9 meses

Autores: Daniel Lucrédio e Guilherme Almeida Pereira

Genésio estava exausto. O chão de cimento do quarto subterrâneo, que deveria ter a cor cinza, era uma mistura de tons verdes, amarelos, marrons e vermelhos, resultado das centenas de camadas de excrementos produzidos pela enorme criatura.

— Porcalhona — murmurou, enquanto terminava de encher o balde com uma pá cheia de gosma purulenta. — Ugh! Comeu carne, dá nisso! — O cheiro de carniça misturado com ovo podre era um lembrete de que a alimentação do bicho influenciava diretamente nos odores que produzia.

Precisou de duas viagens até o caminhão que esperava nos fundos da mansão, o que demorou bastante graças ao desgaste na coluna. Quando terminou, voltou ao local e admirou a criatura. Ela dormia profundamente, mas logo acordaria. “Dois ou três dias, no máximo” — calculou.

Voltou ao seu minúsculo dormitório e foi direto ao banheiro para se lavar. Antes de se despir, avaliou o rosto no espelho. A barba grisalha e rala não era suficiente para esconder as rugas profundas que marcavam a pele e denunciavam as quase sete décadas de vida. Vida essa desperdiçada quase em sua totalidade naquele aposento medíocre, servindo ao ilustre comendador Otto von Liebstraun e sua esposa Anitta Esposito.

O casal de ricaços até que o tratava bem. Recebia um salário razoavelmente digno e tinha estabilidade, o que nos últimos tempos era um benefício reservado para poucos. No entanto, boa parte das rugas não eram fruto da longevidade, e sim do trabalho horrível a que era submetido.

Passou a mão nos cabelos ralos e sentiu o couro cabeludo oleoso embebido em suor. Também sentiu algo muito mais asqueroso: uma porção de lama escura que ele tinha certeza que escorreu das axilas da criatura.

“Deve ter grudado aí quando fui raspar sua pele! Ugh!”

Segurou a ânsia de vômito e tirou a roupa, jogando-a no cesto. Esfregou com vontade a dura pedra de sabão até sentir que tinha removido camadas suficientes da pele envelhecida. Enxugou-se e foi direto para a cama descansar os ossos puídos. Adormeceu quase imediatamente.

Nos dias que se passaram, a criatura dava sinais de que iria despertar, o que significava que era preciso tomar duas providências: parar de alimentá-la e avisar seu patrão. Foi até o escritório e bateu na porta:

— Doutor Otto?

— O que é, Genésio?

— Ela está acordando.

O homem idoso ergueu as sobrancelhas finas e exibiu um largo sorriso:

— Finalmente! Acha que hoje mesmo eu poderei entrar?

— À noite, provavelmente.

— Excelente!

O comendador pegou o telefone e começou a dar ordens e cancelar compromissos dos próximos meses. Já estava tudo mais ou menos preparado, mas ele não sabia exatamente quando a criatura iria acordar. Podia demorar uma semana ou um ano, variava muito. Agora que tinha a confirmação, era hora de se preparar.

No final do dia, Genésio desceu as escadas até o porão escuro e malcheiroso. Soube imediatamente que a criatura estava acordada, pois ouviu a voz de baleia ecoando pelas paredes grossas.

Acendeu as luzes e caminhou devagar. “Será que eu tranquei o portão ontem?” — pensou, sentindo o sangue gelar.

Espiou pelo corredor e viu o enorme cadeado trancado.

“Ufa! Já pensou se…”

O pensamento o incomodou. O que aconteceria se ele não tivesse trancado o portão? Estava tão acostumado a entrar e sair todos os dias com a criatura adormecida que a possibilidade era real. O pensamento voltou, agora mais sério:

“E se a criatura escapasse? E se ela me visse, e…”

Um som gutural interrompeu o raciocínio. A criatura estava chamando-o. Seus olhos o encaravam, exalando o desejo inconfundível. Estava com fome, mas não queria alimentos simples. Nada de frutas, legumes, pães ou carnes, que era o que consumia durante o sono. Queria algo mais apetitoso.

