Salvação

Autor: Daniel Lucrédio

Eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores, ao arrependimento. - Lucas 5:32

Parte I de V

A dor começou a incomodar. O que antes achava serem apenas gases aos poucos se transformava, ganhando força e atacando de forma aguda o centro do peito. Quando uma pontada se desviou para o ombro e desceu até o cotovelo, seu sangue gelou. Definitivamente não eram gases.

Olavo se levantou, meio tonto. Cambaleando, foi até o deque de madeira que ficava ao lado da luxuosa sala de estar. A enorme televisão permanecia ligada, narrando os estranhos acontecimentos daquele dia, e que agora não tinham a menor importância para ele:

— ... e a multidão vai aumentando cada vez mais por aqui! — dizia a repórter, em uma voz bastante perturbada. — Está chegando gente de todos os cantos da cidade, é impressionante ...

A respiração começou a ficar difícil. Parecia que havia uma corda amarrada em torno de seu peito. Cada suspiro era menos eficiente do que o anterior, falhando em sua tarefa de restaurar a vida para dentro do seu corpo.

A dor aumentou.

Olavo caiu de joelhos, em um baque seco. Provavelmente ganhou duas novas escoriações, mas a dor na superfície da pele nem se comparava ao flagelo no interior de seu músculo cardíaco. Já desesperado e com o olhar embaçado, tentou encontrar seu celular. Viu o pequeno retângulo preto na borda da piscina, quase caindo na água. Arrastando-se, chegou até o aparelho. O som do noticiário continuava chegando aos seus ouvidos:

— ... conversei agora há pouco com o delegado de polícia, e a estimativa é que há cerca de duzentas mil pessoas no entorno da praça, fechando as avenidas José ...

Os dedos tremiam, mas ele conseguiu não derrubar o celular dentro d’água ao agarrá-lo. Imediatamente, a câmera reconheceu seu rosto e a tela se acendeu. Bendita tecnologia, pensou. Abriu o teclado e digitou os três números do socorro. Tão logo uma pessoa o atendeu, disse, com a voz saindo apertada entre os dentes:

— Estou tendo um infarto! Venham logo!

— Senhor! Está bem! Qual o endereço?

— Avenida Delfim Moreira número vinte e três... c-cobertura! T-tenho... um heliporto! Mandem um helicóptero!

— Certo, senhor! Vamos ver se conseguimos...

— Mandem a porra de um helicóptero! Eu tenho dinheiro! Pago qualquer merda de quantia! Vai log... Argh!

— Verei o que...

A atendente deve ter ouvido apenas o barulho da água seguido pelo silêncio, pois o aparelho escorregou das mãos fracas e mergulhou nas águas azuis de sua enorme piscina. Quando atingiu o fundo revestido de lindas pedras Hijau, o aparelho já não era mais capaz de se comunicar.

Deitou-se de costas e olhou para o céu. A tarde estava linda, ensolarada. O azul ia se tornando cinza à medida que sua visão escurecia. Flashes brancos e vermelhos pipocavam em seu campo de visão, acompanhando cada nova agulhada que seu corpo recebia. Encolheu-se, abraçando os joelhos. Depois esticou-se, arqueando as costas. Nenhuma posição lhe trazia alívio. Experimentou tossir. Parecia melhorar um pouco a sensação, mas logo a falta de ar tomava conta de si novamente.

Não é possível, pensou, não podia estar morrendo! Era jovem demais, quarenta anos é muito cedo para se ter um infarto.

Sua cabeça caiu para o lado, forçando-o a encarar a sala de estar. Por cima do comprido sofá de couro branco, viu a rica decoração de sua opulenta cobertura. Era repleta de quadros valiosos, vasos adornados com filetes de ouro e um magnífico lustre de cristais, que desmanchava a luz do sol em cores que fascinavam. Ao lado do sofá havia um charuto ainda aceso, descansando sobre um cinzeiro, e um grande copo de vidro que ainda ostentava a maior parte da dose generosa de Highland Park que tinha começado a degustar. O líquido amadeirado distorcia a imagem da tevê logo atrás, onde o âncora do jornal agora aparecia, emoldurado pelo logotipo do canal de notícias e pelas frases que corriam da direita para a esquerda, listando as cotações da bolsa e arriscando a previsão do tempo.

