Pierrô

Autor: Daniel Lucrédio

— Hora de dormir, crianças! — gritou nona Pina de dentro da cozinha, já sabendo que o chororô iria começar.

— Ah, não, vó!

— Só mais um pouquinho!

— Estamos de férias!

— Bem no meio da brincadeira? Sacanagem, vó!

A criançada sabia que não tinha como vencer a disputa, mas tentava mesmo assim esticar a diversão o máximo de tempo possível. Só que Dona Agripina sabia mais. Simplesmente apagou a luz da sala, o que provocou gritinhos de medo e uma correria desenfreada. Sob o riso satisfeito da avó, os netos se acotovelaram para fugir da escuridão.

O caminho para onde fugiam não passava de um corredor comprido e mal iluminado. Uma lâmpada incandescente, coberta de poeira pela metade e pendurada em um par de fios elétricos desencapados, servia apenas para evitar tropeços mais graves. Era quase uma mentira chamar aquilo de luz. Já conhecedoras das deficiências luminosas da casa da avó, as crianças correram para acender as lâmpadas do quarto e do banheiro que ficavam quase no final do corredor.

Feita a luz, a tropa se dividiu. Enquanto alguns pulavam nas camas macias e exercitavam as molas dos colchões, outros tiravam as roupas para vestir seus pijamas, iam até o banheiro para escovar os dentes ou fazer xixi. Uma criança mais suja saiu correndo pelo corredor, sendo agarrada no cotovelo pelas mãos ágeis de nona Pina.

— Já pro banho, você! — ralhou, com a voz infectada pela alegria que ecoava nas paredes descascadas.

Quem não estava gostando muito era o velho piso de madeira. Castigado pelos pezinhos descalços, resmungava sem parar, fruto do cansaço e do reumatismo que o afligia. Não que alguém prestasse atenção. Seu “nhec-nhec” constante era abafado pelos estampidos das pisadas e pelas vozes extasiadas. Naquela noite estava pior do que o normal, pois era verão. Durante o dia, crescia de tamanho, diminuindo os vãos e preenchendo os buracos de cupins, mas quando chegava a noite fria, ele se encolhia todo, tremendo e rangendo sob qualquer pretexto. De madrugada, qualquer peso era suficiente para fazê-lo soltar um gemido, até mesmo o do ar frio descendo para descansar.

O piso era a única companhia de dona Agripina. Ou melhor dizendo, era o único morador daquela casa que se dignava a conversar com ela em voz alta. Viviam em sincronia. Ela fazia seus caminhos, andando devagar e sempre, do quarto para a cozinha, para o banheiro, e para o quarto. E o piso respondia:

— Nhec. Nhec. Nhec.

Havia outras companhias ali para ela, é claro: a lembrança do marido, falecido há mais anos do que podia se lembrar; as formigas e cupins, ratos e morcegos; mas esses eram discretos, quase não falavam nada.

Havia outras coisas também.

Mas não importava, pois não eram reais. A realidade estava ali, diante de seus olhos: seus cinco netos; seu orgulho e razão de viver aqueles dias de sua vida lusco-fusca.

Mesmo com as mãos e as costas doloridas — doíam o tempo todo —, nona Pina fez questão de ajudar os netos. Mário não estava conseguindo encaixar o bracinho na manga teimosa do pijama, mas era só porque estava agitado demais. Ela segurou sua mão macia e molhada de suor e a puxou para fora, despachando-o para a cama em seguida. Melissa estava pulando na cama sem parar. Era mais velha e normalmente não era bagunceira, mas os primos tinham corrompido-a. A avó puxou a coberta e olhou feio para ela, que obedeceu e se deitou.

Depois disso, foi ao banheiro, catando algumas roupas espalhadas pelo caminho. Sempre que se abaixava, sua coluna fazia um “nhec-nhec” muito parecido com o que vinha do chão, mas ela não ligava. O sorriso no rosto era melhor do que os anti-inflamatórios que já não faziam mais efeito. Ajudou a limpar o bumbum do pequeno José Pedro e a enxugar os cabelos da irmã dele, Juliana, a menina que sempre deixava para tomar banho na última hora. Ela nunca secava direito atrás das orelhas. Seu cabelo comprido tinha se embaraçado como sempre, e nona Pina se deliciou desenroscando-os enquanto aproveitava a umidade dos fios para hidratar os dedos ressecados.

