Um monumento no deserto

Autor: Daniel Lucrédio

(A câmera focaliza em um rosto, que ocupa todo o quadro. É um rosto magro, de um homem com cerca de quarenta anos, com barba crescida e um sorriso envergonhado na boca. O homem começa a falar.)

Peço desculpas, desde já. Eu não posso explicar, simplesmente não posso. Espero que algum dia vocês possam ao menos entender o que estou prestes a fazer. Talvez até me perdoar, quem sabe? Ou talvez... Bom, para isso vocês precisam conhecer minha história. Contada por mim, e não pelos outros. Vamos lá, do início.

Eu estava na sala, sentado no tapete, bem perto da televisão. Não desgrudava os olhos das imagens que se projetavam na tela brilhante. É engraçado como a memória da gente funciona. Tem muita coisa para ser lembrada daquela noite, mas eu me lembro muito claramente de tentar não piscar. Eu achava que se piscasse, um segundinho que fosse, iria perder alguma coisa muito legal, muito importante. Eu era criança, tinha onze anos. Parte do meu interesse, é claro, era não ficar de fora. No dia seguinte todo mundo na rua só iria falar desse assunto e eu queria estar sabendo de tudo. Mas outra parte de mim sabia que a partir daquele momento eu seria uma pessoa diferente, que alguma coisa dentro de mim estava mudando, para sempre.

Eu não era o único. Acho que o mundo inteiro estava acompanhando o noticiário. Era algo inesperado, diziam. Não havia leis que proibissem o que ele estava prestes a fazer. É claro, uma pessoa tinha que ser muito maluca para tentar aquilo. Além de ser um bilionário. Talvez por isso ninguém tenha pensado seriamente em criar regras ou normas para dizer o que é certo e o que é errado neste caso. Também não iria prejudicar ninguém, exceto talvez ele mesmo. Os jornalistas também diziam que podia ser uma jogada de marketing, que ele iria desistir no último minuto. Fazia sentido, pois há dois meses o bilionário havia enviado os detalhes de seu plano para todo veículo de comunicação, jornais, televisão e Internet. Sendo muito famoso, virou notícia imediatamente, as ações de suas empresas triplicaram de valor, e as expectativas foram ao espaço... literalmente!

Era começo de janeiro, eu estava em férias. Minha família estava toda na sala também. Meus pais, sentados no sofá atrás de mim. Minha irmã Viviane estava deitada no tapete, ao meu lado, seus olhos refletindo o brilho da televisão. Nenhum deles era muito ligado em foguetes ou missões interplanetárias. Meus pais até que incentivavam meu gosto, comprando livros e brinquedos espaciais, mas sem conseguir esconder muito bem seu desinteresse. Já minha irmã não fazia questão de disfarçar. Viviane sempre me chamava de "nerd" alienígena, e às vezes juntava suas amigas para caçoar do irmão mais novo. Eu ficava um pouco chateado, mas tentava não ligar. Só que naquela noite não tinha como alguém não se interessar.

Embaixo da imagem de um enorme foguete iluminado por refletores em uma noite clara, a televisão mostrava em letras de destaque a notícia avassaladora: "Pela primeira vez na história, civil embarca em viagem espacial". O narrador explicava:

— Não deve demorar agora para a contagem se iniciar. Em poucos minutos o bilionário canadense Elton Myers poderá se tornar o primeiro civil a sair do planeta Terra em um veículo 100% construído com recursos próprios. Seu plano, repito, caso seja bem sucedido, é primeiro alcançar a estratosfera, e em seguida disparar rumo ao planeta Marte. Não sabemos exatamente o que ele pretende conseguir. Ele é o único tripulante, e certamente será uma viagem bastante solitária. Se ele sobreviver ao lançamento, é claro.

Um comentarista entrava na conversa:

— É realmente inacreditável! Sem dúvida é um marco na história da humanidade, e que estamos testemunhando em primeira mão. A ciência espacial está oficialmente saindo das mãos militares e chegando ao alcance de qualquer um que tenha os recursos.

— Pois é! Mas permita-me retomar um assunto. A gente está discutindo isso há meses, e não se tem um consenso de qual é o motivo dessa viagem. Nem a NASA nem qualquer outra agência espacial pretende enviar missões tripuladas a Marte nos próximos vinte anos. Na verdade, não há um motivo forte ou urgente para isso, além da curiosidade científica. E aí vem esse sujeito cheio da grana e resolve construir um foguete e ir sozinho?

— O Elton é uma personalidade ímpar! — percebia uma admiração enorme na voz do comentarista — Suas empresas são líderes de tecnologia em várias áreas, robótica, inteligência artificial, Internet e aeronáutica. Ele está sempre investindo para romper limites, para dar um passo além. Na verdade, para quem o conhece, isso faz bastante sentido! Ele praticamente conquistou o mundo. Ele tem literalmente tudo. Dinheiro, sucesso, fama. Acho que uma viagem interplanetária é a única coisa que faria Elton Myers realmente sentir uma emoção, um frio na espinha.

— Mas o projeto que ele divulgou para a mídia não diz exatamente o que ele quer fazer em Marte, se ele vai tentar o pouso, ou mesmo se ele pretende retornar. Na verdade, a maioria dos especialistas concorda que, com o desenho de seu foguete, e com a quantidade de combustível que ele tem disponível, seria uma viagem sem volta. E aí?

— Bom... — a voz do comentarista assumia um tom grave — Realmente, ele não quis comentar o assunto em entrevistas. Ele é sempre evasivo em relação a essa pergunta. Muitos acham que ele não pretende cumprir o plano, que vai apenas sair da Terra e voltar, ou nem vai decolar. Vamos descobrir logo, logo...

— E os boatos de que ele entrou em depressão depois que a esposa faleceu? Dizem que ele perdeu o gosto pela vida, que estaria planejando “sair em grande estilo”!

— Nessa hora sempre aparece muita especulação, não se pode afirmar nada! Falando nisso, você sabia que quase ninguém sabia que ele era casado?

— É mesmo? Por quê? Era algum tipo de casamento proibido?

— Não, não. Parece que ela era uma pessoa simples, que não gostava muito de atrair as atenções para si. Ela o fez prometer que nunca a exporia demais!

— Uma tarefa difícil, eu diria, para um dos milionários mais cobiçados do momento! Mas acho que ele teve sucesso! Será que vai ter sucesso também em sua jornada? Vamos ver, vamos ver! Falta pouco agora, o relógio...

