Quando a paixão acaba

Autores: Alexandra Pereira e Daniel Lucrédio

Dizem que muitos relacionamentos terminam quando a paixão chega ao fim. Quando começa aquela rotina e a sensação de novidade e excitação dão lugar ao tédio. Naquela semana, chegou a minha vez de experimentar esse triste fato da vida.

A semana foi uma droga por si só. Na segunda eu perdi o ônibus; na quarta, esqueci a chave de casa e precisei arrombar a janela da cozinha; quinta-feira, meu chefe decidiu me dar um aumento que não foi de salário — foi de trabalho; mas isso não foi nada perto da tragédia de sexta-feira.

Toda sexta eu saio do trabalho, vou direto para a casa do Pedro e passo o fim de semana lá. Já virou rotina. E então eu fui, como sempre. E, como sempre, me peguei imaginando um programa diferente, para variar. Eu não costumava falar muito disso, porque a resposta invariavelmente envolvia um lanche no shopping e cinema depois. E nesse final de semana em particular só estava passando filme de super-herói ou animação infantil. Detesto. Tenho que assistir a todos, é claro, como parte do nosso “contrato de namoro” não assinado.

De qualquer forma, depois da semana caótica e cansativa, eu realmente não estava a fim de fazer nada além de desligar meus neurônios com uma dose saudável de vinho que tinha comprado na lojinha de conveniência e assistir qualquer série para me distrair. Estava tão cansada que toparia até mesmo um documentário! Eu reivindicaria meu direito a aventuras noutro dia.

Enfiei minha cópia da chave na porta e girei.

— Amor, cheguei! — gritei, só para sinalizar minha chegada. Nem sei por que faço isso. Ele não respondeu, como sempre. Eram os tais fones de ouvido de última geração, com cancelamento de ruído. No caso, o ruído era eu, é claro.

Como sempre, não dei muita bola. Estava mais concentrada em chegar logo até a geladeira para tentar gelar meu vinho e deixá-lo um pouco mais bebível.

Acabei pisando em uma pilha de papeis no capacho de entrada. Eram as correspondências dele. Xinguei levemente, em minha mente, é claro, recolhi o amontoado e segui meu caminho.

A cozinha estava uma bagunça. Ele não foi capaz de lavar a louça. Não sei por que ele decidiu morar sozinho se não dava conta de cuidar da casa. Acho que em algum ponto ele só deixou de fazer as coisas porque percebeu que eu estava ajudando. Tirando o quarto de jogos, é claro. Aquele “santuário sagrado” estava sempre impecável. Cada minuto que poderia ser investido arrumando as roupas no armário era gasto organizando aqueles cabinhos e aquelas luzinhas todas do computador. Os controles ficavam sempre todos enfileirados, deixando os talheres na gaveta morrendo de inveja. Além do volante do videogame, é claro. Um trambolho que podia muito bem dar espaço a uma poltroninha, que eu poderia usar para ficar ali fazendo companhia pra ele de vez em quando.

Voltei minha atenção para a pilha de papel. Eu sei que eu e o Pedro só éramos namorados e talvez eu não devesse sair abrindo as correspondências dele. Mas a gente já namorava fazia cinco anos. Eu acho que eu tinha algum direito adquirido. Não tinha?

Já ia colocar tudo na bancada da cozinha, mas estava cheia de cadernos e livros jogados. Tentei chamá-lo outra vez enquanto achava um espacinho para separar as cartas úteis dos panfletos de propaganda.

— Pedro, vem aqui me ajudar com essa bagunça?

Fiquei sem resposta, é claro. Respirei fundo e fixei minha atenção nos papeis. A maior parte das correspondências era lixo. Panfleto de propaganda. Lixo. Livrete das testemunhas de Jeová. Lixo. Folheto de promoção de eletrodomésticos. Lixo.

— Pedro?

Ele estava no quarto com aqueles malditos fones de ouvido. É claro que não me escutou. Larguei tudo, andei até a porta e bati com toda a delicadeza que a minha raiva permitiu.

— PEDRO!!!

—Peraí, eu tô no meio de um negócio.

Acho que ele percebeu que o meu tom não era amigável, porque levantou e abriu a porta, mas voltou correndo para o computador. Nem olhou na minha cara. Também nunca entendi essa mania de trancar a porta do quarto. Normalmente não ligava, mas naquele dia até isso me irritou.

— Só vou terminar essa partida, já te ajudo aí — ele disse, vidrado na tela.

— Caramba, por que você não tira meia hora pra arrumar essa bagunça? Você sabe que eu chego cansada!

Ele ainda mal olhou na minha cara quando respondeu:

—Eu disse que já vou, pô. Que coisa!