Genésio se aproximou e olhou nos olhos da criatura. Eram idênticos a olhos humanos, exceto pela cor mais avermelhada da íris e pelo tamanho descomunal: tinham o tamanho de bolas de basquete. O rosto da criatura era menos parecido com o de um humano. Era marrom e tinha feições grotescas, como se fossem esculpidas desleixadamente em argila retirada de um pântano. A boca era enorme, com um tamanho suficiente para engolir uma pessoa adulta.

— Quer me comer, não quer?

A criatura urrou em resposta. Seus olhos brilharam e um pouco de saliva amarela escorreu da boca. Ela deu um leve sorriso, revelando os dentes esverdeados na frente da língua vermelha e faminta, que removeu a saliva amarela de volta para o interior da enorme caverna escura.

Genésio não tinha certeza, mas achava que a criatura era uma fêmea. Não que houvesse muitos sinais que pudessem identificar o gênero. O corpo era humanoide, mas com proporções diferentes das humanas, com a cabeça desproporcionalmente grande. Os pés minúsculos não pareciam ter função alguma além de ajudar a criatura a se arrastar. Os braços, curtos. As mãos só conseguiam alcançar a frente do rosto, servindo apenas para empurrar comida para dentro da boca. A exceção era a barriga. Enorme e redonda. Rechonchuda.

Convidativa.

Genésio não teve muito tempo para nutrir sua imaginação, pois logo ouviu a voz do patrão às suas costas:

— Cadê a minha fofinha? — indagou Otto, com uma voz que imitava uma criança. — Cadê ela?

A criatura exibiu um enorme sorriso e bateu as mãos no chão, animada. Genésio se virou para encarar o casal que se aproximava.

Otto vestia um robe de seda que era tão fino que revelava todos os detalhes nojentos do corpo maltratado pelos péssimos hábitos. Excesso de peso na barriga e na cintura, falta de músculos nas pernas e braços, e uma pele enrugada e gordurosa que só podia ser o resultado de muitos anos de consumo excessivo de comida. Ele sorria, com seus dentes amarelados pela fumaça de charutos caríssimos, enquanto se aproximava de Genésio e da criatura.

— Ela está enorme, querido! — admirou-se Anitta.

Visualmente falando, a esposa de Otto era o completo oposto do marido. Aparentava ter vinte anos, mais ou menos, e suas curvas esculturais e músculos bem definidos causariam inveja em qualquer fisiculturista. Ela usava uma saia curta e um top justo que mal conseguia conter seus seios avantajados. Ela sorria, exibindo os dentes brancos emoldurados por lábios fartos e carnudos.

— Está na hora — decretou Otto, ansioso. — Um beijo, minha querida?

A moça não conseguiu ocultar o asco que sentiu. Também não se preocupou em disfarçar:

— Nem pensar. Você é um velho nojento!

Ao invés de ficar nervoso, Otto sorriu e disse:

— Não por muito tempo.

Os dois deram uma gargalhada e olharam para Genésio, esperando por um riso também.

Genésio não riu.

— Abra a porta, homem! — ordenou Otto, bruscamente.

O empregado olhou para baixo e enfiou a mão no bolso da calça para retirar a chave. Ao puxar a mão para fora, sentiu que a costura grosseira rasgou sua pele idosa e ressecada, abrindo uma pequena escoriação.

“Droga! Vai demorar uma semana pra sarar!”

Olhou para Otto. Ele tentava apalpar a esposa, que fugia dando risada.

Genésio foi até a grade e enfiou a chave no cadeado. Deu uma última olhada para trás. Otto tinha deixado seu robe cair no chão, ficando completamente nu.

Voltou a olhar para a frente, e viu a mão escoriada.

“Setenta anos… é tempo demais…”

Virou a chave e tirou o cadeado.

A enorme criatura lambeu a boca.

— Anda! — ordenou Otto. — Está frio!

Genésio agiu sem pensar. Empurrou a pesada trava e abriu o portão de ferro. Sem olhar para trás, entrou na jaula, fechou o portão e o trancou com o cadeado.

— Genésio?

Otto e Anitta o olhavam estupefatos.

Genésio não respondeu. Virou-se de costas e encarou a enorme criatura. Ela estava confusa. Tombou a cabeça de lado um pouco, tentando entender o que fazer.