Eu não estava prestando atenção direito. Estava imaginando como seria estar no lugar daquele piloto. Como seria sentar na ponta de um foguete, sair voando rumo ao céu, às estrelas. À Lua... Marte! Como seria saber que ninguém, absolutamente ninguém, tinha estado ali antes de mim! Eu tinha escutado as preocupações de todos, sobre ser uma viagem sem volta... Claro, eu não queria morrer no espaço. Mas o tamanho dessa viagem... dessa conquista, parecia simplesmente maior do que todo o resto.

Depois de um tempo, que eu não lembro quanto, a televisão mostrou uma multidão em polvorosa. Olhavam e acenavam felizes para alguém. A imagem, que antes estava fixa no foguete e sua silhueta branca destacada contra o céu, agora focava na multidão. Logo o foco mudou e o astronauta apareceu, vestindo uma roupa laranja e segurando um capacete transparente embaixo do braço. Caminhava devagar, confiante. Sorria enquanto acenava para todos os lados.

Olhei para os lados e vi todos felizes. Minha mãe tinha os olhos marejados, e até minha irmã não conseguia conter o entusiasmo. Era um momento mágico. Depois disso, foi tudo muito rápido. Logo o homem entrou no foguete, a imagem mostrou a plataforma de lançamento à distância mais uma vez, e um grande letreiro mostrava a contagem regressiva. Segundos se passaram. Dez, nove, oito, sete... fumaça... seis, cinco, quatro.... um clarão, e muita tensão no ar, três, dois, um....

O foguete foi subindo devagar. Meu pai me disse que era só impressão, pois o foguete era muito rápido. Em pouco tempo virou um pontinho brilhante, até desaparecer. Tinha acabado. Foi um sucesso, disseram. Muitas palmas e gritos felizes. Minha irmã saiu da sala primeiro, depois minha mãe, meu pai... fiquei lá sozinho, olhando o final do noticiário. Já ia desligar a televisão quando o narrador me interrompeu:

— Esperem, esperem! Parece que temos uma mensagem de Elton Myers. Ele está transmitindo agora mesmo! Podemos... podemos colocar no ar? Sim, vamos colocar no ar agora!

De repente a tela se encheu com uma imagem borrada e cheia de ruídos. Um rosto preenchia quase todo o quadro. Elton Myers estava falando, com a voz entrecortada pela má qualidade do sinal. Ele falava em inglês, e o narrador ia traduzindo:

— Ele está agradecendo pela torcida de todos. Ele diz... que está tudo bem, o lançamento correu conforme esperado e... agora vai começar as manobras gravitacionais para... pegar impulso em direção ao exterior do Sistema Solar! Fantástico! — acrescentou o narrador — Ele vai mesmo... esperem, agora está... sim, sim... ele está dizendo que irá enviar mensagens de vídeo diretamente de sua nave para a Internet. Não deixem de segui-lo no endereço www.myers2mars.com!

— Ha ha ha ha! — interrompeu o comentarista — Fortalecendo as redes sociais, sempre! Esse Elton é sensacional!

— Sem dúvida, sem dúvida! Agora ele... vai se despedir, e deseja a toda a humanidade um futuro próspero! Adeus!

A transmissão se encerrou pouco tempo depois. Nessa noite eu lembro que não consegui dormir. Eu deixei a janela aberta, e fiquei olhando o céu estrelado até o Sol apagar tudo com sua luz brilhante. No dia seguinte eu já não era mais o mesmo.

***

Foi pouco tempo depois, cinco ou seis dias, quando a próxima mensagem chegou. Eu tinha ficado a tarde toda no supermercado com a minha mãe, e liguei o computador assim que cheguei em casa. A notificação logo apareceu na tela: "Elton Myers publicou um novo vídeo". Eu já havia me inscrito no site www.myers2mars.com, e o acessava praticamente todo dia. Era muito interessante, tinha informações em tempo real dos instrumentos a bordo do foguete, como aceleração, velocidade, direção, temperatura. Uma coisa muito legal era um mapa do sistema solar, onde um ícone em formato de foguete se movia devagar, primeiro circundando a Terra duas vezes, e depois rumo ao próximo pontinho: a Lua. Era exatamente sobre esse pontinho que se encontrava o foguete naquele dia.

Assisti ao vídeo umas quatro vezes. Era tudo o que eu mais queria ver. Dessa vez não tinha um tradutor, o vídeo trazia legendas, então eu conseguia entender tudo. Elton Myers descrevia sua viagem até o momento. Contou como o foguete tinha se comportado bem, todos os sistemas estavam funcionando. Disse que ele estava bem, estava animado. E que tinha uma coisa para mostrar para nós. Nessa hora ele pega a câmera nas mãos e aponta para uma janela. Nela, é possível ver a superfície da Lua.

A imagem era hipnotizante. Ele estava na Lua, naquele exato momento, e estávamos lá junto com ele! Claro, não era exatamente naquele momento, pois a transmissão demorava algum tempo para chegar à Terra. Ele ficou ali um tempão, filmando a Lua, em silêncio. E eu lembro que fiquei olhando os detalhes, as montanhas, as rochas. Então ele disse: "Não sei quantas pessoas estão vendo isso, mas se estiverem, saibam que sou muito grato por sua companhia. Não me sinto sozinho! Grande abraço a todos e até a próxima!"

Um número embaixo da janela mostrava que mais de três bilhões de internautas estavam acompanhando o vídeo em tempo real. O mundo estava ali, olhando por aquela janela.

***

Aquele ano foi muito atípico. Ele tinha começado com um lançamento histórico e imagens inéditas da superfície da Lua. Nos próximos meses, me acostumei a acompanhar as atualizações semanais sobre a viagem. Muito do que eu via eu não entendia, mas aprendia muita coisa nova também. Física, astronomia, química. Elton Myers ia explicando como fazia para renovar o oxigênio, para reciclar a água, como ia ao banheiro!

Mas também passei por vários problemas. O primeiro deles foi na escola. Eu não conseguia fazer as minhas tarefas direito, e meus pais eram chamados na escola constantemente. Também brigava com meus colegas, que caçoavam de mim por causa de minha fixação com o viajante espacial. Acabei ficando praticamente sem amigos, pois às tardes e finais de semana eu só queria saber de estudar ciência, viagens espaciais, e tudo o mais.

O segundo problema foi um quadril quebrado. Eu estava brincando de nave espacial usando uma mesa na escada de casa, e o resultado foi uma cirurgia e seis meses de molho. Foi bastante difícil para meus pais, já que fiquei muito tempo na cama. Eu me senti muito culpado por aquilo tudo, e eu prometi a mim mesmo que iria tentar mudar e voltar a ser uma criança mais normal. Mas naquele Natal, mais uma vez o mundo seria surpreendido, e eu começaria a minha própria viagem sem volta.