Usei o resto da paciência que me restou para voltar para a cozinha. As únicas correspondências que restavam na pilha agora eram contas pessoais do Pedro. Eu não deveria mexer nessas, certo? Só que faturas e gastos andavam aparecendo nas nossas conversas de um jeito não muito amigável ultimamente. Talvez sem querer, ou talvez por querer, ele vinha “deixando escapar” que eu não sabia cuidar das minhas contas. Claro, nunca dizia abertamente. Era sempre um comentário tipo “Nossa, mas ainda estamos no dia quinze e você já ficou sem grana?”. Eu morria de raiva, principalmente porque a gente ganhava mais ou menos a mesma coisa, e ele sempre conseguia fazer o salário dele durar mais. Bom, que mal faria abrir e olhar? Quem sabe eu não aprendia um pouco com o grande mago das finanças?

Eu estava errada. Eu não deveria ter olhado aquela fatura.

A sensação que tomou conta de mim foi o que costumam chamar de “soco no estômago”. Eu nunca levei um soco no estômago, mas certamente não seria tão dolorida quanto aquilo.

Na fatura, havia vários registros em valores exorbitantes. Mil. Setecentos. Dois mil reais! Como ele ousava me acusar de gastar demais com uma fatura daquelas?

Fiquei tão absorta olhando para aquele pedaço de papel acusatório que nem reparei que o Pedro tinha saído do quarto. Só fui perceber quando a fatura foi arrancada das minhas mãos.

— Ei, o que está fazendo? Está bisbilhotando minhas contas?

— Bisbilhotando? Tem alguma coisa aí para ser bisbilhotada, por acaso?

— Claro que não, Luana!

— Então por que não me mostra?

— Engraçado — ele deu um sorriso irônico. — Até parece que sou eu quem está fazendo alguma coisa errada. Você que invadiu a minha privacidade.

— O que você está escondendo?

— Nada! — Enfiou o papel no bolso da calça. — Para com isso, Luana!

— Não paro, Pedro! Não paro, sabe por quê? Você vive me cobrando, dizendo que eu gasto demais, e acabei de ver que você gastou quase metade do seu salário de uma vez só.

— Eu nunca disse isso.

— Diz toda hora! Com meias palavras, mas diz!

Ele ficou quieto. Sinal que concordava. Continuei:

— O que é que você comprou, de dois mil reais?

— Não é nada. É coisa minha.

A expressão sem graça e a tentativa patética de me enganar machucaram. Eu nunca tinha visto aquela expressão no rosto dele. Naquele momento, eu, que sempre confiei cegamente nele, tive certeza de que estava mentindo para mim pela primeira vez na vida.

Um leve tremor começou a tomar conta do meu queixo.

— Nada, Pedro? — perguntei.

— Não, Luana, porra. Já falei que não é nada! Não vou discutir isso com você agora, você está muito nervosa!

Não me lembro direito se foi o palavrão ou se foi o jeito ríspido como ele se virou de costas e tentou se afastar de mim. Só sei que alguma coisa me fez perder completamente o controle.

Estiquei a mão e arranquei aquele maldito envelope do bolso dele. Ele, claro, se virou e tentou pegá-lo de volta, mas eu estava alucinada. Amassei o papel e o apontei bem perto do seu nariz, quase que desafiando-o a tomá-lo de volta. Eu queria que ele tentasse, só para eu arrancar os dedos dele com minhas unhas ferozes.

Em vez disso, ele paralisou. Aproveitei o momento de covardia para descarregar os milhões de quilos de chumbo que amassavam meu peito. Comecei devagar, mas só no tom de voz. Minha mente estava voando rápido:

— Olha aqui… — Eu lembro que respirava fundo para que o ar desbloqueasse a minha garganta engasgada. — … João Pedro…

Os olhos dele se arregalaram. Eu nunca usava o primeiro nome dele. Ele não gostava. Saboreei o momentinho e continuei:

— Sabe quando você reclama que eu fujo de lavar a louça porque eu acabei de fazer as unhas? É que eu deixei de fazer unha na manicure. Tô fazendo em casa, pra economizar. Você nem percebeu, não é? Mas eu fiz.

— Eu NUNCA mandei você parar de ir na manicure! Eu…

Ignorei.

— E sabe aquele curso de inglês que eu fazia? E que você me convenceu a trocar pelo curso do aplicativo, que era mais barato? Antes, eu conversava com o professor, ele me corrigia o tempo todo, prestava atenção. Agora, pelo aplicativo, cada dia é um mexicano, um italiano, ou um indiano, e essa merda vive travando. Adivinha só? Não estou aprendendo porra nenhuma.

