A última luz

Autor: Daniel Lucrédio

Para pequenas criaturas como nós, a vastidão é suportável somente através do amor - Carl Sagan

O Sol estava se pondo, marcando o final de mais um dia de verão. Não havia nenhuma nuvem para barrar a luz das estrelas que já começavam a piscar no azul-escuro profundo que se esparramava pelo céu. Téo parou momentaneamente o que estava fazendo para admirar o movimento da grande estrela se escondendo atrás do horizonte. Assim que o último fóton atingiu seus olhos, suspirou e retomou a pesada tarefa de limpeza que tinha ocupado a maior parte de seu dia.

“Credo, tem caixa que não acaba mais!” — pensou, irritado com o serviço enfadonho.

As caixas estavam cheias de papel, em sua maioria artigos científicos de dez ou quinze anos atrás. Também havia rascunhos repletos de fórmulas matemáticas, anotações feitas durante reuniões e discussões, e relatórios impressos cuspidos por máquinas de detecção de rádio e partículas subatômicas.

Assim que esvaziou o carrinho, olhou para a pilha à sua frente. Estava enorme, quase da altura da cintura, e ainda faltavam algumas dentro do observatório. Sem querer demorar, empurrou o carrinho vazio de volta.

O observatório astronômico era formado por dois edifícios. O maior deles era um prédio de dois andares, quadrado, com vinte metros de lado, sobre o qual via-se a grande cúpula redonda que protegia a luneta. Era ali que Téo passava a maior parte do seu tempo trabalhando. O prédio menor, localizado a algumas dezenas de metros de distância, tinha apenas um andar em formato circular. Era o berço do segundo grande aparelho daquela instalação: um detector de neutrinos, projetado para observar emissões subatômicas vindas do espaço.

Apesar de as construções terem um tamanho considerável, por dentro a sensação era claustrofóbica, devido ao arranjo repleto de laboratórios e salas apertadas. A única área mais aberta era a base da luneta, mas era reservada às noites de observação, permanecendo fechada a maior parte do tempo. O resto era um amontoado de mesas, cadeiras, armários, estantes e computadores espalhados segundo uma organização caótica que só as mentes mais brilhantes conseguem decifrar. Por sorte, esse era o tipo de gente que trabalhava ali. E graças ao trabalho de Téo e a limpeza que devia ter sido feita há muito tempo, as coisas iriam melhorar. Ou, pelo menos, seria menos difícil andar sem esbarrar em alguma coisa fora do lugar, o que já era um avanço significativo na qualidade de vida.

Enquanto guiava o pequeno carrinho de mão, começava a pensar na janta. Estava sozinho, e ainda não tinha feito seu pedido. Se demorasse muito, corria o risco de ficar com fome por um longo tempo. O observatório ficava em um lugar bastante afastado, sendo comum que os restaurantes negassem as entregas. Restavam poucas opções entre aqueles que se dispunham a fazer o longo trajeto pelo deserto apenas para entregar um lanche para um cientista solitário.

Se era difícil conseguir encomendar comida, por outro lado o local era muito propício para a observação do céu. O clima semi-árido espantava as nuvens e maximizava a produtividade dos astrônomos, que se engalfinhavam para conseguir reservar uma semana de trabalho no renomado centro. Téo não precisava entrar na briga. Era um funcionário permanente do local, passando a maior parte de sua semana alojado ali. Também era responsável por manter o local limpo e livre de entulhos, como a papelada inútil que agora estava prestes a ir para o lixo.

“Eu devia comer uma salada, mas um hambúrguer, hum… seria tão melhor.”

Colocou mais cinco caixas no carrinho, afundando visivelmente a roda de borracha contra o chão e testando os músculos do braço até seu limite.

“Salada geralmente demora. Hambúrguer vai chegar mais rápido.”

Fez mais uma, duas, três viagens. Nesse meio tempo, decidiu-se:

“É. Hambúrguer. Com batatas fritas. E um refrigerante, é claro.”

Faltavam apenas quatro caixas. Empilhou-as no carrinho e foi feliz até o lado de fora. Assim que jogou a última caixa, acabou derrubando uma outra que estava embaixo, espalhando os papéis pelo chão.

“Droga.”

Começou a recolhê-los, um a um, e não pôde deixar de notar seu conteúdo. Eram um relatório gerado pelo detector de neutrinos. Olhou para a data e se assustou. Era a data atual.

“Isso não era para estar aqui! Droga, Renato, eu disse que eram apenas papéis antigos!”

Folheou rapidamente e percebeu que metade da caixa continha os relatórios daquela semana, que não deveriam ser jogados fora. Xingando a incompetência do colega, esquadrinhou algumas das outras caixas e não viu outro erro. Juntou as folhas recentes e as levou de volta para o prédio, não sem antes dar uma última olhada para o magnífico céu que agora estava repleto de estrelas.

Foi rapidamente até sua mesa, colocou os papéis ali e acendeu a luminária, pois já estava impossível enxergar qualquer coisa naquela hora avançada. Sentou-se e pegou o celular do bolso. Ia chamar o número da lanchonete, mas reparou que a bateria estava quase esgotada. A tela mostrava menos de dois por cento.

Esticou o braço e pegou o telefone fixo com uma mão enquanto a outra abria uma página de endereços no celular. Torceu para que a bateria durasse pelo menos até encontrar o número da lanchonete, que não sabia de cor. Durou. Depois de digitar os números, ouviu a resposta:

— Lanches paraíso, boa noite.

— Boa noite, Kelly, é o Téo.

— Oi Téo, tudo bem? O que vai querer, hoje?

— Hoje eu vou querer um X-salada.

— X-salada? Está de dieta? — Kelly riu.

— Pois é, eu preciso começar a comer melhor regularmente. Um X-salada conta como uma boa intenção, não?

— Sim, claro, claro. Infelizmente está falt…

De repente, a luz se apagou.

— Alô? — Téo tentou falar, mas o telefone tinha ficado mudo. — Alô? Kelly? Se estiver ouvindo, não precisa ser um X-salada. Me mande qualquer hambúrguer, qualquer coisa. Por favor! Alô? Droga!