A página www.myers2mars.com mostrava, como sempre, o mapa do sistema solar, com o foguete de Elton Myers se movendo vagarosamente entre os planetas. Só que ele estava agora chegando à sua segunda parada: Marte. A previsão era de que ele atingiria a órbita do planeta vermelho no dia vinte e sete de dezembro.

O interesse pela viagem de Myers, que depois da passagem pela Lua havia diminuído, voltava com toda força. Nas rádios, televisão, Internet, não se falava de outra coisa. O que ele iria fazer, quando chegasse a Marte? Voltaria para casa? Tentaria o pouso? Iria seguir adiante?

Nesse dia, eu lembro que estava no sofá da sala, com o computador aberto no colo e a televisão sintonizada no canal de notícias. Eu já conseguia andar, mas ainda era muito difícil. Por isso, tinha à minha disposição, na mesinha ao lado, um monte de guloseimas e refrescos. Minha família estava fora de casa, passeando. Eu fiz questão de não ir junto. Queria ver tudo em primeira mão, e eles deixaram. Acho que estavam prevendo que eu iria ficar chateando todo mundo, querendo ir embora a todo momento.

Primeiro chegou um vídeo pelo computador. Cliquei para abri-lo, mas a conexão estava ruim. Logo a televisão também anunciou a chegada do vídeo, e começou a transmissão. Myers dizia, em alto e bom som:

— Olá colegas de planeta Terra! Em duas horas começarei a manobra para entrar na atmosfera marciana. Caso alguma coisa dê errado, saibam que não me arrependo de nada. Tem sido uma viagem incrível! Vejo vocês lá embaixo!

Tinha sido confirmado. Ele realmente tentaria pousar em Marte! A excitação dos jornalistas na televisão só não era maior do que a minha. Fiquei acompanhando os comentários e notícias, e acessando a página a toda hora. Especulavam que a nave era muito pesada, iria se espatifar no chão. Outros diziam que ele tinha decidido ficar em Marte para sempre, pois o foguete não conseguiria decolar uma segunda vez.

Eu já tinha acompanhado meu pai assistindo jogos de futebol. Ele era fanático, gritava, xingava o tempo todo. Uma vez eu o vi chorando depois de uma derrota. Eu não entendia direito esse sentimento, até me ver torcendo pela aterrisagem de Elton Myers. Se o foguete explodisse, eu não sei o que seria de mim. Foram momentos de agonia. Duraram sete minutos, disseram. Mas para mim pareceram horas.

Enfim o foguete pousou, ou assim tudo indicava. Segundo o website, os instrumentos ainda estavam funcionando normalmente. Por um instante eu me toquei que, caso a nave tivesse mesmo explodido, iria demorar uns quinze minutos até os sinais desaparecerem. Esperei em pânico por cinco, dez, quinze, vinte, trinta minutos, e nada mudou.

Algum tempo depois, de repente, um novo vídeo apareceu na tela da televisão e na tela do computador, quase simultaneamente. Uma mão gigantesca cobriu a tela, depois se afastou, deixando a câmera parada no chão. O dono da mão caminhou de costas sob o céu avermelhado. Uma figura humana em roupa laranja de astronauta, caminhando no solo marciano. Afastou-se até a câmera enquadrar seu corpo inteiro. No fundo, a base da nave espacial era visível. Um gigantesco e estranho edifício branco sob o chão de pedras. Ele falou, com sua voz transmitida a partir de um microfone dentro do capacete:

— Saudações! Aqui é Elton Myers, diretamente da superfície de Marte. O clima é seco e frio. A vizinhança é... um pouco quieta! — e olhou para os lados — Mas eu gosto assim. Meu foguete — e apontou com o polegar para trás — está em perfeitas condições. O pouso foi um sucesso. Em breve vou ativar os motores elétricos para abrir o casco e mostrar o que tem dentro da nave. Vocês vão adorar essa surpresa! Mas antes preciso fazer alguns testes. Não quero que nada dê errado.

Myers caminhou de volta até a câmera, dizendo:

— Vou me despedir de vocês por enquanto, mas eu preciso mostrar uma coisa.

Ele pegou a câmera com as mãos, e olhou a lente de perto, procurando alguma sujeira. Nessa hora foi possível ver seu rosto dentro do capacete. Estava com a barba muito comprida e desgrenhada. Mas os olhos pareciam brilhar como nunca. Ele apontou a câmera para cima, e o Sol se mostrou brilhante no céu avermelhado.

— O Sol, ele... está pequeno! É surreal, vê-lo assim, distante. A cor também é diferente. É a coisa mais linda que eu já vi em toda minha vida! Queria que vocês pudessem ver com seus próprios olhos também. Queria que você pudesse... você está tão perto, no entanto, tão longe!

Ficou em silêncio depois disso. Eu não sei se foi um erro do tradutor, pois em inglês essas frases não teriam um plural bem definido. A parte final do texto dizia: "você" e não "vocês". Normalmente ele falava para toda a população da Terra. Dessa vez, não sei... parecia que ele falava com alguém em particular.

O vídeo terminou e mais uma vez as pessoas na televisão ficaram excitadas. O que seria aquela surpresa? O que ele teria levado para Marte, que era tão especial? Nessa hora, minha família chegou. Aos gritos, eu contei para eles tudo o que tinha acontecido. Eles não ficaram tão entusiasmados no começo, mas quando eu disse que ele iria revelar uma surpresa, eles se sentaram ao meu lado e ficamos todos assistindo à televisão.

Enquanto os especialistas analisavam as imagens do último vídeo em busca de alguma pista, chegou a hora do jantar. A contragosto, forcei-me a engolir um pouco de comida e fingi estar um pouco interessado no passeio da família. Tão logo a comida acabou, voltei correndo para a sala. Mas desta vez, demorou demais. As horas se passaram, a madrugada chegou, e eu estava mais uma vez sozinho na sala. Acabei adormecendo, acho. Não me lembro direito se o vídeo chegou na madrugada ou no outro dia de manhã. Mas eu me lembro de ter saído pela casa acordando todo mundo para ver.

O vídeo começou com Elton Myers mais uma vez ligando a câmera que estava posicionada no chão. Desta vez, estava bem mais longe do foguete, pois era possível vê-lo em sua totalidade. Ele falou pausadamente:

— Eu não disse nada antes sobre esse assunto. Nem mesmo as pessoas mais próximas a mim, e as que me ajudaram neste projeto, sabem do que se trata. Peço desculpas por isso, amigos, mas era necessário. O que eu trouxe para Marte é algo muito precioso. É uma relíquia. É algo que é procurado desde o princípio dos tempos, capaz de despertar a imaginação e cobiça de muitos homens e mulheres. Na verdade, eu acho que neste momento não existe nada na Terra que seja mais importante do que isso. Toda essa viagem... esse sacrifício... bem... Digamos que essa coisa não pode mais ficar no planeta Terra, para o bem de vocês!