Os sons foram diminuindo à medida que as camas foram se enchendo. Aos poucos, bocejos e falas mansas foram dando voz ao piso reclamão, que, sem um pingo de sono, insistia em repetir os passos da avó que terminava de arrumar a bagunça feita pelos netos.

Nhec. Nhec. Nhec. Nhec.

N-nhec.

Um som diferente. Um reclamado reticente. Não era comum o chão falar daquele jeito. Dona Agripina já tinha achado que havia algo estranho. Na verdade, ela já tinha percebido, só não tinha se dado conta do que era.

Ou melhor, ela não tinha feito as contas direito.

Havia apenas quatro crianças nas camas.

Voltou ao corredor e espiou a escuridão no fim do túnel. Era uma silhueta pequena, desenhada em um amarelo cálido contra o negrume da sala atrás de si. A quinta criança a encarava. Mudava o peso do corpo de um pé para o outro, dando pequenos passinhos incompletos, provocando um choro gago no velho assoalho.

N-nhec.

— O que foi, querido? — disse nona Pina, aproximando-se do neto desgarrado.

A criança, cujo nome era Mateus, esticou o braço e apontou para o outro lado do corredor. Um pouco depois das portas do banheiro e dos quartos, havia um pequeno closet. A luz do corredor não chegava plenamente ali, é claro, mas alguns raios fujões conseguiam ricochetear pelas paredes até produzir manchas e borrões difusos que davam dicas sobre seu conteúdo. Caixas e tralhas amontoadas do chão ao teto populavam aquele canto esquecido da casa, testemunha da falta de coragem de sua dona para se livrar das memórias de uma vida inteira.

— Está com medo?

Mateus acenou com a cabeça, derretendo o coração da pobre velha. Ela o abraçou, como só uma avó sabe fazer, transmitindo-lhe o calor e ternura que lhe faltavam para que finalmente pudesse sair do lugar.

Os dois caminharam lado a lado. A criança não desgrudava os olhos do closet escuro. Tinha certeza que dali saltaria um monstro assustador, e queria estar alerta para virar-se de costas e correr para longe o mais rápido possível quando isso acontecesse.

Dona Agripina fazia o oposto, como sempre fazia ao passar por aquelas bandas.

Desviava o olhar.

— Nhec. Nhec. Nhec. Nhec. — dizia o piso.

De repente, um barulho alto e uma figura borrada apareceram no corredor, como uma manifestação inesperada. Era Mário, que surgiu em um pulo com os braços levantados e uma cara assustadoramente engraçada. Gritava e se mexia, crente de que estava parecendo uma criatura tenebrosa, mas parecia-se apenas com uma criança tentando parecer uma criatura tenebrosa. Mateus se assustou mesmo assim e deu alguns passos para trás, escondendo-se atrás do corpo gorducho da avó.

— Mário! — ralhou Agripina, agora sem um pingo de alegria na voz. — Pra que assustar seu primo assim? Vai pra cama, moleque!

Rindo, o moleque foi se deitar, não sem antes se exibir em triunfo para a plateia infantil que agora tinha se afastado um pouco mais do sono.

Virou-se para Mateus, que ainda encarava o canto escuro no finalzinho da casa, e disse:

— Venha escovar os dentes e fazer xixi. Depois eu vou te mostrar o que tem naquele closet. Depois que vir o que tem ali, vai perder o medo.

O menininho arregalou os olhos e se deixou levar. Terminado o ritual da higiene pessoal, nona Pina segurou a mãozinha trêmula e gelada. Ele resistiu um pouco, mas não foi páreo para os músculos adultos que o puxaram até ficar frente a frente com o cômodo escuro. Ela deu dois passos para o lado — Nhec. Nhec. — e pressionou o interruptor. A luz varreu a escuridão para fora do closet abafado, mas não conseguiu remover o medo da cara do menino.