Suspirando, olhou ao redor. Não dava para ver nada, tamanha a escuridão. Mesmo sabendo que a bateria estava para acabar, acendeu a lanterna do celular.

“Preciso de uma vela, ou uma lanterna. Acho que tem uma lanterna por aqui.”

Apontou a luz fraca para a mesa. Abriu as gavetas e não achou nada. Olhou ao seu redor, iluminou as estantes e armários, e dentro das poucas caixas que tinham sobrado. Nada também. Olhou para o celular. Um por cento.

Desesperado, e mesmo sabendo que não encontraria nada ali, voltou a procurar em sua mesa. Por algum motivo, achou que podia ter uma caixa de fósforos jogada por ali, resquício de alguma comemoração de aniversário com bolo e velinhas. Não achou nenhum fósforo, mas seus olhos captaram algo assombroso.

“Meu Deus!”

Precisou sentar-se. Apontou a lanterna do celular moribundo para os papéis que quase tinha jogado fora, e começou a analisar os gráficos do detector de neutrinos.

“Isso não pode estar certo!”

Os números do relatório contabilizavam dezenas de milhões de ocorrências em um curto período, de cerca de quinze segundos, antes de voltar ao patamar normal. Correu os olhos pela folha em busca do horário. Era da noite anterior, por volta das cinco horas da manhã.

Sem aviso nenhum, a luz do celular apagou.

“Não!”

***

Téo estava sentado do lado de fora. Uma pequena fogueira iluminava os papéis em suas mãos trêmulas. Não encontrou uma lanterna, mas achou os fósforos na pequena copa onde preparavam suas refeições. Foi o suficiente para fazer fogo. Por sorte, havia muito papel e papelão para conseguir produzir uma luz e analisar com calma os dados sobre os neutrinos.

Sua primeira opção não tinha sido a fogueira, e sim o gerador a gasolina que se encontrava guardado em um pequeno depósito na lateral do prédio maior. Se conseguisse ligá-lo, poderia restaurar eletricidade para, pelo menos, acender algumas lâmpadas. Porém, sem uma lanterna, não conseguiria se movimentar até o local apinhado de ferramentas, e nem pegar o combustível. Poderia tentar se localizar usando uma tocha ou mesmo os fósforos, mas ficou com medo de mexer com gasolina com fogo nas mãos. Fez uma nota mental para se preparar melhor no futuro, e deixar tudo pronto para que a energia emergencial possa ser ligada facilmente.

De qualquer modo, não era o momento para pensar naquilo. Precisava de luz. Papel, papelão e fósforos iriam servir perfeitamente.

Não estava ventando, o que ajudou. Foi fácil juntar um pequeno monte e jogar um fósforo aceso em cima. Em segundos estava revisando os números.

Durante todo esse tempo, ficou pensando se não tinha imaginado coisas. Estava com fome, cansado e irritado pela falta de luz. Podia ter se enganado, ter confundido as linhas impressas. Correu os olhos pelos números mais uma vez. Depois conferiu de novo, para ter certeza.

Não tinha se enganado. A constatação era tão real quanto espantosa.

— Está acontecendo! — gritou em voz alta.

Além dos dados do equipamento local, os relatórios traziam a telemetria de outros três detectores espalhados pelo mundo. A mesma anomalia era claramente visível em todos eles. Não era um defeito. De fato, uma rajada de partículas subatômicas havia atravessado a Terra em uma velocidade indistinguível da velocidade da luz. Eram, e ele sabia muito bem, o prenúncio de um evento cósmico catastrófico.

E tinha acontecido quase quinze horas atrás.

Não restava muito tempo.

— Meu Deus! — Sua voz tremia enquanto falava. Olhava para cima. — Meu Deus, meu Deus, o que eu faço?

Nesse momento, um pensamento passou por sua mente. Não era uma pessoa religiosa. No entanto, ali estava ele, em pé, no escuro, sozinho no meio do deserto, olhando para as estrelas e se dirigindo à figura do criador. Era apenas uma expressão, não era uma oração. Ou era?

— Er… sei que nunca falo com voc… o Senhor… Suponho que agora seja uma boa hora para…

Não continuou. Sentiu como se estivesse falando com um parente que há muito não via, meio sem graça, e agora precisasse de dinheiro emprestado. Não faria aquilo.

Seus pensamentos se voltaram para o problema em suas mãos. O que fazer com aquela informação? Será que alguém mais tinha percebido? Normalmente, ninguém fica monitorando os relatórios em tempo real. Os dados são coletados e analisados de uma só vez, posteriormente. Ele mesmo só foi perceber por acaso. Nem mesmo Renato, o colega que quase jogou fora aqueles papéis, tinha percebido que seu conteúdo era extraordinário.

“Preciso avisar todo mundo. Os jornais! A imprensa! Redes sociais!”

Tudo isso era importante, mas não faria aquilo. O tempo era muito curto e precioso demais para ser gasto avisando jornalistas, dando explicações cansativas e falando com quem não se importava. Só havia uma pessoa que precisava encontrar.

“Preciso encontrar Helena! Eu preciso estar com ela nesse momento!”

Começou a correr de um lado para o outro, sem saber o que fazer. Não tinha carro. Um transporte visitava o local uma vez por dia, pela manhã. Era longe de tudo. O vilarejo mais próximo, que era onde ficava a lanchonete, ficava a quinze quilômetros de distância. E a cidade onde morava, e onde Helena provavelmente estaria, ficava ainda mais longe, quase trinta quilômetros.

Não importava. A distância era pequena, minúscula, infinitesimal, quando comparada com a distância percorrida por aqueles neutrinos. E ele percorreria aquela distância, mesmo que fosse a pé.

Olhou para o céu, em busca da constelação do Cruzeiro do Sul. Já sabia mais ou menos a direção que precisava seguir, mas o mapa estelar ajudou-o a ter certeza. Apontou o nariz e começou a correr.

“Preciso encontrar Helena.”