— É realmente impressionante, Talita! E eles realmente acreditam nisso tudo?

— Sim, Carlos! Todo mundo aqui diz a mesma coisa! Repetindo, para o telespectador que está chegando agora... Há uma grande multidão na praça da Fé, no centro da cidade. Todos aqui dizem que estamos testemunhando a volta...

Enquanto sentia a vida lhe esvaindo, Olavo se reprimiu. Tinha o melhor seguro de saúde, no melhor hospital da cidade. No entanto, na hora do desespero não conseguiu se lembrar de abrir o chamado pelo aplicativo da empresa, o que abriria uma linha direta com o atendimento exclusivo a que tinha direito. Só conseguiu digitar os três números do atendimento público. Aquela porcaria. Deve ter umas trezentas pessoas pedindo socorro nesta cidade, terei sorte se conseguirem chegar até o meu corpo antes que comece a apodrecer.

Fechou os olhos.

A garganta se apertou e o ar já não entrava mais. Pelo menos a dor diminuiu um pouco.

Não, pensou, estou morrendo. É isso que está acontecendo.

Não pode ser!

E naquele momento, pela primeira vez em sua vida, Olavo sentiu medo.

Já achou ter sentido medo antes, é claro. Mas agora ele percebeu que nunca foi medo, e sim receio, temor, angústia, ansiedade, ou outra sensação insignificante e de ocorrência rara em sua vida bem afortunada. Não, aquilo é que era medo de verdade. Se sobrevivesse, nunca mais usaria essa palavra para descrever outra sensação que não fosse aquela. A sensação de um homem que está prestes a morrer.

Em algum momento, perdeu a consciência. Antes disso, sentiu sua boca deformada em agonia e lágrimas escorrendo dos olhos e do nariz. Aos poucos, o rosto foi se relaxando e ele sentiu que tudo ficou preto. Era a solidão antes da morte.

Olavo acordou com o ar lhe voltando a encher os pulmões e seu coração voltando a bater sozinho. Mas não eram atos espontâneos, produzidos pelo próprio corpo em recuperação milagrosa. Havia mãos pressionando seus pulmões e coração a intervalos precisamente calculados. Doía nos ossos, mas aliviava a alma. E havia uma boca envolvendo a sua. Era uma boca macia, úmida, soprando-lhe vida em forma de oxigênio. Devolvia-lhe o frescor da atmosfera, ainda que fossem baforadas quentes sopradas por um outro ser humano.

— Ele voltou! Não precisa do desfibrilador!

— Tem certeza? Como está a pressão?

— Normalizando, e a oxigenação também.

— Continue com o procedimento, por via das dúvidas.

Olavo reagiu quando a socorrista aproximou seu rosto do dele mais uma vez, com a boca aberta. Colocou instintivamente sua mão na frente do rosto para afastá-la. Mas ela delicadamente o segurou e sorriu, esticando a boca de um jeito simpático no rosto. Disse:

— Ei, calma. Está tudo bem agora. — Depois virou-se para o colega e falou: — Ele está bem.

— Ai, graças a Deus! — A voz era conhecida. Era a vizinha do primeiro andar, que vivia dando em cima dele. Levantou a cabeça e viu que havia muitas pessoas ali. Alguns eram moradores do prédio, mas outros não conhecia. Bando de urubus.

— Olhe para mim. — A voz suave da socorrista atraiu sua atenção. Ela sorria e apontava uma lanterna para seus olhos. Ele reagiu tentando fechá-los, mas percebeu que ela segurava suas pálpebras abertas com seus dedos delicados. Nada pôde fazer a não ser apreciar seu rosto bem desenhado. Sua pele era morena, em um tom bastante escuro. Seus cabelos encaracolados misturavam tons de preto e dourado, adornando bochechas lisas e olhos grandes, pretos e expressivos, que ficavam sobre um nariz redondo e delicado.

— Qual é o seu nome? — ele surpreendeu-se perguntando.