— Vocês devem estar se perguntando: como eu consegui esse artefato tão especial? Bom, não foi fácil. Precisei... fazer uma escolha… difícil! Ah, ela nunca me perdoaria...

Ele riu, um sorriso triste.

— Mas foi para alcançar um objetivo mais nobre. No final, acho que vai valer a pena. Tem sido uma experiência incrível para mim, espero que vocês também consigam aproveitar um dia.

Ele ficou em silêncio, olhando para baixo. Depois levantou-se, abriu os braços, e disse:

— Vamos lá! É um, dois, três e... já!

Apertou um botão em um controle que estava em sua mão, e moveu-se para o lado, revelando o foguete em sua plenitude. O foguete começou a sacudir um pouco, depois começou a se abrir por todos os lados, mais ou menos como uma casca de banana. As laterais do foguete se abriram até o chão, e seu interior começou a mudar de formato, ficando mais achatado. Depois de um tempo, a estrutura ficou parecida com a de uma pirâmide cujo topo foi cortado na horizontal. Lembrava um antigo templo Asteca, se é que eu já vi um na minha vida. No centro do templo erguia-se uma outra estrutura branca, pontuda e alta, quase tão alta quanto o foguete original. Foi erguendo-se devagar até estacionar sobre o templo. Ao mesmo tempo, as laterais, que estavam no chão, se erguiam também, formando quatro torres ao redor do monumento. Enfim a transformação acabou, e Elton voltou a aparecer na câmera.

— Vejam o meu monumento! É lá dentro que vai ficar guardado o segredo. Venham comigo!

Aproximou-se e pegou a câmera, sem desligá-la. Começou a caminhar em direção ao templo. Havia uma porta, que parecia ser feita de ferro escuro. Ele abriu a porta e entrou. Lá dentro era escuro e bem espaçoso. Uma lâmpada próxima à câmera iluminava tudo fracamente. No centro, havia um grande círculo desenhado no chão. No meio do círculo havia um enorme baú. Parecia ser feito de madeira bem antiga, e era adornado por detalhes dourados. Uma fechadura pesada mantinha a tampa fechada. Myers estendeu a mão e mostrou uma pesada chave para a câmera. Colocou-a no chão, na frente do baú. Colocou a mão sobre a tampa e a deixou ali, por alguns instantes. Em seguida afastou-se e disse:

— Nesse baú está guardado um mistério para a humanidade. Eu não posso dizer o que é, nem mostrar para vocês. Só posso dizer que é muito importante, para mim, em especial, pois é o legado da minha vida! Mas para vocês também!

Ficou mais um tempo parado, em silêncio. Depois virou de costas, caminhou até a saída e fechou a porta. Soltou um longo suspiro, e apontou a câmera para o rosto, enquanto retomava a caminhada. Disse:

— Enfim, está feito! Agora não há mais o que fazer aqui. Vou me despedir em breve, mas antes tenho uma última surpresa!

Apontou a câmera para a longa e pontuda estrutura que assentava-se sobre o templo, dizendo:

— Aquela é minha segunda nave, que vou usar para sair de Marte e continuar minha viagem. Infelizmente, não vou ter energia ou recursos suficientes para transmitir com a mesma frequência. Mas essa não será a última vez que vocês irão receber notícias minhas. Fiquem ligados! Vou deixar a câmera aqui, transmitindo, para vocês contemplarem meu monumento sempre que quiserem.

Deixou a câmera no chão, apontada para o monumento. O Sol estava se pondo, e contra a sua forte claridade desenhava-se de preto a silhueta formada por estranhas formas alongadas.

— Vejam a cor do céu do poente! É azul! Vocês tinham que estar aqui para ver isso. Não dá para descrever... — deu mais um suspiro — Bom, até mais amigos. Fiquem de olho, pois em breve vou decolar.

Eu estava anestesiado. Não conseguia pensar direito. Nem sei quanto tempo se passou. Lembro-me que depois disso a página www.myers2mars.com passou a contar com uma nova área, onde a imagem da câmera deixada no chão era constantemente exibida. Se Myers tinha dito a verdade, ela ficaria ali para sempre. Num primeiro momento, só se via fumaça, quando o fino foguete acendeu seus propulsores e violentamente subiu ao céu. Mas depois a imagem clareou, mostrando aquele estranho monumento sozinho no deserto.

***

Eu já comentei como a nossa memória é engraçada, não comentei? Ela não parece ter dó nem piedade, jogando fora partes da nossa vida a bel-prazer. Por exemplo, a minha memória parece preferir os acontecimentos mais velhos e desprezar os mais novos. Não que eu tenha esquecido deles completamente, mas a riqueza de detalhes não é a mesma. Se da época da viagem de Myers à Marte eu me lembrava de coisas como o cheiro do chá que meus pais estavam bebendo na noite do lançamento, dos argumentos que eu apresentava aos meus colegas de classe quando discutíamos se a espaçonave tinha se perdido ou não, ou da sensação dos meus dedos coçando as pernas quando eu finalmente tive o gesso retirado, depois disso as memórias vem com uma aura nebulosa. Os rostos são mais esfumaçados e as conversas são lembradas apenas aos pedaços. É só comigo que isso acontece?

Minhas lembranças da adolescência (e boa parte da vida adulta) são assim. A minha sensação é a de que eu passei muito tempo dormindo, então o pouco tempo que tive acordado não foi suficiente para gravar todos os detalhes. As pessoas dizem que os eventos mais emocionantes se tornam memórias mais vívidas. Às vezes eu acho que isso é verdade. Eu me lembro muito bem, por exemplo, das coisas que meus pais me disseram quando eu repeti de ano pela segunda vez, mas não da primeira. Na primeira, eles gritavam muito mais alto e seus rostos estavam mais furiosos. Mas a segunda vez me marcou mais, porque, ao invés de raiva, eu percebi a desesperança em suas vozes. Eu me lembro das pálpebras superiores dos olhos do meu pai, que pareciam ter ganhado uma dobra que nunca tinha existido até então. E na minha mãe, lembro de ter visto uma tristeza profunda em todo o seu rosto. Lembro de ter pensado que eu nunca mais veria um sorriso naquele rosto que me amava.