***

O caminho era longo. Não era muito acidentado, sendo plano e coberto por areia seca e mato baixo. Em algumas ocasiões, uma pequena colina ou conjunto de pedras se colocava no caminho, exigindo um esforço maior e causando uma demora que consumia preciosos minutos.

Calculou que devia ser cerca de oito horas da noite. Já estava correndo fazia meia hora quando viu algo iluminado pela fraca luz das estrelas. Era um pequeno barraco de madeira, ao lado de uma garagem aberta. Não havia luz acesa e nem sinal de que alguém morava ali. Ao se aproximar, porém, sentiu uma alegria imensa, como se tivesse recebido um presente dos deuses. Encostada na garagem, havia uma bicicleta.

Torcendo para que não estivesse quebrada, tropeçou por cima do entulho que circundava o local até se aproximar. Na escuridão, não conseguiu avaliar o estado da bicicleta. Acendeu o fósforo e o aproximou. Os pneus estavam murchos, mas a corrente estava intacta. O quadro, apesar de enferrujado, estava inteiro. Girou o guidão, que respondeu prontamente, virando a roda obedientemente na direção desejada. Apertou o selim. Sentiu alguns rasgos no couro velho, e só.

“Uma bomba… uma bomba… tem que ter uma bomba por aqui…”

Foi gastando os fósforos sem pensar enquanto esquadrinhava as paredes e os cantos da garagem em busca do equipamento. Seu plano era tentar mais um pouco e, se não achasse, usaria-a assim mesmo. Não precisou, pois mais uma vez seu desejo foi atendido. O equipamento em forma de “T” estava encostado próximo à entrada.

Rapidamente, encaixou o bico da bomba no pneu e começou a bombear. Assim que os pneus ficaram rígidos, parou e escutou. Nenhum sinal de vazamento. Espalhou um pouco de cuspe nas válvulas. Nada.

“Obrigado!” — Dessa vez tinha sido uma oração.

Empurrou a bicicleta até a entrada do local, subiu e começou a pedalar seguindo a direção indicada pelas estrelas.

Depois disso, o caminho ficou bem mais fácil, pois Téo tinha encontrado uma pequena estrada de terra. A bicicleta avançava veloz entre as cercas e as árvores ao redor. Suas pernas doloridas estavam desacostumadas com aquele tipo de exercício, há muito não praticado, mas aquele não era o momento de sucumbir aos sintomas do sedentarismo. Pedalaria sem parar, nem que para isso estirasse todos os músculos das pernas.

Tinha que estar com Helena naquele momento, e nada o faria desistir.

Mais uma hora se passou até que ele chegasse até a pequena vila. A fadiga estava agindo forte, não apenas em suas pernas. Seu cérebro estava também começando a ter dificuldade para formular pensamentos. Queria parar um pouco para descansar, mas não podia. Estava apenas na metade do caminho.

A vila era realmente pequena, sendo composta por uma rua principal margeada por casas térreas e meia dúzia de becos e ruas perpendiculares. Assim que entrou no chão pavimentado, a bicicleta começou a deslizar melhor, dando um alívio aos músculos já exaustos.

As casas estavam, em sua maioria, fechadas, mas era possível ver o interior delas. A noite estava fresca e agradável, e os moradores aproveitavam para renovar o ar aquecido pelo dia quente deixando suas janelas abertas. Téo viu famílias jantando, sentadas à mesa conversando ou assistindo televisão na sala, tranquilas em sua convivência familiar. Estavam todos alheios ao que estava prestes a acontecer.

Sem pensar direito, Téo começou a gritar:

— Atenção! Atenção, todos! Venham, tenho uma coisa importante para falar! Saiam de suas casas, por favor!

Ele gritava enquanto pedalava devagar. Cabeças espiavam para fora das casas e portas se abriam timidamente, deixando que as pessoas curiosas vissem a origem daquela gritaria. Quando chegou mais ou menos no meio da rua, já havia um grupo relativamente grande de pessoas esperando. Ele parou e disse:

— Pessoal, me escutem! Meu nome é Téo, eu trabalho no observatório astronômico a quinze quilômetros daqui.

Algumas pessoas assentiram com a cabeça. Téo reconheceu alguns rostos, ainda que não soubesse associá-los a nomes. Um senhor de meia-idade perguntou:

— O que está acontecendo? Por que essa gritaria?

— Eu já vou explicar. É muito importante, e não temos muito tempo. Agora há pouco…

Parou de falar ao reparar na mulher ao lado do homem que fez a pergunta. Ela segurava um celular com a tela ligada. Téo não resistiu:

— Senhora? Me desculpe, mas pode me emprestar o celular por um minuto? O meu não está funcionando, e eu REALMENTE preciso falar com algumas pessoas.

A mulher pareceu desconfiada. O homem ao seu lado levantou os ombros e fez um sinal de concordância para ela, que estendeu a mão com o aparelho.

Téo recebeu o celular como se fosse um tesouro sagrado.

“Finalmente! Mas… para quem eu ligo primeiro?”

Depois de pensar alguns segundos, discou os números e aguardou. Uma voz feminina atendeu:

— Alô?

— Mãe?

— Fala, Téo. Tudo bem? Achei que não ia ligar hoje.

— Comigo tudo bem, mãe. E vocês? Como está o papai?

— Ah, ele está ótimo, deu uma melhorada hoje. Até deu alguns passos com a muleta.

“Ótimo! Isso era tudo que eu queria saber!”

Ele continuou:

— Que bom, mãe. Escute, eu estou com pressa, e preciso falar algo.

— O que foi?

— Sabe aquele lugar que a gente foi visitar, uns anos atrás, no parque da cidade?

— Qual?

“Droga, mãe, não tenho tempo!”

— Aquele onde a gente foi observar o céu, tirar umas fotos, lembra?

— Aaaah, lembro sim. O que tem ele?

— Então, eu quero que vocês vão até lá.

— O quê? Quando?

— Agora.

— Agora?

“Rápido!”