— Meu nome? — ela respondeu, aumentando ainda mais seu sorriso. — Por que quer saber? Respire fundo. — Ela apalpava seu peito nu com um estetoscópio.

— Você salvou minha vida.

— É meu trabalho, senhor.

— Para você, talvez. Para mim, foi como ser visitado por um anjo!

— Ih, este aqui está mais do que recuperado, já está tentando me cantar! — ela brincou, olhando para o lado, provocando risos no pequeno público que estava ali. — Senhor, vamos ter que levá-lo ao hospital.

— Pode me chamar de Olavo. Olavo...

— Aguiar de Briexville — ela interrompeu. — Sei quem você é, senhor Olavo. É dono de metade da cidade.

— Por favor, apenas Olavo!

— Okay, Olavo. — Ela sorriu sem graça. — Precisamos levá-lo ao hospital.

— Qual hospital?

— Trabalho na Santa Casa, precisamos...

— Nada disso, me traga um telefone. Ligue para o Hospital Saint-Etiénne, diga que...

— Fique quietinho aí! — Ela colocou um dedo em sua boca, calando-o. — Você está sob meus cuidados e vai fazer o que eu mandar.

Olavo sorriu. Não estava acostumado a receber ordens. Na verdade, NUNCA recebia ordens, apenas as distribuía aos montes. Mas ele gostou. E decidiu não brigar com ela, pois já tinha se convencido que queria vê-la de novo, assim que estivesse recuperado.

Acenou com a cabeça e fechou os olhos, finalmente relaxando o corpo. Respirou algumas vezes e apreciou enquanto o ar preenchia seus pulmões, corria pelo seu sangue e chegava até sua pele.

Estava vivo.

Seus ouvidos acompanharam a movimentação ao seu redor. A multidão se dispersava e o silêncio voltava. Apenas o som do noticiário restou:

— ... são trezentas mil pessoas, agora, segundo me falou o delegado de polícia. — Era a repórter mais uma vez descrevendo a cena que testemunhava. — A multidão é realmente impressionante ...

— Você viu isso, Andressa? — perguntou alguém. — Está em todos os canais.

— Não, estou de plantão desde hoje cedo — respondeu a médica que cuidava de Olavo.

Andressa. Esse era o nome dela.

— O que está acontecendo? — ela perguntou.

— Tem um mundaréu de gente na praça da Fé. Dizem que já tem meio milhão de pessoas lá, e mais um monte chegando em procissão pelas ruas da cidade. Está tudo um caos! As ambulâncias estão todas presas no trânsito.

— É, meu amigo — Andressa deu um tapa no ombro de Olavo —, se você não tivesse um heliporto, provavelmente teria batido as botas.

Olavo sorriu. Era muito grato à fortuna que tinha acumulado ao longo dos anos. Boa parte dela tinha sido herdada, mas outra parte era fruto de sua sagacidade e pensamento empreendedor. O pensamento fez seu sorriso aumentar, mas permaneceu com os olhos fechados. Estava sonolento.

— Mas o que esse povo está fazendo? — perguntou Andressa. — O que aconteceu?

O colega fez uma pausa antes de responder:

— Eu não sei se é verdade... é meio maluco. Mas minha irmã está lá e jura que está acontecendo mesmo. Está todo mundo da igreja dela lá, até o bispo veio, parece!

— Me diz o que é que está acontecendo, criatura!

— Ela disse que Jesus voltou para nos julgar!

Parte II de V

O acelerador respondeu ao pisão injetando mais potência no motor. Logo veio a satisfatória sensação de ter seu corpo empurrado para trás e as costas grudadas ao banco de couro. Com a ajuda de outro pisão, agora na embreagem, trocou de marcha em um movimento curto no câmbio preciso. Era a segunda marcha, e o velocímetro marcava oitenta quilômetros por hora. Com um sorriso nos lábios, olhou pelo retrovisor e viu os patéticos SUVs e sedãs ficando para trás. Por trás de seus volantes, havia pequenas manchas que diminuíam rapidamente. Eram rostos de homens e mulheres nutrindo uma irresistível inveja da potência de seu esportivo de luxo.