Genésio jogou a chave no chão, longe da grade. Desabotoou e tirou o cinto. Depois, tirou as calças.

— Genésio! O que vai fazer, velho desgraçado?

Tirou a camisa e olhou para a criatura. Ainda parecia confusa.

— Você está ferrado, está entendendo? — gritou Otto. — Não vai escapar dessa!

Quando Genésio tirou a cueca, a criatura finalmente mudou sua expressão confusa. Ela sorriu e se aproximou. Agarrou-o com suas mãos pequenas, mas fortes, e abriu a boca enorme. A língua rosada e os dentes esverdeados aos poucos se revelaram por trás dos lábios de barro. A criatura o puxava devagar, cada vez mais perto da escuridão. A saliva cobria quase tudo, formando uma película que brilhava sob a luz fraca. Quando sua cabeça entrou na cavidade, Genésio pode ver seu destino. A garganta negra o esperava no fim daquele túnel grotesco.

Por muitos anos, Genésio imaginou como seria ser engolido por aquela criatura. A julgar pelo exterior, sempre achou que o cheiro seria ruim.

Não era. O cheiro era gostoso. Era um cheiro de velas perfumadas.

A criatura deu a primeira mordida.

Genésio soltou um urro que nunca achou ser capaz de produzir. A dor dos ossos se quebrando era excruciante. Ele sabia que isso iria acontecer, pois já tinha ouvido o barulho das outras vezes, mas era sempre do lado de fora. Experimentar aquela sensação na própria pele era completamente diferente. Os estalos do esqueleto sendo triturado reverberavam dentro de seu corpo.

Desesperado, tentou se proteger encolhendo os braços e pernas, mas isso só piorou a situação. As poderosas mandíbulas da criatura não tiveram dificuldade em amassar as várias camadas de pele, ossos e músculos de uma vez. Depois de algumas mordidas, Genésio perdeu a capacidade de movimentar os membros e se tornou uma massa inerte.

Enquanto era mastigado, sentia a língua pegajosa empurrando-o para dentro. A cada mordida, mais dor e mais gritos. Quando a criatura finalmente fechou a boca, os gritos se tornaram abafados e o ar começou a faltar.

A criatura continuou triturando cada centímetro de osso de seu corpo, exceto a cabeça. Estava sendo cuidadosa, certificando-se de que não haveria nenhuma lasca pontuda que poderia prejudicar a deglutição.

Apesar do sofrimento terrível, Genésio não se abateu. Ele sabia que em pouco tempo o suplício iria terminar.

Quando já não havia mais ossos para serem quebrados, percebeu que a hora estava chegando. Passar pela garganta foi, além de dolorido, muito angustiante. Era como se ele fosse líquido escorrendo por um cano estreito.

Quando chegou no estômago da criatura, a escuridão se tornou absoluta. Além da ausência de luz, também não havia ar, e sim um líquido fino. Genésio lutou desesperado contra o afogamento por alguns segundos, mas enfim cedeu e inalou.

Imediatamente, ele sentiu a paz.

Seus pulmões se encheram com o líquido, que era quente e refrescante ao mesmo tempo. Trazia oxigênio. Trazia vida. De certa forma, era melhor do que respirar ar seco e gelado.

Sua pele nua foi envolvida pelas mucosas macias e úmidas da criatura. Imediatamente, suas dores cessaram, e ele sentiu-se confortável, como se estivesse em uma cama quentinha numa noite de inverno. Na verdade, era melhor, pois ele flutuava. A ausência de gravidade trazia um embalar gostoso.

Seus ouvidos ainda captavam alguns sons: a voz esganiçada do patrão e os gritos enlouquecidos de sua esposa. Aos poucos, foram substituídos pelas batidas graves do coração da criatura e pelo ritmo suave de sua respiração demorada.

Genésio sentiu um movimento. A criatura estava se mexendo.

Depois, um baque suave. A criatura se deitou.

O som da respiração se transformou aos poucos em um ronronar constante, um ronco que acompanhava a respiração cada vez mais lenta.

A criatura estava adormecendo.

Genésio aspirou o líquido para dentro de seu pulmão uma última vez antes de adormecer profundamente.