— Sim, mãe, agora, confie em mim. Não esquece de levar a cadeira de rodas, senão vai demorar muito pro papai chegar lá naquele ponto mais escuro.

— Aaaah, eu não vou, não. Já está noite. A não ser que… vai ter um cometa?

— Não, não é um cometa. Confia em mim, mãe. Leva um chocolate quente, umas almofadas para sentar, e vai. — A pressa estava latejando em sua mente. — Posso falar com o papai um pouquinho?

— Claro.

— Alô?

— Oi, pai. Tudo bem?

— Ô, estou ótimo! Hoje eu andei com a muleta, estou me sentindo bem.

— Que bom, pai. Escute, já falei com a mamãe. Ela vai te levar para o parque da cidade. Aquele que a gente foi pra observar o céu.

— É, eu ouvi. Tem um cometa, né?

— Não, não é um cometa. Escute, preciso desligar.

— Tá bom, filho, a gente vai, viu?

— Vai sim. E, pai? Eu te amo, viu? Amo você e a mamãe.

— Também amamos você, filho.

— Posso falar com a mamãe?

— Tá. Tchau.

— Mãe?

— Oi, filho, que foi?

— Eu te amo. Fique com o papai, sim?

— Ai, filho, o que foi? Estou ficando preocupada.

— Eu amo vocês dois. Tchau.

— Tchau.

Desligou o celular e fechou os olhos, tentando segurar as lágrimas. “Droga, vamos logo.” — pensou. Não podia se dar ao luxo de ficar enrolando. Assim que abriu os olhos, percebeu que as pessoas ao seu redor o olhavam, assustados.

— O que está acontecendo, moço?

— Só um minuto, por favor. Eu preciso falar com mais pessoas da minha família.

A próxima ligação não seria fácil. Sua ex-mulher. Enquanto digitava os números, ouvia as pessoas falando baixo ao seu redor:

“O que está acontecendo?”

“Eu não sei, ele está ligando para família.”

“Família? Pra quê?”

“Não sei, parecia que estava se despedindo, não sei.”

Terminou de digitar. Ouviu a voz sonolenta atendendo do outro lado.

— Alô?

— Fátima?

— Quem está falando?

— É o Téo.

A voz fez uma pausa. Depois voltou:

— Esse número é diferente. Escuta, já caí num golpe antes, tchau.

— Não, Fátima, sou eu mesmo, me escute, não desligue!

Ainda podia ouvir as pessoas falando ao seu lado:

“Agora ele está falando com a esposa, parece.”

— Por que está com um número diferente?

— É complicado, e não tenho tempo para explicar.

— Você NUNCA tem tempo, né, Téo? Está sempre ocupado com alguma coisa.

— Eu sei, me desculpa, mas dessa vez é importante. Com quem você está?

— Por que quer saber? Estou com meu marido.

— Seu marido? E a Helena?

— Está numa festa.

“Droga!”

— Está bem, eu…

“Acho que é ex-mulher, hein?”

— Bem, eu… — Não sabia como dizer aquilo. Não podia simplesmente dar ordens para sua ex-esposa, como tinha feito com seus pais. — Aí no prédio tem um terraço, né?

— O que é, Téo? Você está enrolando. Quando enrola assim é porque quer pedir alguma coisa.

— Calma, Fátima, eu estou falando, me deixa explicar, caramba! Eu não tenho muito tempo, já falei.

— Eu também não tenho tempo! Estava quase dormindo aqui e você me liga com um papo estranho!

“Acho que estão brigando.”

“Ela parece chata, dá pra ouvir ela gritando daqui.”

“O que ele tem de tão importante pra falar pra família?”

O tempo estava passando. As pessoas ao lado estavam comentando, se intrometendo. Fátima também não parava de falar:

— … você sempre liga pra atrapalhar, pra se meter na minha vida…

“Chega! Não tenho tempo pra isso!”

— Tá, esquece que eu liguei, Fátima. Deus sabe que eu tentei! Tchau, tenha uma boa vida!

Desligou. Tinha sido uma má ideia ligar para ela, mas não pôde evitar. Parte dele ainda gostava dela e queria honestamente que ela ficasse bem. Claramente ela estava longe de sentir o mesmo.

Imediatamente começou a discar mais um número, ignorando os apelos da dona do telefone:

— Moço, o que está acontecendo?

Ele levantou o dedo, pedindo silêncio. Depois de intermináveis segundos, finalmente ouviu resposta:

— Alô?

— Helena?

— Pai?

— Sou eu, filha. Tudo bem?

— O quê você quer? Por que tá ligando hoje?

A hostilidade na voz sempre doía. Era herança da adolescência e da longa convivência com a mãe após o divórcio.

— Onde você está, filha? Eu preciso ver você, agora.

— Por quê? Eu tô numa festa.

— Só me fala o endereço, por favor.

— Não!

Téo sentiu o desespero aumentando.

— Filha, lembra quando a gente ia ver o céu, as estrelas? Lembra quando a gente ficou até de madrugada pra ver aquele cometa?

“Olha lá, ele falou em cometa, de novo.”

— Hã, lembro.

— Então, hoje vai acontecer uma outra coisa.

— É outro cometa? Não quero ver, pai. Não aguento mais ver cometa, estrela, nebulosa, nunca gostei.

— Não é um cometa. E essa não é você, é sua mãe falando!

“Não é um cometa. Ele falou de novo.”

“Será que é um asteróide? Ouvi dizer que tem uns…”

— Tá, mas eu não quero ver nada hoje, pai.

— Me passa o endereço, Helena, por favor? Eu preciso ver você hoje. Por favor.

Um silêncio se fez. Téo torcia para ela ceder. Ela tinha que ceder.

— Tá, pode vir, mas eu não vou com você. Vou ficar na festa, okay?

— A gente conversa.

— Eu estou na chácara do Paulo, aquela no condomínio do bosque, sabe?

— Sei. Já estou indo, me espere. Eu te amo.

O telefone desligou, e Téo não soube dizer se ela tinha ouvido a última parte.