— Está vendo? — disse a avó. — São só coisas velhas.

— O que tem ali embaixo? — Mateus apontou para um retângulo grande apoiado na parede. Tinha a altura de uma pessoa adulta e estava coberto por um pano de veludo roxo.

Agripina sentiu um frio percorrendo-lhe a espinha.

Havia, literalmente, dezenas de caixas e tralhas acumuladas ali, todas elas mais interessantes do que o retângulo coberto pelo pano de veludo roxo. Tinha brinquedos velhos, que mesmo sendo de outra época, certamente atrairiam o olhar de uma criança. Tinha enfeites de Natal, brilhantes, dourados e prateados, que piscavam sob a luz. Havia um patinete e uma prancha de surf, lembranças de uma juventude muito bem vivida ou de brincadeiras futuras no gramado. E havia caixas com os mais diferentes dizeres, incluindo uma onde se lia um irresistível “NÃO MEXER”, em letras garrafais.

Quase tudo era muito mais atrativo, bonito e chamativo do que aquele retângulo chato coberto por um pano velho. No entanto, a jovem criança apontou direto para ele, sem pestanejar. Podia até apostar que tinha visto-o lá de trás, do corredor.

— Aquilo ali é um quadro — respondeu Agripina, tentando não tremer a voz.

— Posso ver?

A avó demorou-se um segundo a mais para responder. Forçando um sorriso que ela tinha certeza que o menino percebeu ser falso, ela disse:

— É claro, meu bem.

Soltou a mão do menino, ciente de que agora seus dedos não precisavam mais de hidratação. Um pé depois do outro, aproximou-se da parede onde o quadro estava apoiado, já esperando pelo familiar “nhec-nhec” do assoalho.

Silêncio total.

Paralisou. Por que o chão não estava acompanhando-a em seu caminhar? Será que a madeira ali não estava tão desgastada quanto no resto da casa? Ou será que ele estava com tanto medo quanto ela de chegar perto daquele maldito quadro?

Agripina suspirou. Não podia fraquejar, não em frente ao seu neto, razão de sua vida e de sua alegria. Não seria justo que seu menininho herdasse aquele medo bobo que a afligiu por tantos anos. Não! Nona Pina iria enfrentá-lo de cabeça erguida e acabar com o poder que se escondia por baixo do pano roxo.

Esticou a mão, resoluta, e sentiu as fibras empoeiradas amassando-se entre seus dedos idosos. Em um puxão rápido, desnudou a moldura velha, revelando a figura pintada na tela amarelada.

Ela olhou para a figura, que olhou para ela de volta. Ambas ficaram paralisadas por um tempo. A pintura, ressecada pelo tempo, era incapaz de se mover devido à ausência de músculos. Dona Agripina, também ressecada pelo tempo, não conseguia fazer seus músculos obedecerem. Foi a voz de Mateus invadindo-lhe os ouvidos que a despertou de seu entorpecimento:

— É bonito — disse o menino. — É um palhaço?

Agripina admirou a figura eternizada no quadro, demorando-se nos detalhes que haviam sido há muito tempo esquecidos. Mostrava o personagem antiquado em corpo inteiro. As roupas, largas, misturavam preto e branco em igual proporção. A maquiagem seguia os mesmos tons. O rosto branco e os detalhes em preto — olhos, sobrancelhas e boca — ressaltavam o caráter antigo da obra de arte. A única cor vinha da lágrima abaixo dos olhos, pintada em um vermelho que ainda estava vivo apesar da idade. A boca era, naturalmente, o que mais chamava a atenção. Um esgar de tristeza, que representava a essência do personagem: um ator sofrido em uma história de um amor nunca declarado. Os olhos, igualmente tristes, encaravam o pintor e, ao mesmo tempo, avó e neto parados em uma sala mal iluminada nos fundos de uma casa velha.

Suspirou, satisfeita com a reação controlada que foi capaz de manter. Virou-se para encarar o neto, que olhava encantado para a figura.