***

— Tem certeza, doutor? — perguntou Otto.

— Absoluta — respondeu o médico. — Não há o que fazer. Se tentarmos tirá-lo à força, vamos machucar a criatura. Ela pode até morrer.

— Ah, então deixa, amor. Vamos esperar — choramingou Anitta.

— Esperar? — rugiu Otto. — Isso não tem cabimento! Eu tenho que esperar enquanto um… um… criado fica todo gostosão lá dentro?

— Sinto muito, senhor Otto.

— Amor — começou Anitta —, não pode pedir para um dos seus amigos poderosos? Quem sabe alguém te empresta um por alguns meses.

Otto riu debochado ao responder:

— Sabe quanto custa pra ter um desses, mulher? Bilhões! Meu espécime precisou de décadas de cuidado pra crescer assim. Ninguém vai se arriscar a emprestar, não!

— Ai, mas é só por uns meses. Quanto você precisa rejuvenescer?

— Me diga você! Quantos anos eu aparento ter?

— Uns setenta. É, você tá um caco! Precisava perder uns quarenta anos, no mínimo, para eu ter coragem de beijá-lo.

— Não se esqueça — disse Otto, apontando seu dedo enrugado para a esposa —, que você tem cento e sessenta anos. É quase tão velha quanto eu, querida.

— Mas graças ao nosso bichinho, meu corpo acabou de fazer dezoito anos — gabou-se Anitta, chacoalhando os quadris com um vigor irritante.

— Eu sabia que devia ter ido primeiro desta vez… mas tinha tanta coisa pra resolver.

— Você aguenta, amor — consolou Anitta.

— Fazer o quê? Se não tem jeito.

— Não se esqueça de manter a criatura sempre limpa e bem cuidada — recomendou o médico. — São seres asseados, detestam sujeira. Se ela acordar com o homem lá dentro, pode ficar estressada e se machucar.

— Droga — resmungou Otto —, era Genésio quem fazia isso.

— Se não quiser perder o investimento, vai ter que arrumar outra pessoa.

— De jeito nenhum! Eu que não vou arriscar a encontrar um outro empregado safado querendo rejuvenescer às minhas custas. Não pode vir aqui para fazer o serviço, doutor? Pago bem.

O médico sorriu:

— Nem pensar! Eu já ganho o suficiente. O que me lembra… são quinze mil.

— Quinze mil? Por uma visitinha?

— Por hora. Que, aliás, já está quase chegando ao fim.

— Está bem, passe no escritório.

— Muito obrigado, senhor Otto. Adeus, senhora Anitta. Lembre-se, mantenha a criatura…

— Limpa e bem cuidada, pois ela detesta sujeira.

O homem sorriu e se despediu do casal.

Anitta olhou para a criatura, que dormia um sono profundo, e disse:

— Nem adianta pedir, que eu não vou limpar.

Otto olhou para ela com ódio estampado no rosto e disse:

— Mas você vai me beijar.

Ela riu e se aproximou dele. Tocou a ponta de seu nariz cheio de poros sujos com o dedo delicado e disse:

— Só quando você ficar jovem de novo.

Virou-se de costas e saiu rebolando, deixando-o com um xingamento preso na garganta.

***

Genésio estava sentindo-se ótimo. Todos os seus ossos tinham sido restaurados. Podia mexer os braços e pernas novamente, só não o fazia porque a posição em que estava era muito confortável. Abraçava os joelhos e mantinha a cabeça encolhida, em posição fetal.

Ao seu redor, sentia o calor da criatura envolvendo-o, acariciando-o. Não era nem muito quente, nem muito frio, era a temperatura perfeita. Sua rinite, que o atormentava a cada outono e inverno das últimas décadas, desapareceu.

No princípio, só dormiu. Foram horas, ou dias, não soube precisar. E foi um descanso bem-vindo. Suas costas doloridas agradeceram à ausência de esforço, e os músculos cansados puderam relaxar pelo que parecia ser a primeira vez em muitos anos.