Assim que levantou os olhos, encarou uma pequena multidão à sua frente. Entregou o telefone de volta para a mulher, que perguntou mais uma vez:

— O que está acontecendo, moço? Por que está tão desesperado para ver sua família? A gente está ficando preocupado.

Antes que respondesse, uma menininha de uns oito anos ergueu um par de olhos suplicantes e perguntou com uma voz chorosa.

— Moço, um cometa vai cair na Terra?

— Não é um cometa, sua tonta! – Um garoto ao seu lado respondeu. Pelo tratamento, devia ser o irmão mais velho dela. — Você não ouviu ele falando? Cometas são fáceis de ver, a gente teria visto no noticiário. Deve ser um meteoro, não é, moço?

— É um meteoro, moço?

— A gente tem que se esconder?

— METEORO? — Alguém gritou.

— Ai meu Deus, onde vai cair? Vai ser aqui perto?

— Responde, moço, por favor!

Téo não sabia o que falar. Não queria provocar pânico. Começou a balbuciar:

— Calma, gente. Calma…

Nesse momento, seus olhos se ergueram, e ele viu.

Seus ombros caíram e os joelhos quase cederam. Deu uns passos para trás para não cair sentado no chão. Incapaz de conter a emoção, exclamou, o queixo tremendo e a voz embargada:

— Oh, meu D-deus! É r-real! Está acontecendo, de v-verdade!

Não queria ter dito aquilo, mas quando viu com seus próprios olhos o que antes era apenas uma previsão teórica e números em um relatório de papel, não foi possível evitar.

Imediatamente, as pessoas começaram a se exaltar ainda mais:

— O quê? O que foi que ele falou?

— Ele viu algo, no céu!

— Onde? Onde?

— Ali, daquele lado!

— Não estou vendo! Você está vendo?

— Não!

— Vocês estão vendo o meteoro?

— Meteoro? Vindo pra cá?

A gritaria começou a ficar cada vez mais alta e estridente. Foi se espalhando e aumentando gradativamente até parecer que a vila toda estava correndo e gritando de maneira desesperada.

— Calma! — Tentou gritar. — Calma, não precisam entrar em pânico! Escutem-me!

Ninguém ouvia. Todos já estavam em um estado de histeria e não eram mais capazes de ouvir uma voz racional.

“Merda. Que foi que eu fiz?”

Criar pânico era a última coisa que pretendia provocar, mas não tinha tempo para consertar. Subiu na bicicleta e começou a pedalar furiosamente.

Antes de sair da cidade, viu Kelly, a atendente da lanchonete que estava lhe devendo um hambúrguer. Ao avistá-lo, ela falou:

— Téo? O que está acontecendo?

— Desculpe, eu preciso ver minha filha. Diga a todos para ficarem perto de quem amam. Você também, Kelly.

— O q-que é isso, Téo? O que você…

— Me desculpe, não quis causar pânico, mas eu não tenho tempo pra explicar, agora.

Voltou a pedalar rápido, deixando para trás a algazarra na vila.

***

Os últimos quilômetros pareciam se esticar indefinidamente. Téo podia jurar que, a cada giro no pedal, dez metros eram acrescentados à estrada. Para piorar, o ponto no céu com a singular luminosidade atraía seu olhar a todo momento. Cada vez que erguia o pescoço para espiá-lo, temia ser tarde demais.

Enfim, chegou ao local. Exausto e sujo, mas estava lá, finalmente.

Deixou a bicicleta no chão e cambaleou os últimos passos até o portão da chácara. Apertou o botão da campainha e esperou uma resposta que veio em poucos segundos:

— Oi? Quem é? Não dá pra ver pela câmera.

— Boa noite. Aqui é o pai da Helena. Ela está?

— Helena? — A voz ficou mais baixa. — Tem um sujeito aqui dizendo que é seu pai.

— Diga que eu já vou.

Era a voz dela. Fazia tempo que não a ouvia.

“Tempo demais.”

Esperou ansiosamente, contando os segundos. Um barulho metálico anunciou que a porta estava se abrindo.

“É agora. Calma, Téo.”

A figura dela apareceu. Parecia alta, mais alta do que se lembrava. Era sempre assim com Helena. Ficava muito tempo sem vê-la.

“Tempo demais.”

— O que foi?

— Oi, filha. Tudo bem? Está linda.

— Você está… todo sujo.

Ele olhou para baixo. Não imaginava que estivesse tão ruim.

— É, me desculpe por isso. Eu fiz uma longa viagem.

Ela olhou para o veículo jogado no chão atrás dele e disse:

— Você veio… de bicicleta, desde o laboratório até aqui?

— Sim, filha. Eu precisava vê-la.

— O que foi, pai? Diz logo. Se não reparou, tem uma festa aqui.

Seus olhos castanhos eram distantes. Seu rosto, impassível. A boca reta não demonstrava sinal de sentimento algum. Era uma estátua de mármore frio, impenetrável. Ajustou os cabelos lisos e loiros, idênticos aos da mãe, e cruzou os braços em uma postura defensiva.

— Você precisa vir comigo.

— Não.

Sua voz não dava margem a discussões. Não era aquele “não” choroso da criança que deixou de ser poucos anos atrás. Tampouco era um “não” que servia mais para expressar descontentamento do que vontade própria. Era um “não” adulto. Deliberado. Definitivo.

— Escute, filha…

— Quem é? — Um rapaz chegou por trás e espiou sobre o ombro dela.

— Ninguém, eu já vou entrar — ela respondeu, cruel.

— Eu sou ninguém? — perguntou Téo. — Achei que eu era seu pai.

— O que você quer de mim? Você acha mesmo que eu vou simplesmente abandonar o que eu estou fazendo para ir atrás das suas maluquices?

— Não é maluquice, filha…

— Quantas vezes VOCÊ deixou de fazer o que estava fazendo para ficar com a gente? — Seu rosto se encheu de revolta. — Quantas vezes VOCÊ parou um minutinho só do seu trabalho para ficar com a gente na sala de jantar? Fala, pai! — Seus lábios começaram a tremer. Ela estava prestes a chorar.