Mas também teve outras vezes em que o acontecimento era tão importante que meu cérebro se mostrou incapaz de registrar qualquer coisa. Foi assim quando meu pai se foi. Eu me lembro de duas coisas: da minha irmã chorando quando cheguei em casa, e do azul profundo no céu, no dia do seu enterro. O resto daqueles dias é apenas névoa para mim. Eu tinha dezessete anos.

Foi uma época ruim. Eu estava tentando muito compensar o atraso na escola, então estudava dia e noite. Quase não saía de casa, e fazia provas aos montes. Eu consegui recuperar um ano, mas isso não parecia ter consertado o estrago com meus pais, que decididamente só viam alegria na educação de Viviane. E eles tinham razão. Ela estava terminando a faculdade e já começava uma carreira promissora em um escritório de advocacia. Já eu não sabia o que faria da vida.

Depois que meu pai morreu, as dúvidas só aumentaram. Cheguei a pensar em cursar direito, como minha irmã, mas morria de medo das comparações que certamente viriam. Pensei em veterinária, pois adorava animais, mas não renderia muito dinheiro, como lembrava minha mãe. Eu já estava praticamente decidido a sair de casa e ficar viajando de mochila e sem rumo por alguns meses, quando mais uma vez aconteceu algo para reavivar minha indecisão. E vejam só, como a lembrança que vou contar agora é cheia de detalhes. Se isso não é o destino, eu não sei o que pode ser.

Eu me lembro que era uma terça-feira. Era quase hora do jantar. Minha mãe e eu estávamos na cozinha, ela olhando o celular enquanto mexia na panela com uma colher, e eu mexendo no computador. Ela me perguntou se eu estava a fim de comer ovos fritos, pois não tinha comprado nenhuma mistura. Eu disse que tudo bem, que não estava com muita fome. Ela começou a falar algo sobre salada, mas minha atenção se desviou para o ícone piscando no canto da tela.

Eu já tinha me esquecido desse ícone. Eu estava registrado no site de Elton Myers, é claro, mas fazia anos que não se ouvia notícias dele. Agora o ícone voltava à vida, avisando que um novo vídeo havia chegado à Terra.

Olhei para minha mãe. Ela estava esperando minha resposta para alguma pergunta que eu nunca soube o que era. Ela me disse:

— O que foi, o que aconteceu, meu filho?

— Eu... eu... acho que tem um vídeo novo aqui...

— Vídeo? Que vídeo? — ela perguntou.

— Vem ver! É do Elton Myers! — eu respondi, enquanto colocava o vídeo para ser reproduzido.

Ela pareceu não se lembrar imediatamente, mas assim que se aproximou, seus olhos se abriram de espanto. A qualidade da imagem era muito instável. Ora aparecia com muita nitidez, ora ficava bastante quadriculada. Mas o seu conteúdo não deixava dúvida. Na tela, aparecia um rosto muito mais magro e envelhecido do que nos lembrávamos. Sua barba estava bem aparada, os cabelos curtos, apesar de parecerem um pouco desiguais. O rosto exibia um sorriso sincero e um par de olhos que brilhava como estrelas em uma noite escura. Elton Myers estava radiante.

Ele demorou um pouco para falar alguma coisa. Parecia saborear o momento. Olhava para o lado, e de vez em quando olhava para a câmera. Abriu a boca sorridente algumas vezes, sem emitir som. Enfim começou:

— Saudações, povo da Terra! Aqui é Elton Myers! Já faz algum tempo desde meu último contato. Peço desculpas pela demora, mas é que às vezes eu fico com medo de soar repetitivo. Tem sido uma longa viagem, desta vez, e não tem muita coisa acontecendo.

Eu soltei uma gargalhada alta. Aquele homem só podia estar brincando. Depois de ter pregado uma peça com a maior pulga na orelha que a humanidade já teve, e depois de anos em silêncio, quando já tinha sido declarado morto, ele ainda pede desculpas? Que tipo de espírito era aquele?

— Hoje é um dia especial! — ele continuou, ainda sorrindo — É meu aniversário de sete anos no espaço. Isso se eu não perdi a conta, é claro. E eu recebi o maior presente de aniversário que alguém pode querer.

Ele pegou a câmera com as mãos e a aproximou do rosto. Era possível ver que estava um pouco mais enrugado do que eu me lembrava. Definitivamente estava bem mais magro.

— Dizem que os anéis são adornos femininos. Quem daria um anel de presente para um homem? Bom... eu ganhei, e devo dizer que adorei!

Neste momento, ele virou a câmera para a janela da espaçonave, e o que se via era espetacular. Meu queixo caiu. Um pedaço de uma enorme esfera alaranjada ocupava metade da imagem, enquanto a outra metade era cortada pela parte interna de um gigantesco anel. Era Saturno!

— Estou em órbita já há alguns dias — ele continuou — Se a telemetria ainda estiver funcionando, vocês já sabiam disso, é claro, e deviam estar ansiosos pelas imagens. Bom, aproveitem!

Eu me lembro de ter sentido uma pontada de culpa nessa hora. Fazia tempo que eu tinha deixado de acompanhar o site e as tediosas mudanças de distância, velocidade, rotação, temperatura, e outros números que não significavam nada. Todo o esforço que aquele homem estava fazendo parece que tinha sido esquecido pela humanidade. E por mim. Me senti mal.

Mas a imagem agora enchia meu espírito de alegria. Saturno aparecia com muitos detalhes. Eu já tinha visto imagens antes, mas perto dessas pareciam muito artificiais, uma mentira. Myers apontava com o dedo para alguns pontos na superfície do planeta, e comentava sobre as cores, as formas. Era possível ver movimento! Este vinha das imensas nuvens gasosas, revirando no que, à distância, parecia ser um vagaroso fluxo, mas que na realidade era um turbilhão com intensidades não vistas na Terra.

E os anéis? Ele devia estar muito perto, pois cobriam praticamente toda a área externa da janela, de modo que ele podia virar a câmera a quase 180 graus e ainda assim continuar focalizando-os em sua plenitude. A essa distância, era possível ver sua composição pontilhada. Os pequenos pontos, que na verdade eram grandes rochas, faziam sombras uns nos outros. Era muito diferente dos conhecidos discos sólidos que apareciam em fotos borradas tiradas com telescópios e imagens processadas a partir dos sensores das sondas robóticas enviadas à distância.

Myers virou a câmera para seu rosto e continuou falando:

— É, amigos! Sete anos na solidão do espaço. Ocupando meu tempo com tarefas rotineiras, exercícios, e muita meditação. E agora... uma vista dessas como recompensa! Me pergunto se valeu a pena!