Depois disso, quando passou a ficar mais tempo desperto, temeu sentir solidão e claustrofobia, mas a realidade se mostrou muito mais agradável do que receava. Por algum motivo, não se sentia sozinho nem entediado. Talvez o líquido amniótico que inalava e bebia o tempo todo contivesse algum tipo de alucinógeno, pois sua mente vagava entre memórias reais e cenários imaginários, tão vívidos como se estivesse com os olhos abertos, do lado de fora. Nos últimos dias, ele andava vivendo em um sítio pacato à beira de um rio. Era muito parecido com um lugar que ele visitou uma vez quando era criança, ao lado de seu pai, mas a casa era maior e mais bonita do que se lembrava.

Também não sentia fome. Sentia-se saciado o tempo todo, certamente fruto dos nutrientes acumulados no corpo da criatura que o hospedava. Quando, em um de seus sonhos, comia algo, ele quase podia sentir o gosto em sua boca e o cheiro em seu nariz.

Algumas vezes imaginava ouvir vozes. Isso trazia um certo desassossego, uma lembrança de que existia um mundo frio lá fora. Quase sempre vinha com uma sensação de esmagamento, por isso ele aprendeu a desprezar esses ruídos. Quando acontecia, concentrava-se nos batimentos cardíacos graves e na respiração compassada, sons que ele apreciava cada vez mais. Depois de alguns segundos, voltava ao seu mundo de sonhos e lembranças.

Era um mundo bom.

***

O cheiro era insuportável. Otto estava raspando a pele da criatura com um utensílio metálico que removia o suor e as substâncias gordurosas que escorriam por toda a extensão de seu corpo. Usava grossas luvas de borracha para se proteger da imundície.

— O que é isso? Parece… cabelo? — perguntou Anitta. Ela estava sentada do lado de fora do recinto e se levantou para observar o trabalho do marido.

— É cabelo, sim — Otto respondeu, balançando a ferramenta para desgrudar a sujeira antes de voltar a fazer o serviço. — Mas isso é o de menos. Tem restos de pele, pedaços de unha e outras nojeiras.

— Credo, mas de onde vem isso?

— Do nosso empregado folgado, Genésio! Enquanto ele vai rejuvenescendo, a criatura vai expulsando as coisas velhas e mortas que se soltam do corpo dele.

— Que nojo. Isso acontece sempre? Acontece quando eu estou lá dentro também?

— Claro que sim, minha querida — debochou Otto. — Acha que a sua joanete de velha foi parar onde?

— E alguém precisava ficar limpando? Quem?

Otto se virou para ela, com as mãos na cintura e disse:

— Ora, quem? Genésio, nosso empregado!

Anitta ficou em silêncio. Quando Otto estava quase terminando o serviço, ouviu um barulho de lama barrenta caindo no chão.

— Oh, não! — exclamou Otto.

— O que foi?

— O que acha? Olhe.

Anitta se levantou e foi até onde o marido estava. A criatura tinha acabado de produzir um enorme bolo de excrementos.

— Ai, que nojo! — exclamou Anitta. — Peraí… aquilo ali é… um dente?

Otto se abaixou e enfiou a mão na massa pegajosa. Pegou o pequeno objeto amarelado com os dedos, e fez uma careta quando veio junto um tufo de cabelos grisalhos enrolados.

— Peraí… O Genésio não tem cabelos lisos? — perguntou Anitta. — Isso aí é… — Não conseguiu completar a frase, pois começou a gargalhar.

Otto enfiou a mão no monte marrom e pegou um punhado da substância na mão. Ergueu-a e mirou no rosto de Anitta, mas ela percebeu e saiu correndo e gritando antes que recebesse o projétil imundo.

Ficando sozinho, Otto deixou as mãos caírem e olhou para a criatura. Murmurou:

— Aproveite, seu safado. Quando sair daí nós vamos acertar as contas.

Foi até a parede, pegou a pá e recomeçou a limpeza.

***

Genésio apertou o nó da gravata e se olhou no espelho. Estava muito bonito. Não se lembrava de possuir um terno tão fino. Ela iria adorar.

Assim que saiu de casa, chegou imediatamente à praça, o que era estranho, pois ficava a vários quilômetros de distância. Não teve tempo para raciocinar, pois ela veio correndo ao seu encontro.