Olavo voltou seu olhar para a frente. Precisava ficar atento para costurar em meio ao tráfego lento da larga avenida. De vez em quando, precisava reduzir, pois um carro lento tentava ultrapassar outro carro igualmente lento, e ele se via obrigado a grudar seu parachoque na traseira daquela carroça e sinalizar com as fortes luzes LED para que o motorista saísse logo da sua frente. Em uma dessas ultrapassagens, quase perdeu a sua saída. Mas foi até bom, pois assim pôde colocar à prova a excelente aerodinâmica do veículo. Fez uma guinada violenta, obrigando os pneus a cantarem enquanto empurravam o carro para a direita, errando a proteção metálica por poucos centímetros. Ouviu uma buzinada, à qual respondeu produzindo um urro bestial nascido da explosão dos quatro litros de gasolina dentro do enorme motor. Olhou-se no espelho e ajeitou os óculos escuros antes de seguir seu caminho.

Não tinha como evitar, todos os olhares o seguiam. Foi o que aconteceu quando se aproximou da longa fila de táxis e carros de aplicativo que ansiavam por passageiros. Ele sabia que todos olhavam para seu carro, uma Ferrari F8 de tom vermelho rosso que atraía o olhar de qualquer um, mesmo nos ambientes mais bem frequentados. Sim, eles olhavam o carro, mas o que queriam ver era o homem por trás do volante. Alguns certamente diriam, quase desejando ser verdade, que se tratava de um velho caquético, já incapaz de apreciar outros prazeres humanos e que por isso se escondia por trás de um objeto tão caro quanto inútil. Atendendo à curiosidade e sabendo que isso quebraria muitas caras, apertou o botão que recolhia o teto e expôs sua figura jovem e atlética para que todos pudessem apreciá-lo. Passou a mão esquerda no volumoso cabelo, que por sua vez passou a dar pequenos acenos ao sabor do vento enquanto virava o rosto para encarar as pessoas.

Era engraçado analisar a expressão dos homens e mulheres. Os homens quase sempre davam um sorriso agradável. Era inveja, é claro, mas uma inveja saborosa, uma inveja de algo que eles sabiam estar além do alcançável, e que portanto somente poderiam sonhar em nível fantástico. Era difícil explicar com palavras, então preferia uma analogia simples: os homens o olhavam como garotos olhariam para o batman dentro do batmóvel, se estes fossem reais. Simplesmente estavam felizes por estarem ali, perto de algo virtualmente mitológico.

Já as mulheres quase sempre tinham outro olhar. Luxúria, desejo, sedução. E inveja, também. Inveja da mulher que estava destinada a se sentar ali, ao lado dele. Inveja de ter seus cabelos desarrumados pelo vento forte. Inveja de serem invejadas pelas outras mulheres. Era engraçado ler essas expressões.

Em meio a esses olhares já familiares, buscava um rosto. Uma mulher de pele escura, cabelos encaracolados e olhos grandes e expressivos. Pelo horário, ela já deveria estar ali. Mas havia muita gente, era difícil encontrá-la. Reduziu a velocidade e encostou na sarjeta, estacionando em frente ao portão de saída do hospital. Saiu do carro e deu a volta. De maneira deliberadamente displicente, apoiou seu traseiro musculoso na lataria e cruzou os braços sobre o enorme peitoral.

— Que máquina! — disse um pedestre que protegia o rosto embasbacado com um horroroso boné jeans. — Quantos quilômetros por litro ela faz?

— Ei, tire a mão daí, ô! — reclamou, ao ver que o sujeito tinha grudado seus dedos oleosos na pintura impecável.

— Me desculpa! — respondeu o curioso. — E aí?

— E aí o que?

— Quanto ela faz?

— E eu lá sei? Some daqui, rapaz!

— Foi mal, desculpa!

Sem se dar ao trabalho de responder ou gesticular, voltou a olhar para o prédio. Era um típico edifício público, com pinturas descascando e gente reclamando por todo lado. Era grande, o maior hospital da cidade, e naquele final de tarde estava apinhado de gente. Havia pessoas doentes e pessoas saudáveis que pareciam doentes, médicos e enfermeiros. Entravam e saíam aos montes.