Seus olhos se encheram de lágrimas, e o sorriso aumentou ainda mais. Soluçando, e fazendo um sinal positivo com a cabeça, ele completou:

— Sim! Valeu a pena! Valeu muito a pena! Estar aqui... olhando para... para... não consigo descrevê-lo. Não ouso reduzir o que estou vendo a um texto que não fará jus à sua beleza. Sinto muita alegria, e muita paz!

Ele apontou mais uma vez a câmera para fora, trazendo a imagem de Saturno mais uma vez para a Terra. Olhei para o indicador abaixo do vídeo, que mostrava que havia quatro bilhões de espectadores assistindo à transmissão.

Depois de vários minutos, Elton Myers recolocou a câmera em sua posição original. Enxugou as lágrimas com as costas da mão e começou um discurso que concluiria sua transmissão:

— Eu ficarei por aqui por mais algum tempo. Não sei ainda quanto tempo. Mas nenhum tempo é demais aqui. Se não puder seguir adiante... bom... já estou, como dizem, de boa! Continuarei enviando fotos incríveis, talvez consiga chegar perto de um dos anéis, veremos! Não deixem de se inscrever no meu site, e espalhar a notícia por aí!

Sorri mais uma vez, e ouvi minha mãe também exalando ar pelo nariz, em um sorriso. Ele continuou:

— Bom, outra coisa. Eu decidi que não farei mais vídeos! O que eu testemunhar, daqui para a frente, será uma coisa só minha. Me desculpem por isso, mas acho que será melhor assim. Para mim... e para vocês também!

Nessa hora, levei as mãos à boca. Tinha ouvido direito? Ele estava se despedindo para sempre? Não que fosse fazer diferença para ele, mas para nós...

— Acho que isto é um adeus, então! Espero que tenham se divertido, se inspirado, sonhado, e que eu tenha ajudado a humanidade a se tornar um pouco melhor, de alguma forma...

Ele olhava para baixo, para as próprias mãos. Então ele levantou as sobrancelhas e olhou para a câmera, com um sorriso, dizendo:

— Falando nisso... digam-me... já descobriram o segredinho que eu deixei em Marte? A câmera ainda está transmitindo. Uma dica... do que a humanidade precisa para seu próximo salto de evolução?

Sem deixar de sorrir, acenou com a mão e desligou a câmera.

***

Vamos passar alguns anos para a frente. Eu estava em um caça supersônico. Olhava o azul profundo do céu ao meu redor. Sentia o trepidar dos potentes motores. A cada curva, o peso das forças "G" puxava todo o meu corpo para baixo, mas minha técnica e meus pulmões treinados suportavam a pressão com tranquilidade. Operava com destreza o manche e os complicados paineis da aeronave. Tornei-me um piloto da força aérea!

Eu finalmente estava indo em uma direção que me parecia certa na vida. Minha mãe se preocupava em perder o filho em uma guerra, mas minha irmã a tranquilizava, dizendo que eu só fazia aquilo para tentar ser um astronauta. "Pior ainda!" — minha mãe dizia — "Astronauta? Ser atirado no espaço, no vazio? Misericórdia!". Mas na verdade, ela sentia muito orgulho de mim.

Eu sabia que a carreira de astronauta ainda estava muito longe. Precisava de muitas horas a mais de vôo, treinamentos especiais, e o mais importante, conhecer as pessoas certas. Mas eu não me importava. Pelo menos estava no caminho certo, chegaria lá.

Naquele dia, eu seguia os protocolos do exercício de vôo, quando ouvi um chamado pelo rádio, pedindo que eu me afastasse do esquadrão e retornasse à base. Sem entender direito o motivo, desliguei-me do grupo e pilotei meu caça de volta à pista. Logo ao descer do avião, um grupo de oficiais me aguardava. Um homem que eu já conhecia anunciou:

— Tenente, você está preso, sob acusação de roubo de propriedade industrial!

Nesse momento eu acordava do sonho. Sim, era só um sonho, ou vocês realmente acharam que a minha vida tinha virado uma maravilha de uma hora para outra? Era um sonho recorrente, que me torturava noite após noite, fazendo-me sentir o gosto de uma vida que nunca seria a minha. Só que o final do sonho, ironicamente, era verdade. Eu sempre acordava e via as mesmos quatro paredes da pequena cela na qual passava os longos dias. Sim, caros amigos, estava preso! Mas calma, que eu chego nessa parte da história.

Eu até tentei mesmo entrar na academia da força aérea. Mas por mais que me esforçasse, eu não conseguia ir tão bem na escola, então não consegui passar nos exames. Acabei cursando uma faculdade medíocre de informática e me tornei mais um depressivo entre os milhões de profissionais que trabalham com tecnologia da informação.

Obviamente, se a profissão não despertava minha paixão, eu me dedicava nas poucas horas vagas ao que realmente me movia: o suposto segredo de Elton Myers! Passava horas me debruçando sobre páginas de discussão na Internet, em comunidades de fanáticos como eu, que criavam as mais loucas teorias sobre o que estava escondido em Marte.

O que seria o “legado da sua vida”? Ele já tinha se superado inúmeras vezes, com os avanços que suas empresas conseguiam. Mas isso parecia ser algo mais essencial. As teorias iam desde objetos fantásticos, como o cálice da última ceia de Cristo, até descobertas científicas, como uma porção de antimatéria que geraria energia limpa para toda a humanidade. Mas era tudo invenção. Ninguém sabia de fato a verdade. A única forma de descobrir era alguém ir até lá e abrir aquele baú.

As agências espaciais até que esboçaram uma tentativa de investigação. Duas sondas robóticas que estavam em Marte foram deslocadas até o local, mas não conseguiram penetrar o interior do monumento que guardava o baú. A porta era demasiadamente pesada para ser aberta pelos braços robóticos das sondas. Depois descobriram o porque: estava trancada. Um orifício deveria receber uma chave desconhecida para que a porta se abrisse. As paredes pareciam ser muito grossas para serem perfuradas ou derretidas pelos seus instrumentos.

Além disso, pouco foi feito. Enquanto as pequenas comunidades de fanáticos (como eu) clamavam por um esforço maior, todas as autoridades, assim como a maioria da imprensa, concordavam que se tratava de uma piada de mau gosto, que não valeria um mínimo de investimento.

Enquanto isso, eu me divertia com as teorias, mas desenvolvi a minha própria, que eu não compartilhava com ninguém. Era uma teoria diferente das demais, então nunca me senti à vontade para contá-la aos outros. Na verdade eu não acreditava muito nela. E caso estejam pensando, não, eu não a contarei agora!