— Calma, Helena. — O rapaz ao seu lado afagou seu ombro carinhosamente.

Téo não sabia o que dizer. Olhou para cima. O brilho exótico estava lá, dizendo-o para se apressar. Como apressar uma conversa que demorou anos para começar?

Ele se aproximou e pegou a mão dela. Olhou para o rapaz, pronto para lançar um desafio feroz caso ele quisesse dificultar as coisas. Ele não fez nada. Sentindo-se confiante, ele a puxou para longe da porta. Ela cedeu. De cabeça baixa, relutante, mas cedeu.

— Filha, eu sei que temos muito o que conversar. Eu… tenho muito com o que me desculpar. Eu prometo que vou fazer isso. Apenas venha comigo um pouco, vamos dar uma volta.

Ela enxugou uma lágrima solitária com as costas da mão e sugou o ar com o nariz, segurando o choro. Perguntou:

— O que é? É uma dessas chuvas de meteoro? Uma conjunção especial entre Marte e Saturno? Você sabe que eu não gosto dessas coisas.

— Gosta, sim. Sua mãe é que…

— Não fale da mamãe!

Seu coração pulsava. Precisava convencê-la, a qualquer custo.

— Está bem, está bem. — Parou um instante, calculando seu próximo movimento. Não havia margem para erro. Sentia que era a última chance. Continuou: — Você se lembra de quando fomos ver o eclipse solar? Quando fomos eu, você e a mamãe até o interior da Paraíba?

Helena deu um riso irônico ao responder:

— Como esquecer? Foi uma viagem horrível. VOCÊ foi horrível, arrastando a gente para aquele fim de mundo. A mamãe decidiu se separar depois daquilo, sabia?

— Sabia, sabia. É exatamente isso que eu quero dizer. Eu fui… não fui um bom marido, eu sei disso. Fátima merecia alguém melhor do que eu. E acho que aquela viagem foi um reflexo da nossa vida juntos. Eu, às vezes, fico empolgado demais e me deixo levar. Acabo me esquecendo de vocês, eu sei, mas você estava feliz, não estava? Ou quase? Você até se divertiu cavalgando no jegue, lembra?

O riso irônico dela se esticou, tornando-se um pouco mais leve e genuíno.

— É, eu era uma criança boba.

“Ela está se abrindo. Continue.”

— E você se lembra quando chegou a hora do eclipse e o anel de diamante se formou no céu? Você se lembra do que falou?

Ela finalmente ergueu os olhos para encarar o pai. Seu semblante agora trazia uma pitada de carinho. Depois de alguns segundos, respondeu:

— Eu disse… “Obrigada por… me trazer até aqui.”

Ele apertou os lábios e a segurou pelos ombros. Ela o encarou por mais um tempo e depois disse:

— E foi mesmo uma das coisas mais bonitas que eu já vi.

— Então. Hoje… daqui a pouco, na verdade, vai acontecer algo ainda mais impressionante.

— Não sei… acho que vou entrar. Eu vejo amanhã, nos noticiários.

— Filha, você não está entendendo… não vai… não vai sair nos noticiários amanhã.

O rosto dela se anuviou. Tremendo, ela perguntou:

— Pai, para. Você está me assustando!

— Não, filha, desculpe, eu não queria te assustar.

— Vou entrar…

— Não! — Ele a segurou pelo braço. Ela olhou para a mão dele, parecendo realmente assustada, mas não tentou fugir. Reconheceu finalmente no rosto do pai a urgência que o corroía por dentro.

— Venha comigo, filha. Por favor! — Ele olhava para cima a todo momento.

Mais alguns segundos de interminável silêncio se passaram. Téo respirava acelerado, aguardando o veredito, que enfim chegou:

— Está bem. Eu vou.

Seu corpo amoleceu. Ela tinha finalmente concordado. Talvez tivesse sido o medo de contrariá-lo, ou era apenas um modo de se livrar dele mais rapidamente. Não importava o motivo. Tinha concordado.

Antes que a alegria e o alívio o desmontassem de vez, forçou-se a olhar para o céu, para que a evidência do que estava para acontecer lhe restaurasse a pressa necessária.

— Ótimo, vamos logo. — Deu alguns passos para trás e levantou a bicicleta.

— O que está fazendo?

— Vamos de bicicleta. Tem um lugar aqui perto que vai dar pra ver…

— E eu vou sentar onde?

— Na garupa. Acho que cabe, se espremer. Vamos filha, não temos tempo…

Ela se virou de costas e foi até o rapaz que ainda os observava da porta.

— Me empresta o carro, amor? Vou sair um pouco com meu pai.

— É claro.

Enquanto ela ia até o veículo estacionado e acionava o controle para abrir as portas, Téo se sentiu um verdadeiro imbecil. Ele realmente tinha achado que iria levá-la na garupa, como se ainda tivesse oito anos de idade. Disse:

— Ah, sim, achei que não teria um carro aqui… bem melhor… Er… você vai dirigindo, né?

— E por acaso você já tirou carta de motorista? — ela perguntou, sorrindo para ele de verdade pela primeira vez naquela noite.

Pela primeira vez em muito tempo.

— Não — sorriu de volta.

— Então, entra aí.

***

O lugar não era longe. Téo dava instruções para Helena, que conduzia o carro com o olhar fixo à frente. Ela não olhava para ele. Já ele, não conseguia desgrudar os olhos dela. Fazia muito tempo que não ficavam sozinhos, e ele só conseguia pensar em como aquilo era um evento muito raro.

Téo olhou para as estrelas mais uma vez, conferindo a posição da Constelação de Órion, ainda não acostumado com a visão do ponto estranho que ficava um pouco acima do cinturão do caçador.

Havia tempo. Pouco. Minutos, talvez.

O carro avançou pela estrada até chegar a uma porteira. Téo desceu correndo e a abriu, soltando o pequeno arame que a segurava fechada. Servia mais para prevenir que os animais escapassem do que para impedir que intrusos humanos entrassem. Depois disso seguiram por uma estrada de terra até uma curva que desviava da colina. Helena parou o carro ali, e eles foram caminhando pelo terreno até chegarem ao ponto mais alto.