— Genésio! — ela deu um gritinho. — Você está lindo!

— Você também, Magnólia. Vamos dançar?

Eles começaram a girar no luxuoso salão. A banda favorita de Genésio tocava sua música favorita. Isso também era estranho, pois todos os integrantes da banda já estavam mortos. Magnólia não parecia se importar, pois girava seu vestido rodado, fazendo as flores amarelas e vermelhas dançarem ao som da música. Sorria para ele como não fazia há muito tempo, desde que tinha morrido.

— Vamos para um lugar mais tranquilo? — ela perguntou, com um olhar provocativo.

— Vamos.

Agora Genésio sabia que estava sonhando. Não se importou nem um pouco. Demorou-se ali, saboreando sua falecida esposa. Horas depois, quando o sonho terminou, ele abriu os olhos e não viu nada. Estava tudo escuro. Ao ouvir as batidas ritmadas do coração da criatura, riu alto. Não saiu nenhum som, exceto em sua mente.

Espreguiçou-se, mas não muito, pois não sentia nenhum tipo de dor muscular. Engoliu um pouco de líquido, sentindo sua fome e sede, que já eram mínimas, sendo saciadas. Expeliu um pouco de líquido também, aliviando a bexiga e o intestino. Virou-se um pouquinho de lado e fechou os olhos.

Depois de cinco batidas do coração da criatura, viu-se em um circo. Magnólia apontava para um trapezista. Ela estava maravilhada. Nunca tinha ido a um circo antes.

Nem Genésio.

***

— Doutor, já fazem cinco meses — disse Otto, preocupado, ao telefone.

— E daí? — respondeu o médico.

— Ele não vai sair nunca?! Eu não aguento mais limpar tanta sujeira!

— Não pare, se não quiser matar a criatura. Ela precisa dormir enquanto está no processo de rejuvenescimento.

— Quanto tempo mais ele vai ficar lá?

— Olha, para falar a verdade, é bem raro passar dos seis meses. Quantos anos ele tinha quando entrou?

— Eu não sei, uns setenta, oitenta?

— Bem, a conta é simples. Cada mês dá mais ou menos dez anos de juventude. Ele deve ter rejuvenescido uns cinquenta anos.

— Droga, era exatamente o que eu precisava para mim. Mas por que ele ainda não saiu? Será que ele morreu? Ou esqueceu?

— Morrer lá dentro é impossível. Esquecer, também acho difícil. O senhor já passou por isso outras vezes. Já sentiu vontade de ficar mais tempo?

— Nunca! Assim que eu me sinto jovem quero voltar para cá!

— Bem, talvez ele não queira voltar.

Otto coçou a cabeça.

— Não quer voltar? Como assim?

— Eu não sei, senhor Otto. Isso é algo que o senhor vai ter que perguntar para ele quando sair… isso se ele sair, é claro.

— O que está dizendo, doutor? Que ele pode ficar lá para sempre?

O médico pigarreou do outro lado da linha antes de continuar:

— Olhe, eu não tenho muita certeza, pois isso nunca aconteceu antes. Todo mundo que eu conheço que tem um bicho desses acaba saindo perto dos seis meses, pois querem desfrutar sua riqueza com a juventude. Por motivos bem óbvios, eu nunca soube de alguém… bem… alguém como…

— Pobre?

— Sim, as criaturas são exclusivíssimas, como o senhor sabe. Dá para contar nos dedos da mão quem tem uma.

— E daí? O que isso tem a ver com a coisa toda?

— Isso é muito inédito, é isso o que eu quis dizer. Se uma pessoa não tem uma boa vida aqui fora, por que iria querer voltar?

— Ele vai ganhar sua juventude de volta. E de graça! Não é um baita de um negócio?

— Sim, sim… bem, eu não sei. Só sei que existe um limite teórico para o processo todo.

— Que limite?

— Nove meses.

— O que acontece se ele ficar nove meses lá dentro?

— Eu não sei, já disse. Nunca aconteceu.

— A criatura pode morrer?

O médico fez silêncio, o que foi perturbador o suficiente para Otto. Depois, disse:

— Provavelmente, não.