Já ficando impaciente, olhou para seu relógio. Ela estava de fato começando a se atrasar. Mas antes que pudesse nutrir qualquer ansiedade, ouviu seu nome sendo chamado:

— Olavo?

Ela estava ali.

Com a boca aberta, como sabia que ela ficaria, Andressa olhava para o veículo enquanto se aproximava. Segurava uma mochila no ombro direito, deixando-a cair no chão assim que chegou perto dele.

— Meu anjo! — ele disse, enquanto estendia a mão em forma de concha para envolver o queixo da moça. Segurou-o levemente e puxou-o enquanto dava um beijo em cada uma de suas bochechas quentes. Ela sorriu, parecendo sem graça em ser manipulada assim, e voltou a olhar para o carro:

— Que carrão é esse?

— Gostou? — ele sorriu, contente por vê-la impressionada.

— É lindo! Mas você é maluco, cara! Como tem coragem de vir com ele aqui no centro?

— Bobagem! — respondeu. — O que poderia acontecer? Quer ver por dentro? — Abriu a porta ao mesmo tempo que pegou a mochila dela do chão e jogou-a nos ombros.

Andressa deu mais um sorriso e, ainda com a boca aberta, aproximou-se do carro. Receosa, ela virou seu quadril e se sentou devagar no banco de couro. Assim que ela colocou as pernas para dentro, Olavo fechou a porta e jogou a mochila no pequeno espaço que havia atrás do banco. Deu a volta e tomou seu lugar atrás do volante. Sorrindo, disse:

— É melhor apertar o cinto!

Ela quase não teve tempo de obedecer, pois Olavo saiu acelerando e fazendo os pneus do carro gritarem alto contra o asfalto. Em poucos segundos, já estavam a quase noventa quilômetros por hora, desviando do tráfego com movimentos bruscos enquanto o carro acelerava ainda mais.

— Você precisa correr tanto? — Andressa parecia nervosa, e Olavo se deliciou com isso.

— Relaxa! Eu estou acostumado a dirigir assim!

Ele a olhava com tesão enquanto ela mantinha suas coxas grossas retesadas e os braços esticados, protegendo-se das forças inerciais que a jogavam de um lado para outro dentro do requintado interior. Seus seios subiam e desciam junto com a respiração alterada. Percebendo a atenção, ela sorriu de volta, mas seu sorriso era amarelo, forçado. Mais uma vez, Olavo achou aquilo engraçado.

— É sério, Olavo, vai mais devagar?

— Não precisa ter medo! — ele respondeu, enquanto reduzia um pouco a velocidade. — Eu passei dois meses em Maranello fazendo um curso de pilotagem, sei muito bem controlar esse brinquedinho aqui. Aliás, esta já é a minha terceira Ferrari.

— Pode ser, mas eu não estou acostumada! Nunca saí da periferia!

— Podemos remediar isso! Que país você quer visitar hoje?

— Hoje? Está maluco? Eu tenho plantão daqui a doze horas, troquei com a minha amiga.

— Tá certo, então a gente faz algo mais simples hoje, tudo bem?

— Certo... Você pode diminuir a velocidade?

Olavo sorriu mais uma vez, debochadamente, e disse:

— Eu já diminuí! A gente está a cento e vinte!

— Olha só, cara... Se não quer que sua terceira Ferrari fique toda vomitada por uma marinheira de primeira viagem, é melhor diminuir um pouco a velocidade.

Olavo soltou uma gargalhada enquanto cedia à súplica de sua amedrontada passageira.

— Está bem, sua medrosa.

— Obrigada. — Seu corpo parecia mais relaxado, mas sua expressão ainda exibia inquietude.

— Engraçado você falar que é marinheira de primeira viagem.

— Por quê?

Ele não respondeu. Apenas sorriu e apontou o queixo para o lado direito. Ela virou o rosto para encarar a enorme baía que se apresentava no horizonte. Estava cheia de barcos e iates luxuosos.

— Ai, não acredito! — Ela levou a mão à boca, cobrindo um sorriso.

— Qual você acha que é o meu? Você tem três chances!

— Três chances? Mas tem muito barco ali, como eu vou conseguir acertar qual é o seu?

