado! Vamos embora aqui… Rápido, José!

O amigo não se moveu. Estava paralisado, olhando para trás. Seu rosto estava congelado, parecia ver um fantasma. Roberto virou a cabeça lentamente para ver o mesmo que José via.

Não era um fantasma.

Era Mateus.

— Ora, ora, ora… pegamos vocês.

— Mateus? O que…

— Joguem as armas!

Mateus estava à frente de cinco membros da gangue inimiga. Todos apontavam suas armas para José e Roberto.

— Andem! — ele repetiu a ordem.

Olhando um para o outro, os amigos obedeceram. Jogaram suas armas no chão e nada puderam fazer enquanto os inimigos a levavam para longe.

— Muito bem. Agradeço, amigos.

— Seu… seu… traidor! — A voz de Roberto estava trêmula, carregada de amargura e decepção.

— Beto… — O choro de José invadia seus ouvidos.

— Não fiquem zangados… — Mateus falava de um jeito displicente. — Vocês me entendem, não entendem? É questão de sobrevivência, amigos.

— Amigos é o car…

— Quietos! — Um membro da gangue inimiga gritou. — E agora, Mateus? O que quer fazer?

Mateus deu dois passos vagarosos para a frente. Ergueu a cabeça em direção à janela e disse:

— Mate Celso e Vítor.

Roberto não teve tempo para sofrer. Ouviu os disparos vindo da janela atrás de si, e em seguida os gemidos de Celso e Vítor. Tentou se mexer, mas foi alertado:

— Ooooopa, não se mexa, senão vai ser pior. — Era terrível ouvir a voz de Mateus assumindo um tom tão sarcástico, tão cheio de malícia.

— Por quê? — Roberto perguntou, tentando não deixar sua vontade de chorar distorcer seu rosto.

— Sei lá — respondeu Mateus. — Acho que estava cansado de ficar ao lado dos perdedores.

— Beto… — disse José. — Eu estou com fome…

— Calma, Zé.

— É, calma — disse Mateus. — Eu ainda quero brincar mais um pouco com vocês.

— Eu quero o bolo da minha mãe… podemos ir comer o bolo da minha mãe?

— Você é um desgraçado, Mateus! Nos enganou!

— Beto, eu tô com fome…

O olhar de Mateus penetrava. Doía aceitar a verdade. Ele tinha sido vitorioso. Tinha ganhado, às custas de uma traição terrível, ele…

— Criançaaaas! Venham, o lanche está pronto!

— Oba! — José se levantou e saiu correndo. — Já vou, mãe!

— Não, eu quero brincar mais um pouco! — choramingou Mateus.

— Nem vem! — Celso também gritou lá de dentro da janela. — Eu também quero comer o bolo da dona Margarida! Se a gente deixar, o Zé come tudo sozinho! Bora molecada!

Nesse momento, todos já tinham desistido da brincadeira. Colocaram suas espingardas e pistolas de plástico nas costas e correram em direção à casa da mãe de José. Beto olhou para Mateus e disse:

— Dessa vez você ganhou. Mas foi roubado.

Mateus sorriu e respondeu:

— Assim é mais gostoso!

Abraçaram-se e foram juntos comer o bolo da dona Margarida.



Fim



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