— Eu vou matar aquele canalha quando ele sair. Se ele sair vivo, é claro!

— É claro, senhor. Preciso desligar. São dez mil.

Otto suspirou e respondeu:

— Está bem, já faço o pagamento. Obrigado, doutor.

— Disponha.

***

O vigor físico de Genésio estava em sua plenitude. Sentia-se bem como nunca tinha se sentido em sua vida. Achava que poderia escalar uma montanha e logo depois correr uma maratona.

Era hora de sair.

Tinha reconquistado sua juventude perdida, e teria o que sempre quis, uma chance nova. Oportunidades não faltariam e ele poderia reconstruir sua vida de um jeito melhor.

“Mas antes… mais uma soneca!”

Para onde iria? Para sua escola, rever os amigos de infância? Para a Lua?

A resposta o surpreendeu. Ele estava de volta à casa do patrão. O senhor Otto parecia muito velho, mas Genésio era uma criança. Olhou para cima e viu seu pai com a cabeça abaixada. Tentou puxar o tecido da camisa para chamar sua atenção, mas foi dispensado com um tapa dolorido. Genésio abaixou a cabeça também e começou a ouvir o sermão:

— Seu idiota! Você é um imbecil, sabia Benjamim? Eu deveria despedi-lo agora mesmo!

— Não, senhor Otto — choramingou o pai. Genésio sentiu uma dor terrível ao ouvi-lo se humilhando daquele jeito. Tinha se esquecido da sensação. — Eu posso consertar.

— Você vai consertar. E vai receber metade do salário até compensar o que quebrou. É uma porcelana caríssima, vinda da Itália!

— Q-quanto custa? — perguntou Benjamim, assustado.

— Dois anos do seu salário. Mas eu pago metade, pode ficar tranquilo. A culpa também foi minha, eu bebi demais.

— Obrigado, senhor Otto, muito obrigado! Muito obrigado… muito obrigado… muito… obrigado…

As palavras ecoaram na mente de Genésio por vários minutos, ou várias horas, não soube dizer.

Despertou. Se não estivesse em seu aconchegante ambiente, estaria suando frio por causa do sonho ruim. Não se lembrava de quando seu pai trabalhava para Otto. Parecia que tinha sido sempre ele o empregado.

Aquilo trouxe um pensamento estranho. Será que o seu avô também tinha trabalhado ali? E seu bisavô? Quem teria sido o primeiro empregado a cuidar da enorme criatura que prolongava a vida do patrão?

Genésio sentiu uma vontade imensa de sair e encarar o patrão. Assim que saísse pela boca enorme, ele certamente estaria esperando para dar um sermão. Genésio não iria nem ouvir. Daria um belo soco em seu nariz e sairia correndo para sua nova vida.

Mas ele não saiu. Sabia que ele nunca teria uma nova vida.

Otto era eterno. Viveria para sempre. Teria quantas novas vidas quisesse, pois assim seu dinheiro permitia.

Genésio, não.

***

— Querido, o doutor chegou.

— Ótimo — respondeu Otto, levantando-se. — Vamos lá recebê-lo.

O casal desceu as escadas com pressa. Anitta abriu a porta, e Otto foi logo em direção ao médico.

— Obrigado por vir, doutor. Não podemos perder tempo, venha — disse, puxando-o pelo braço.

— O que está acontecendo, senhor Otto?

— Eu acho que ela vai acordar, e o maldito ainda está lá dentro.

Com uma expressão preocupada, o médico respondeu:

— Está mantendo-a limpa?

— Quase não há o que limpar, pois ela não produz mais sujeira. O que isso significa?

— Há quanto tempo ele está lá dentro?

— Oito meses e vinte e sete dias.

— Hum — o homem coçou o queixo —, isso é muito interessante. Significa que quase não há mais material envelhecido para a criatura excretar.

— O que isso quer dizer?

— Seu empregado deve estar bastante jovem, o que é esperado, afinal já se passaram quase nove meses.

— Eu não dou a mínima para ele. E a criatura? Você disse que corria o risco de morrer se acordasse antes da hora.

— Eu disse que não tinha certeza. Preciso examiná-la.

— Então corra, doutor, corra!