Ele levou mais uma vez sua mão em forma de concha ao queixo dela, segurando-o e puxando-a para perto. Deu um beijo em sua testa e disse:

— Você não entendeu, burrinha! Você tem três chances porque tem três iates ancorados ali que pertencem a mim.

Andressa soltou uma gargalhada.

— Três? Eu não acredito!

— Pode acreditar.

— Olavo, você não existe!

— Ah, não? Você vai ver! Hoje à noite eu vou te mostrar que eu existo sim, e sou feito de carne e osso!

— Idiota! — Ela deu um tapa em seu ombro, mas ainda sorria. Virou-se e continuou admirando a paisagem.

Olavo continuou dirigindo, mas de vez em quando olhava para Andressa. Ela estava vidrada nos barcos, certamente tentando adivinhar se o maior de todos era o dele. Se tivesse escolhido o enorme veleiro de três andares que se destacava por suas linhas arrojadas e pela cor azul-escuro, incomum em meio a tantos barcos brancos, estaria certa.

— E burra é a sua mãe! — ela emendou, em um olhar desafiador, antes de voltar seus olhos para o aglomerado de barcos.

Olavo riu e ligou o rádio do carro, querendo se distrair um pouco. Em uma voz enfadonha, um repórter recitava o que parecia ser um giro das últimas notícias do dia:

— ... tarde, querido ouvinte da Metropolitana. Aqui na frente da câmara municipal a multidão é enorme. Mas a grande atração não é nenhum político importante ou um projeto de lei. Estão todos querendo ouvir o pronunciamento da pessoa que se diz o representante de Jesus aqui na nossa cidade. Sim, é isso mesmo, caro ouvinte. Depois das supostas aparições do filho de Deus em várias cidades do mundo, começaram a surgir pessoas que dizem ser seus representantes legais.

— Me desculpe, ô Vilela, mas pode explicar melhor? — disse outro repórter. — Representante legal, como é isso?

— Sim, Conrado, é isso mesmo. Segundo essas pessoas, Jesus está de volta para fazer um julgamento final, mas como são muitas pessoas, ele delegou tarefas para esses representantes. Outras cidades já tiveram visitas parecidas, e eles dizem que vão se aproximar aos poucos, conhecer cada bairro, entender como é a vida nos diferentes cantos...

Olavo desligou o rádio, dizendo:

— Meu Deus, quanta bobagem! Até parece que o filho de Deus ia precisar de burocracia!

Andressa não o olhou. Ainda parecia zangada.

— Me desculpe, meu anjo! — Ele pegou sua mão e a beijou delicadamente. — Eu estava brincando.

Ela deu um sorriso tímido, mas era tão encantador que o derreteu imediatamente.

Depois disso o clima ficou mais leve. Em poucos minutos o carro estava estacionado e o casal caminhava pelo comprido cais em direção à luxuosa embarcação. Foram surpreendidos por um homem que se aproximou trazendo um cabide do qual pendia um saco preto. Ele disse:

— Senhor, seu terno!

— Eu não vou carregar isso! Leve-o até a suíte principal. — Olavo respondeu. — E diga ao camareiro para deixá-lo pronto para a janta.

— Olavo! — ralhou Andressa. — Você não me avisou que teríamos um jantar chique! Eu não trouxe nenhuma roupa apropriada.

— É, eu não avisei. Não achei que você teria uma roupa que chegasse perto do nível de sofisticação do nosso jantar de hoje.

— E por acaso eu vou ter que jantar pelada?

— É uma boa ideia — ele respondeu, com um sorriso provocador.

Ela cruzou os braços e parou, olhando-o desafiadoramente.

— Tá, já entendi, eu não posso mais brincar. É que eu tenho um presentinho para você. Venha, você vai gostar. — Ele estendeu a mão para ela.

Relutante, ela cedeu ao aceno e voltou a caminhar ao lado dele.

Assim que entraram no iate, Olavo não conseguia desgrudar os olhos de Andressa. E ela não conseguia fechar a boca. Ela admirava cada toque de luxo e de extravagância que ele tinha incluído em sua embarcação construída sob medida. Os pisos de porcelanato polido. Revestimentos de granito preto recortados por detalhes de ouro maciço. Corrimãos de aço pontilhados por cristais brancos e verdes. Iluminação indireta. Armários e prateleiras de madeira nobre. E móveis desenhados e importados exclusivamente para cada cômodo.