Bom, mas de uma coisa eu tinha certeza. Por mais que Myers tivesse conseguido guardar seu segredo de muita gente, em algum lugar devia haver algum registro, foto ou pista sobre o que tinha sido colocado naquele baú. Era nisso que eu investia meu tempo. Fazia as vezes de hacker e tentava encontrar rastros cibernéticos de transações envolvendo materiais para a construção de seu foguete espacial. Buscava pelos caminhos lícitos, como informações públicas de compra e venda, mas também alguns caminhos ilícitos. Foi em um desses que eu achei o pote de ouro. E foi por causa disso que eu fui para a cadeia.

Eu não encontrei o segredo em si, mas encontrei algo muito interessante. Acabei invadindo uma conta oculta que eu sabia que estava ligada a Myers. Entre os milhares de documentos, achei um conjunto de planos detalhados de construção do foguete que ele usou em sua viagem. Rapidamente eu salvei tudo o que consegui e compartilhei com a comunidade. Mas eu não era um hacker tão bom assim, portanto fui descoberto. Em pouco tempo estava preso e condenado a dez anos de prisão. Minha mãe e irmã devem ter ficado muito orgulhosas de mim. Pelo menos eu imagino que sim, pois nunca mais ouvi notícias delas.

Bom, esse seria praticamente o fim da minha história, se não fosse... bem, essa parte vocês já sabem, não é? Eu fiquei famoso, então quase todo mundo já deve conhecer o que aconteceu em seguida. Eu vou contar, porque pode ter alguém aí que chegou agora e ainda não sabe exatamente o que se passou, como eu saí da prisão, e como eu cheguei até ... aqui!

(Neste momento, o rosto se afasta da câmera e se move para o lado, revelando atrás de si a paisagem desértica de Marte. No centro da imagem, aparece a figura de uma pirâmide cujo topo foi cortado na horizontal, cercada por quatro torres altas e pontiagudas.)

***

Tudo mudou de repente. Primeiro apareceu um advogado. Disse que iria me tirar da prisão. No começo eu duvidei, pois o advogado que eu precisei contratar — porque minha irmã não queria mais me ver — disse que tinha tentado de tudo, e que dez anos estava de bom tamanho para mim. Mas esse cara conseguiu. Não entendi bem o que ele fez, mas ele conseguiu. Foi só algum tempo depois que eu vim saber que ele era um dos melhores advogados do país, então ele conhecia muito bem os caminhos da lei!

Obviamente, também fiquei encucado com o motivo pelo qual ele decidiu me ajudar. Eu não queria parecer ingrato, mas também não queria ficar insistindo demais, com medo de ele me dizer que eu lhe devia milhões. Ele simplesmente dizia para eu não me preocupar com o pagamento do serviço dele. Já estava tudo acertado.

Bom, tinha alguma coisa acontecendo, e eu não sabia o que era. Só depois que eu saí do fórum, após ouvir do juiz que meu pedido de liberdade tinha sido aceito, foi que eu percebi que era algo grande. Uma multidão de repórteres me esperava do lado de fora. O meu advogado logo me empurrou para dentro de um carro e começou a me explicar.

Descobri que a nossa pequena comunidade de fãs do Elton Myers já não era mais tão pequena assim. Depois que eu tinha divulgado os planos do foguete, surgiu um movimento na Internet para construir uma segunda espaçonave. O movimento cresceu, tomou proporções gigantescas. Alguém deu a ideia de criar um projeto de "crowdfunding" para juntar dinheiro para as peças e o trabalho. As pessoas começaram a doar dinheiro aos montes, e a meta foi atingida em poucos meses! Deu até para contratar um bom advogado e libertar da prisão o cara que tinha conseguido os planos!

Segundo o advogado me explicou, o projeto juntou tanta grana que essa comunidade, que agora tinha se tornado uma organização sem fins lucrativos, fez uma proposta para as empresas Myers e conseguiu adquirir os planos. Eram agora oficialmente nossos!

Assim que fui libertado, levaram-me a um prédio bonito, onde ficava um escritório enorme, cheio de gente trabalhando. Era a sede da organização. Seu nome era "Seconds to Mars", que eu achei genial! Ali conheci gente do mundo inteiro, todos trabalhando na reconstrução do foguete e na preparação para uma segunda jornada rumo ao planeta vermelho. Era um cenário muito mais difícil de acreditar do que o do meu sonho recorrente, no entanto desse sonho eu jamais despertei!

Eu lembro de ter perguntado quantas pessoas tinham dado dinheiro para o projeto, e me disseram que havia mais de um bilhão de contribuintes. Um bilhão! A maioria fazia doações mensais pequenas, mas você pode imaginar como o volume era imenso. Também perguntei como todo esse dinheiro era gerenciado, e descobri que havia vários comitês e escritórios, e cada centavo gasto era devidamente registrado e divulgado. Havia sites de Internet, comunidades de fiscais, repórteres e propaganda em todo meio de comunicação, que divulgava tudo o que era feito e gerava um turbilhão de interesse em volta de um único objetivo: descobrir o que havia sido deixado por Elton Myers no planeta Marte!

Parecia um pouco de maluquice coletiva, eu confesso. Mas a organização era impressionante. Todos, absolutamente todos, pareciam extremamente motivados. E não era para menos. Eles representavam o desejo de um bilhão de pessoas. Claro que muitos desses contribuintes entraram nessa só por que achavam que seria "legal" e por custar apenas uns trocados por mês. Mas a união de todos esses pequenos desejos se transformava em um anseio muito mais profundo e importante: não se tratava apenas de satisfazer mera curiosidade. Era algo maior, muito maior, e todos ali sabiam disso.

A todo momento, eu recebia cumprimentos, como se fosse uma espécie de herói. Eu não me considerava um, é claro. Eu nunca soube, mas me disseram que a minha prisão teve uma enorme repercussão. Apareci em todas as mídias, por semanas. Tornei-me uma faísca, que iniciou um fogo que não podia mais ser apagado. Não foi porque eu era alguém digno de nota, óbvio. Foi porque havia algo nos planos roubados, e que assim que foi divulgado, gerou uma grande animosidade. Era um convite, que de alguma forma tocou o coração das pessoas. Uma pequena anotação, rabiscada a lápis no canto de uma da folhas. A caligrafia, segundo avaliaram, era do próprio Myers. Ela dizia:

Parabéns! Você encontrou a chave para o segredo! Está nas páginas 47, 59 e 112! Venha logo! Marte espera por você!