Pela primeira vez em muitas horas, Téo soltou um suspiro aliviado.

“Consegui.”

O céu continuava tão limpo quando esteve o dia todo. Estava magnífico. Não havia luar. A Via Láctea era facilmente vista em meio às milhares de estrelas que normalmente se escondiam da poluição luminosa, praticamente ausente naquela região afastada. Estrelas cadentes riscavam o espaço vez ou outra, trazendo um sorriso no rosto de Helena.

— E agora? — ela perguntou.

— Agora a gente espera.

— O que a gente veio ver?

— Calma, já vai acontecer. O importante é que a gente está aqui, e a gente está junto! Não há nenhuma outra pessoa com quem eu queria estar nessa hora.

Nesse momento, ele a abraçou. Ela não retribuiu, mas se deixou abraçar, o que já era uma grande vitória.

Depois de alguns minutos, Helena falou:

— Já que a gente está esperando, tem uma coisa que eu venho querendo dizer.

— Hã? — Ele ainda olhava para o céu.

— Eu sempre fiquei do lado da mamãe, durante as brigas, mas acho… Hoje eu vejo… que algumas vezes ela estava errada também.

— É? Que bom ouvir isso, filha. Sua mãe quase sempre tinha razão, sabe? Mas eu não fui de todo ruim, fui?

— Não, quando eu era criança você era o máximo!

Ele se virou para ela, e seu coração se alegrou quando viu seu rosto. Os olhos refletiam a luz das estrelas, e a boca se abria em um largo sorriso.

— Obrigado por me dizer isso, filha. Era tudo o que eu queria ouvir. Eu te amo. Eu sempre te amei, saiba disso!

— Eu… também te amo, papai.

E naquele momento, finalmente, ela o abraçou, apertando seus braços ao redor dele com força. Téo a apertou de volta, tentando fazer com que seus corações grudassem e voltassem a bater em sincronia, como tinha sido há muito tempo.

— Me desculpe, filha. Me desculpe por não ter sido um bom pai.

— Ahã. — Ela não conseguia responder verbalmente. Apenas assentia com a cabeça.

Ficaram abraçados por um tempo. Téo não conseguia parar de pensar na sorte que teve. Em como conseguiu se reunir com a filha. Depois de anos evitando o confronto, fugindo das brigas e discussões, estava segurando-a em seus braços, sob um imenso céu estrelado. E justamente naquele momento, naquela noite tão rara, tão especial.

“Isso é tão raro!”

Téo até esqueceu de olhar o céu por alguns instantes. Foi Helena quem o lembrou.

— O que é aquilo?

— Hein?

— No céu. O que está acontecendo?

Téo se virou para olhar. Seu corpo se arrepiou todo, tomado pela emoção.

“É agora!”

— Pai?

Um brilho forte começava a se formar na Constelação de Órion. No começo parecia uma estrela muito brilhante, mas rapidamente a luz assumiu uma intensidade que superava a de qualquer outro objeto do céu noturno.

— Pai? — A voz de Helena começou a soar tremida. — Eu t-tô com medo, pai. O que é aquilo? — Seu queixo tremia, e seus olhos se encheram de lágrimas. Ela apertou seu braço com força, buscando conforto contra algo terrível e desconhecido.

Téo sentia um misto de emoções que quase não cabiam no peito. Seu lado cientista estava apreciando o magnífico e raríssimo evento cósmico que começava. Seu cérebro comparava o que estava vendo com as equações e previsões que conhecia, maravilhando-se com a sua concretude factual.

Ver sua filha entrando em pânico também causava uma mistura de sentimentos. Não queria que ela sofresse, é óbvio, mas ao vê-la suplicando pela ajuda dele, como se fosse uma menininha de três anos vendo uma onda grande chegando do mar pela primeira vez, sentiu o coração se enchendo de ternura e sentimento de proteção. Parte de si queria confortá-la imediatamente, enquanto outra, egoísta, queria saborear a nostalgia e a saudade por mais uns segundos. A razão venceu, e ele disse:

— Calma, filha, é inofensivo.

— Inofensivo? — A dúvida dela era apenas retórica. Téo sentiu na voz dela que já tinha se acalmado instantaneamente. Isso o encheu de orgulho, pois entendeu que, ao menos em termos de astronomia, a filha acreditava cegamente nele, a ponto de uma simples palavra ser suficiente para extinguir a angústia e o verdadeiro terror que estava sentindo.

A visão se tornava cada vez mais magnífica. O brilho aumentava rápido, e agora já parecia um raio de sol concentrado em um único ponto do céu.

— Sim, veja — ele começou a explicar —, estamos vendo a morte de uma estrela. Ela está liberando uma tremenda quantidade de energia, milhões de vezes mais energia do que o nosso Sol, mas está muito, muito longe, então o que chega aqui é somente luz.

— Só luz?

— Isso.

Ela continuava olhando fixamente para a estrela que explodia. Seu semblante agora era sereno e calmo. Sua respiração ficou mais tranquila e Téo percebeu que ela realmente estava apreciando o momento.

Olhou novamente para o espetáculo. Em tese, o brilho da estrela estaria quarenta vezes mais intenso. Isso era o que seu cérebro informava. Porém, seus olhos humanos queimaram com a beleza e a natureza daquela luz. Havia um único ponto central de onde os fótons brotavam, mas as retinas saturadas davam a impressão de um círculo maior desenhado em gradiente no céu, com milhões de finíssimas linhas congruentes saindo de um mesmo lugar.

Era magnífico. Uma visão única. Uma visão raríssima. No entanto, Téo não conseguia olhar por muito tempo, pois queria olhar para outra coisa também. Se lhe perguntassem antes sobre o que faria se estivesse testemunhando uma Supernova ao vivo, responderia que permaneceria olhando até que suas retinas queimassem. Qualquer astrônomo provavelmente responderia o mesmo.