— Mas é só TROCAR! Tem um MONTE de opção aí…

Ele aumentava a voz, o que só me fazia ter vontade de descarregar ainda mais. As lágrimas saíam junto com os gritos:

— Eu estou usando as MESMAS blusinhas no trabalho faz seis meses! Uma delas está até rasgando, mas eu consegui fazer uma costura e tô usando! Eu podia comprar outra, mas não comprei! SABE POR QUÊ, JOÃO PEDRO?

— Caralho, Luana, se acalma! Não precisa ficar…

— PORQUE EU TÔ TENTANDO, PORRA! Pode não parecer muito, mas esses sacrifícios são importantes pra mim! Eu fiquei tão feliz que consegui juntar quinhentos reais em dois meses, e aí você… você…

Desamassei o papel e abri a fatura, pronta para jogar na cara dele o que quer que fosse aquela extravagância.

Eu não devia ter aberto aquela fatura.

Nem na primeira…

…e muito menos na segunda vez.

— Ah, não, João P-pedro, como você f-foi capaz?

As lágrimas tinham me cegado completamente. Minhas mãos tremiam, mas eu já tinha visto o conteúdo daquela fatura.

— Calma, Lu… eu vou explicar.

— P-passagem aérea? Diárias de h-hotel em Gramado? No dia dez, no mês passado? No mesmo fim de semana que VOCÊ DISSE QUE ESTAVA DOENTE, SEU FILHO DA PUTA!

— Luana, se ACALMA! Não dá pra conversar assim!

— ACALMAR? DE QUE JEITO? Você SABE que eu sempre quis ir pra Gramado! E você foi? Com quem?

— Fui com uns amigos.

Ali estava, novamente, a cara da mentira. Na minha cara, uma confissão escancarada da traição que ele tinha cometido. Minha raiva foi substituída por um sentimento amargo. A verdade caiu como uma âncora no meu peito e as palavras saíram quase como um sussurro:

— Você mente mal.

— Não estou…

— É por isso que anda tão distante e mal fala comigo. Me poupe e admita logo que levou outra.

A acusação pareceu acertar um ponto fraco, pois a cara dele fechou instantaneamente.

— Outra, Luana? Sério que você tá me acusando disso?

— Eu reparo, sabia? Eu vejo quando você tenta esconder alguma coisa. Uma conversa de texto que você apaga, às vezes você fala baixinho pra eu não ouvir.

— Você tá me acusando do quê? Fala logo!

— Ah, João Pedro, eu tô cansada, sabe? Você não percebe, mas eu estou MUITO cansada.

— Eu é que tô cansado desse teu ciúme ridículo, Luana. Você fica procurando coisas que não existem. Mexer nas minhas contas foi a gota d'água. VÊ SE CRESCE!

Eu disse algo que nunca pensei que iria dizer. Ou que nunca quis dizer. Mas naquele momento, eu disse, com a boca repleta de amargura:

— Eu já tava duvidando que a gente ia dar certo mesmo. Não sei se quero continuar com você.

Saiu sem querer. Eu não achei que ele fosse concordar, mas o que ouvi de volta me tirou o chão:

— Tirou as palavras da minha boca.

Paralisei, incrédula. Sem piedade, ele completou dando o golpe final:

— Vá embora.

Seu semblante misturava paciência e indiferença, o que fez tudo parecer muito… definitivo! Não era algo dito no calor da briga. Parecia premeditado, planejado.

Antes que eu perdesse o controle das pernas e desabasse aos seus pés, fui até a geladeira, peguei meu vinho — estava mais quente do que eu — e fui embora.

***

O que fazer depois que tudo desaba? Tentar reconstruir, colar os pedacinhos? Correr o risco de ficar com uma coisa toda frágil, que vai quebrar de novo com qualquer batidinha? Ou é melhor jogar fora e começar de novo?

Já fazia uma semana do término e meu único consolo eram minhas amigas tentando me animar. O grupo das meninas tinha virado uma sessão de terapia. Só faltava mudar o nome do grupo para “Rede de Consolo da Lulu”, pois só o que se via eram mensagens de apoio e de incentivo:

Camila: Lu, esquece isso, foi livramento. Ele provavelmente tava te traindo. E não ia dar certo mesmo, vocês caíram na rotina e acabou a paixão.

Mari: Verdade! Deixa ele pra lá. Tem festa hoje lá na Cabana, vem com a gente!

Leti: Reage, garota! A Mari tem razão, vamos sair. Se arruma aí, vai que você encontra outro boy bonito por lá.

Era muito bom sentir esse aconchego, mas a verdade é que, a cada nova mensagem, meu coração saltava. A idiota aqui ficava na esperança de ser uma mensagem do Pedro. Por que eu esperava que ele me mandasse mensagem? O que eu esperava que ele dissesse?