Os três seguiram pelos longos corredores da mansão e chegaram ao quarto subterrâneo. Otto abriu o portão e eles entraram. Assim que chegou perto, o médico disse:

— Ela parece ótima! — Retirou um estetoscópio da maleta e auscultou o corpanzil. Sorrindo, deu seu diagnóstico: — Não acho que precise se preocupar, senhor Otto, ela está com uma saúde excelente.

Otto deu um enorme sorriso e olhou para a esposa, que sorriu de volta. Antes que ela pudesse fugir, ele a agarrou e deu um beijo molhado em sua boca. Ela o empurrou e cuspiu no chão, com nojo.

— Então é só a gente esperar mais uns dias e ela vai estar com o bucho livre para mim?

— Creio que sim. Vai ter que descansar um tempo, é claro, mas vai ficar bem.

Os três riram, felizes com a notícia. Otto disse à esposa:

— Prepare-se, minha querida. Quando eu ficar jovem, você não vai fugir de mim.

— Claro que não, amor. Você jovem é um gato!

— E você, uma gostosura.

— Er… com licença? — interrompeu o médico, envergonhado por atrapalhar os gracejos do casal.

— Sim, doutor, seu pagamento, né?

— Não é isso. Eu só queria lembrá-los que a criatura precisará ser bem cuidada para que não adoeça. Se estou entendendo direito, seu empregado está ali dentro. Ele era um excelente cuidador, não?

Otto enrugou a testa. Disse:

— Ué, ele vai sair, não vai?

— Sim, mas temo que ele terá rejuvenescido demais.

— Demais, como?

O médico ergueu os ombros. Otto olhou para a esposa, que ergueu as mãos e disse:

— Nem adianta olhar. Eu não vou limpar.

Por alguns segundos, Otto não disse nada. Aos poucos, sua respiração foi se acelerando e seus olhos começaram a saltar de um lado para o outro. De repente, o desespero o atingiu. Ele foi até a barriga da criatura, ajoelhou-se e começou a gritar:

— Genésio! Genésio! Saia, por favor! Eu preciso de você, não confio em mais ninguém para cuidar da criatura. Não confio em mais ninguém para cuidar… de mim! — Lágrimas escorriam de seu rosto. — Você precisa sair daí! Está me ouvindo? Eu aumento seu salário, eu te dou aquelas férias, eu…

De repente, a criatura se mexeu. Virou-se com a barriga para baixo. Otto se afastou.

A criatura abriu os olhos. Piscou algumas vezes para Otto, Anitta e o médico.

— O que vai acontecer? — perguntou a mulher.

A criatura soltou um pequeno arroto. Abaixou a cabeça, parecendo enjoada.

— Ele vai sair! — disse o médico, com assombro na voz.

— Genésio me ouviu, está saindo! — exclamou Otto, com o olhar brilhando em lágrimas.

Outros arrotos encheram o local com um perfume de velas. A criatura se apoiou nas duas mãos e ergueu um pouco o corpo. Puxou o queixo para perto do corpo, e seu rosto grotesco se contorceu em uma careta.

— É agora.

O ser gigante abriu a boca e produziu um som gorgolejante. Um pouco de saliva apareceu em seus dentes e lábios. O pescoço se movia em ondas cada vez mais rápidas.

Os três humanos não piscavam. Não respiravam. Não moviam um músculo sequer.

Então a criatura finalmente expeliu o que estava dentro de si. Não era Genésio.

— Eca, aquilo é… o que eu estou pensando? — exclamou Anitta.

O médico se aproximou da pequena massa esbranquiçada e pegajosa no chão. Colocou o nariz perto e deu uma fungada. Encostou o dedo indicador e tocou na substância. Ao perceber do que se tratava, puxou a mão imediatamente e fez uma cara de nojo.

A criatura olhou para Otto. Em seguida, fez algo que nunca tinha feito antes. Apontou o indicador em direção ao chão, e em seguida para o balde que ficava ali perto.

— Acho que ela quer que você limpe — disse Anitta.

Otto se aproximou e olhou para a pequena porção gosmenta no chão. Deixou cair o ombros e exclamou:

— Genésio?! Mas que p...



Fim



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