Mas, naquele momento, havia outra coisa competindo por sua atenção. Algo tão magnífico e especial quanto os últimos momentos de uma estrela.

Helena.

Seu rosto parecia adulto, nas feições, mas a emoção que moldava os músculos e a pele era a de uma criança vendo o mundo pela primeira vez. Téo viu, tão nitidamente como se tivesse voltado no tempo, uma menininha, uma criança maravilhada com um conhecimento novo e surpreendente. Um olhar que somente uma criança era capaz de exibir. Um olhar que Téo conheceu e aprendeu a amar em Helena. Um olhar que, aos poucos, foi deixando de existir, até se tornar o olhar atrevido dos adolescentes, e depois o olhar cínico dos adultos. Naquele momento, o olhar infantil estava ali de volta. E era tão raro e bonito quando o brilho intenso no céu. Téo não sabia onde fixar seus olhos.

Depois de alguns minutos, Helena falou:

— Oh, está diminuindo!

— Sim.

— Já vai acabar?

— Essa parte, sim. É um evento muito curto. Por isso eu duvido que vá sair nos noticiários. Alguém precisaria estar com uma câmera apontada para o lugar certo, e ajustada para capturar a quantidade exata de luz, para não saturar os sensores. Não sei se alguém conseguiu. Amanhã vamos descobrir.

Helena suspirou e continuou apreciando. Ainda estava abraçando o pai, mas até então era um gesto inconsciente, um resquício congelado do abraço de antes da explosão. Agora, mais calma, ela reajustou os braços e apoiou sua cabeça no ombro dele, aconchegando-se ainda mais. Téo sentiu seu perfume doce.

Depois de mais alguns minutos, a luz já era bem mais fraca, quase como a de um planeta. Helena disse:

— Quando vai ter outro evento desses?

Téo sorriu com a pergunta. Segurando-se para não começar uma de suas explicações enfadonhas que a filha detestava, apenas respondeu:

— Bem, não muito tempo. Uns cem…

— Cem anos?

— Talvez quinhentos…

— QUINHENTOS anos? — Ela tirou sua cabeça do ombro dele e o encarou, assustada. Ele sorriu.

— Quinhentos MIL anos. Ou pode ser um milhão de anos, ninguém sabe direito.

— O quê?

— Existem muitas Supernovas acontecendo no universo, o tempo todo, mas uma explosão dessa magnitude, tão perto de nós, vai demorar… um tempinho.

— Perto? Quanto?

— Uns seiscentos anos-luz daqui.

— Anos-luz? Quer dizer que essa luz demorou seiscentos anos pra chegar aqui?

— Isso.

— Então… isso quer dizer que… a explosão aconteceu há seiscentos anos atrás, e só agora estamos vendo?

— Isso mesmo, deve ter acontecido na Idade Média, mais ou menos.

— Que irado!

Mais uma vez a criança interior deu as caras, enchendo o coração de Téo de nostalgia.

Helena ficou pensativa por um tempo. Depois aconchegou a cabeça em seu ombro novamente e disse.

— Você pedalou mesmo dezenas de quilômetros pelo deserto?

— Não, não… nos primeiros dez quilômetros eu corri, mesmo. Achei a bicicleta em uma garagem abandonada.

— Você é maluco. — Ela deu uma risada gostosa.

— Eu não acabei de explicar o quão raro foi esse evento? Entre as bilhões de pessoas que estão vivas neste momento, as bilhões de pessoas que já viveram na Terra no passado e as bilhões de pessoas que ainda viverão nos próximos séculos, eu diria que talvez poucas dezenas ou centenas de pessoas puderam ver aquilo ali. E nós fomos duas dessas pessoas privilegiadas, que viram a maravilhosa explosão com os próprios olhos.

Ela contemplou o pensamento por alguns segundos. Não sabia o que dizer. Parecia consternada, com o semblante preocupado, tentando digerir o peso daquelas estatísticas. Téo acrescentou:

— Eu TINHA que dar esse presente para você, Helena. Sempre foi especial para mim, é claro. E agora você é um dos poucos seres humanos, em toda a história da humanidade, que tem essa história pra contar.

Os olhos dela se encheram de lágrimas. Seus lábios tremeram, e ela começou a chorar. Com dificuldade, repetiu a frase que tinha dito há tantos anos atrás:

— Obrigada por me trazer até aqui.

Ele suspirou, e logo começou a chorar também.

— É isso que os pais fazem.

Ficaram abraçados por mais um longo tempo. Depois de um silêncio demorado, se desvencilharam e voltaram a olhar para o céu.

— Bem, foi lindo, mas agora acho que você vai querer voltar pra festa, certo?

— Depois. Me fala mais. E agora? O que vai acontecer? A estrela vai apagar?

Téo estava esperando aquela pergunta. Com um sorriso maroto, disse:

— Não. Ela vai se transformar em outro tipo de estrela, isso só vem muito depois! Por enquanto, ainda tem o resto da explosão.

— Resto?

— Eu te disse antes, essa foi só a primeira fase. Foi curta e rara, mas agora é que vai começar o verdadeiro show!

— Como assim?

— A parte mais impressionante acontece nos próximos dias. Depois desse brilho inicial, ela escureceu de novo, está vendo? Mas vai ficar brilhante de novo, vai brilhar mais que a Lua cheia!

— Sério?

— Sim, vai dar pra ver até mesmo durante o dia! Dura uns dez ou quinze dias. Depois, nos meses seguintes…

Helena absorvia as explicações como há muito não fazia. Ele era novamente seu herói, seu protetor, aquele que respondia às perguntas com amor e carinho.

Era novamente seu pai.

Téo não soube dizer quanto tempo ficaram ali naquela noite. Pode ter sido poucos minutos ou poucas horas. Só sabia de uma coisa. Algo extraordinário aconteceu. Um evento raro. Único e último. Tão belo e magnífico quanto efêmero. Um prenúncio de uma nova vida.

Assim como a estrela que explodiu.



Fim



Gostou? Não? Sinta-se à vontade para escrever para o autor. Seu contato é muito bem-vindo!
Ir para a página do autor