Os convites para sair se acumulavam, mas eu não queria sair. Queria ficar em casa com o pijama mais feio que eu tinha, me martirizando pelo que aconteceu. Só que elas tinham razão, eu não podia ficar daquele jeito. Serviria apenas para me deixar mais triste. Sair faria bem, afinal. Depois de muito hesitar, forcei-me a digitar uma resposta sensata:

Bom... que mal pode fazer? Encontro vocês lá.

Reuni forças e me levantei da cama. Iria sair. A expectativa por fazer algo para me distrair me animou um pouco. Tomei um banho longo, para lavar a cara amassada de tanto chorar, e então abri o armário decidida a colocar aquela roupa nova que eu ainda não tinha usado. Ficar bonita me faria me sentir melhor.

Eu travei na frente do armário aberto. A blusa nova que eu estava guardando… foi Pedro que me deu de presente no dia dos namorados. Eu estava guardando para usar em uma ocasião especial.

Passei os olhos pelo meu quarto. Tinha camisas dele dentro do meu armário. Um fone dele na mesa de canto. As pantufas de pelúcia, de gato e rato que nós usávamos combinando, estavam do lado da porta. Ele estava em toda parte.

Eu despenquei na cama, mas antes que voltasse a chorar, me obriguei a pensar. Eu tinha que fazer alguma coisa. Precisava juntar os cacos, recolher os pedaços e jogar no lixo. As meninas tinham razão. Apagar aquelas lembranças e esquecer.

Eu tinha um plano.

Iria juntar as coisas dele. Colocar numa caixa e fechar. Depois iria até a Cabana, beber uns drinques com minhas amigas, sabendo que, quando voltasse, a casa estaria um pouco mais livre das lembranças doloridas.

Mas os planos quase nunca dão certo.

Eu já tinha conseguido forças para juntar meia dúzia de coisas quando apareceu aquela notificação no celular. Trêmula, peguei.

Mensagem do Pedro:

Pedro: Luana, eu preciso entregar uma coisa para você. Tá em casa agora?

Estremeci, mas me controlei. Aquilo não era motivo para esperança. Ele estava fazendo o mesmo que eu. Estava juntando o lixo e queria me devolver. Digitei a resposta sábia:

Tô. Também tenho que entregar algo para você.

Suspirei, meio aliviada. Era até bom. Podia deixar a caixa com ele e completar logo o ritual do livramento.

Antes que eu pudesse respirar, a campainha tocou.

Com o coração batendo a mil, corri até a porta e a abri. E então eu o vi. Pedro. Parado na minha porta. Ele já estava ali na frente quando me mandou a mensagem.

Não sei quanto tempo ficamos nos encarando sem falar nada. Vinte segundos? Cinco minutos? Uma hora? Não sei. No fim fui eu quem quebrou o silêncio estranho:

— Entra.

Ele obedeceu. Estava sério, quase do mesmo jeito que eu tinha visto-o da última vez, no dia da briga. Antes que eu cedesse à tentação de agarrá-lo, falei:

— É… eu tô juntando umas coisas suas pra devolver. Você espera uns minutinhos?

Ele não respondeu. Nesse momento, reparei que ele não trazia caixa nenhuma.

De repente, ele deu um passo na minha direção, e eu me calei. Tinha algo diferente na expressão dele. Não era culpa, nem raiva. Ele parecia… nervoso. Era algo importante o que ele tinha para me dizer porque eu nunca tinha visto ele daquele jeito. Ele falou:

— Eu preciso te contar o que eram aqueles gastos.

— Não precisa me contar, Pedro. Eu nem quero mais saber…

— Preciso, sim. A conta de hotel foi o pagamento adiantado da reserva. Eu menti para você. Disse que tava doente porque precisei ir até uma agência assinar um contrato. Parece que o lugar é mega requisitado. Eu ia te levar lá nas férias e…

Ele hesitou por alguns segundos e levou a mão no bolso da jaqueta.

— O resto da conta está no meu bolso.

Ele tirou uma caixinha de veludo vermelha. Não podia ser o que eu estava pensando.

— Isso não se parece nada com o que eu tinha planejado, mas não importa, acabei estragando tudo. A verdade, Luana Martins de Oliveira, é que não precisamos estar em Gramado, ou em um lugar chique, para eu fazer o pedido perfeito. Isso aqui já é perfeito, nós dois juntos. O resto não importa.

Eu não consegui emitir uma palavra sequer. Ele se ajoelhou e abriu a caixinha, revelando um belíssimo anel de brilhantes. Com um sorriso imenso no rosto ele tomou minhas mãos e disse:

—Lu, casa comigo?

Dessa vez, minha voz não falhou, pois eu sabia o que responder. Sim, a paixão pode até acabar uma hora, mas quando ela desaparece, sobra espaço para algo muito melhor e mais duradouro.

Com um sorriso ainda maior que o dele e os olhos cheios de lágrimas, respondi:

— Sim!



Fim



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