— Não. Não é um palhaço. É o pierrô — explicou.

— Quem é ele, vovó?

— É um personagem de uma história de amor, quer que eu conte para você?

Mateus sorriu, aquecendo o coração angustiado da velha senhora, e acenou com a cabeça. Ela disse, feliz e aliviada:

— Então vamos lá para sua cama.

O menino se virou e foi correndo para o quarto, deixando Agripina sozinha com o terror de sua vida. Mas ela não se intimidou. Virou-se sem medo, pois o neto tinha enchido-a de coragem. Encarou a tinta sem vida e, com um sorriso debochado, recolocou o pano sobre a moldura, respirando aliviada quando o pierrô desapareceu sob o manto roxo.

Afastou-se do quadro, e mais uma vez estranhou a ausência do “nhec-nhec” do chão ali naquele canto da casa.

— Medroso — provocou, rindo.

Apagou a luz e foi até o quarto. O piso, tendo recobrado a coragem, respondeu:

— Nhec. Nhec. Nhec. Nhec.

Sentou-se ao lado da cama de Mateus. Os demais já estavam quietos, então ela contou sua história sussurrando, para não acordá-los. Contou sobre o amor que o Pierrô sentia pela Colombina, e sobre como ele nunca teve coragem de se declarar. Ela acabou se afastando dele e se enamorando pelo Arlequim, e o Pierrô foi eternizado como um símbolo de tristeza.

Aproveitou o momento de ternura e contou ao neto sobre a vez em que foi assistir a uma peça de teatro sobre a história do triângulo amoroso junto com o avô dele. O menininho embarcou na onda e tirou um monte de dúvidas sobre o avô, e ela se deliciou com as memórias compartilhadas.

Depois de um tempo, o menino já não parava de bocejar. Seus olhos quase não ficavam mais abertos, mas ele insistia em conversar:

— Onde você comprou aquele quadro, vó?

— Foi seu avô quem comprou, nem sei onde foi. Faz muito tempo.

— E por que ele tá guardado?

— Eu nunca gostei. Era o vovô que gostava de ficar olhando para ele.

— Por que não gosta?

— Porque é um personagem triste.

— Triste? O Pierrô?

— Sim, é um palhaço triste. Não ouviu a história?

O menino ficou quieto por uns instantes, encucado. Depois perguntou, com o olhar cheio de dúvida:

— Então por que o Pierrô do seu quadro está dando risada?

Agripina não respondeu imediatamente. Sentiu o corpo tremer e o frio voltando a penetrar na nuca.

— H-hora de dormir, querido.

Deu um beijo na bochecha quente do neto e saiu do quarto.

Nhec. Nhec. Nhec. Nhec.

Chegou ao corredor e virou o rosto na direção do closet.

A luz ainda estava apagada, mas era possível ver um pouco lá dentro.

Esperou ver o borrão roxo do pano cobrindo a pintura, mas o que viu quase a derrubou no chão. Viu algumas manchas pretas e brancas, difusas, aglomeradas, formando a silhueta do Pierrô, e um ponto vermelho claramente visível na altura do rosto.

Em voz alta, Agripina falou:

— Ah, não!

Nhec. Nhec. Nhec. Nhec.

O piso a acompanhou, dando-lhe coragem para entrar no cômodo escuro. Acendeu a luz e olhou para o quadro. Pelo jeito, ela não tinha recolocado o pano muito bem, que caiu no chão sozinho, revelando o Pierrô em sua plenitude.

Ele não estava sorrindo.

Tremendo, ela se aproximou em silêncio, puxou o pano de volta e cobriu o quadro, trancafiando a imagem lá dentro novamente. Antes que terminasse, pensou ter visto um último brilho nos olhos do palhaço triste.

— Vem, vamos embora.

Foi até o interruptor, apagou a luz e retirou-se ao seu quarto.

Nhec. Nhec. Nhec.



Fim



Gostou? Não? Sinta-se à vontade para escrever para o autor. Seu contato é muito bem-vindo!
Ir para a página do autor