***

Depois de três anos, finalmente tudo estava pronto. O enigma da chave foi logo decifrado. Havia desenhos precisos nas páginas indicadas pela anotação de Myers, que quando sobrepostos, formavam o perfil de uma chave, que pode enfim ser confeccionada. Bastava agora levá-la a Marte e enfiá-la na fechadura do monumento para descobrir seu misterioso conteúdo.

O dinheiro realmente faz as coisas acontecerem, pois todos os demais preparativos transcorreram com sucesso absoluto. O foguete estava pronto, assim como toda a equipe de operação. Os melhores cientistas e profissionais foram contratados (a peso de ouro) de universidades e agências espaciais, para se dedicar ao projeto.

E o piloto? Como decidiram quem receberia a honra de representar um bilhão de pessoas? Foi feita uma votação online, e este que vos fala foi o escolhido.

Eu, um ninguém!

Um cara comum!

Apenas mais um na multidão!

Um sonhador, e nada além disso!

No início eu relutei. Por que não um atleta exímio, determinado, decidido, forte e habilidoso, para superar as dificuldades da longa jornada? Ou um artista, um pintor ou um poeta, capaz de transmitir melhor para a humanidade os sentimentos e experiência vividas na imensidão espacial? Ou um repórter-detetive, minucioso, sagaz, capaz de resolver o enigma misterioso com sua mente lúcida e perspicaz?

Mas quanto mais eu pensava nisso, mais eu achava que nenhum desses perfis iria representar tão bem a humanidade. Afinal, se você escolhesse de forma aleatória uma pessoa em um bilhão, muito provavelmente seria alguém comum. Uma professora, um contador, um dentista, uma manicure, um vendedor... Talvez eu fosse de fato um retrato mais fiel do ser humano.

Se do ponto de vista filosófico fazia sentido, as minhas incapacidades físicas e mentais certamente atrapalharam o treinamento. Era difícil demais, extenuante demais, fisica e mentalmente. Minha memória não era boa o suficiente para decorar as centenas de procedimentos para operar o foguete. Meus olhos me enganavam o tempo todo, me levando a errar inúmeras vezes. Meu raciocínio e julgamento eram lentos, e eu demorava para realizar os exercícios corretamente. A única coisa que eu tinha era a minha vontade, e isso me bastava. Lembrava-me dos dias em que ficava sentado na sala assistindo às aventuras de Myers, e todos os desafios eram superados pouco a pouco.

Bom, eu acho que isso resume quase tudo. A essa altura vocês já acompanharam o lançamento. Testemunharam a baita vergonha que passei por chorar na frente do mundo inteiro quando vi a Terra de longe. Mandaram toda sua torcida quando deu aquela pane geral no foguete ao passar pela Lua. Mas ainda bem que deu tudo certo. Cheguei aqui, estou aqui, onde deveria estar! E... eu sinto muito!

(O homem coloca as mãos no rosto, sobre o visor do capacete. Pelas frestas entre os dedos, é possível ver que seus olhos se fecham com força. Sua boca se estica, os dentes rangindo. A expressão consternada dá lugar à serenidade, quando ele respira fundo e volta a falar.)

Há poucos minutos eu entrei lá dentro, abri a porta... caminhei até o baú. Olhei para a chave que estava no chão. Intocada, por décadas! Não estava nem um pouco empoeirada. Peguei-a nas mãos, sentindo seu peso. Coloquei-a no baú e girei. A tampa se abriu, e eu finalmente vi o que estava guardado dentro dele! E eu... eu não posso dizer o que é!

(O homem sorria. Em poucos segundos, o sorriso se transformava em uma gargalhada. Seu rosto se aproximava da câmera, entrando e saindo de foco à medida que seu corpo sacudia com as risadas.)

Me desculpem! Eu sei que parece uma piada, para descontrair, mas... não, droga, eu não consigo, eu não posso! Sei que nunca irão me perdoar, sei que devem estar me odiando. Ou devem estar atônitos. Ou sei lá, eu não faço ideia do que estão sentindo agora! Não sei dizer nem o que eu sentiria se estivesse aí no lugar de vocês.

(O rosto do homem fica compenetrado de repente, por alguns segundos. Ele começa a falar.)

Mas, eu posso dizer o seguinte: Do que a humanidade precisa para seu próximo salto de evolução?

Foi isso que Myers disse em sua última transmissão, não foi? A humanidade precisa de algo para evoluir. Bom, eu posso afirmar que o que tem ali dentro é EXATAMENTE o que a humanidade precisa!

Eu também posso dizer que, sem sombra de dúvidas, é impossível descrever em palavras o que tem ali. Vocês precisam ver! Também não dá para mostrar por uma câmera! É diferente, ver esse tipo de coisa com seus próprios olhos! É como eu olhar agora para cima, aqui em Marte, e ver esse céu estranho, meio cinza, com os meus olhos. Sem vidros distorcendo a luz. Eu já tinha visto fotos desse mesmo céu antes. Eram diferentes! Eram... insuficientes! É como quando Myers estava em Saturno. Estar lá e ver tudo aquilo, ESTANDO lá de verdade, vale a pena? Lembro-me de um velho ditado: alguns nasceram para serem astrônomos, enquanto outros nasceram para ser astronautas...

(O homem olha para baixo, para suas próprias mãos, por alguns segundos. Acena a cabeça positivamente algumas vezes. Depois retoma a fala.)

Mãe! Eu não vou voltar. Onde quer que você esteja, espero que esteja bem! Me desculpe por ter sido uma decepção para você e para o pai. Fico feliz que você tenha a Vivi ao seu lado. Mana, me desculpe também! Cuide bem da mãe, viu? Amo muito vocês duas!

(O homem se levanta. A câmera focaliza suas pernas. Ele começa a se afastar. Depois de um tempo ele volta e se abaixa, o rosto tornando a cobrir todo o quadro.)

Eu vou seguir adiante. Quero ver Júpiter e os anéis de Saturno. Muito obrigado a todo mundo pela confiança depositada em mim. Não fiquem muito bravos! Vocês tem dinheiro, tem os planos do foguete... O que mais lhes falta?

(O homem se levanta de novo. A câmera mostra mais uma vez o monumento solitário. Mas logo o rosto do homem volta a aparecer.)

Ah, uma última coisa! Sabem aquela minha teoria, que eu nunca tinha contado para ninguém? Não é que eu estava correto o tempo todo? E se realmente prestaram atenção no meu relato, talvez vocês consigam deduzir também!

(O homem pisca um dos olhos e abre um sorriso.)

Adeus!

(O homem levanta a mão e a leva à lateral da câmera. A imagem balança um pouco e em seguida fica completamente preta.)



Fim



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