Tentava adivinhar o que se passava pela cabeça dela. Talvez estivesse tentando calcular o valor daquilo tudo. Se fosse o caso, pensou Olavo, com certeza o erro estaria na casa das dezenas ou centenas de vezes a menos do que o valor real. Ela parou para observar a enorme piscina. Iluminada por dezenas de pontos coloridos, produzia um brilho que competia com a luz das estrelas que já começavam a aparecer no céu limpo. Depois ela foi até o beiral e ficou ali parada, observando o horizonte que, com o crepúsculo, já era incapaz de distinguir o céu do mar.

Olavo não disse nada. Deixou-a curtir aquele momento em silêncio. Ela certamente estava travando uma luta interna, decidindo se iria se deitar com ele ou não. Cederia ao luxo e à tentação logo em seu primeiro encontro? Ou arriscaria fazer jogo duro e afastá-lo? Não que fossem completamente estranhos. Depois do infarto, eles trocaram mensagens por várias semanas, até que ela finalmente cedeu às suas investidas e aceitou se encontrar com ele. Olavo tinha se dedicado bastante a ela, praticamente desistindo de todas as suas outras relações durante aquele tempo, portanto sentia-se bastante confiante. E pelo tom das conversas, ela já tinha cedido. Não havia possibilidade de eles não transarem naquela noite. Mas, como sempre, ele não faria o primeiro movimento. Não precisava. Nunca precisou.

— E aí? O que achou até agora?

— Eu... eu não sei nem explicar. Nunca vi nada tão lindo! Essa baía é linda, eu nunca vim aqui. As montanhas, as estrelas...

— Sim... a baía é linda. — Olavo sentiu uma leve irritação. — E o barco?

— Pff! — Ela deu uma risada debochada. — Eu preciso mesmo elogiar? É maravilhoso.

— Suponho que não.

— Quais são os outros dois barcos que você tem?

— São esses ancorados aqui ao lado. — Apontou para os lados, sem se preocupar em acertar a direção. — Vamos continuar? Quero lhe dar seu presente logo.

— Não imagino o que pode ser. — Ela sorriu e começou a caminhar na sua frente, balançando os quadris em seu andar naturalmente sensual. Sorrindo, Olavo a olhou por uns instantes, inebriado pelas curvas perfeitas que saíam de sua cintura fina, antes de segui-la.

Andaram por compridos corredores e subiram dois lances de luxuosas escadas até chegarem a uma enorme suíte. Sobre a cama King Size, em cima de um magnífico jogo de lençóis de fios egípcios, havia dezenas de caixas. Algumas minúsculas, do tamanho de um maço de baralho, outras pequenas, do tamanho de caixas de sapatos, e outras grandes, que provavelmente guardavam roupas maiores.

— Aquilo que servir em você — disse Olavo — é seu, de presente. Como eu ainda não tenho muita noção do seu corpo, eu comprei de vários tamanhos diferentes.

— O q-que? — perguntou Andressa, levando a mão à boca. — N-não, Olavo, eu não posso aceitar, imagina.

— Meu anjo... — ele a interrompeu, segurando-a pelos ombros. — Só aceite, é de coração. Você mesma disse que queria vestir algo chique. A maioria são vestidos, mas tem uns acessórios também.

Ela parecia nervosa. Aproximando-se da cama, pegou uma caixinha minúscula e a abriu, revelando um reluzente anel prateado. Seus olhos brilharam mais do que o solitário diamante preso no círculo metálico.

— Olavo, eu não posso... — Ela colocou o anel no dedo. Precisou de uma forcinha extra para passar pelo nó mais grosso. — Isso aqui vale mais do que o aluguel de um ano inteiro, Olavo. Dois anos, talvez. — Ela parecia triste.

— Anjo, você me deu algo muito mais valioso do que cem anéis desses. Mais do que meu carro, mais do que esse iate, tudo! Você me devolveu à vida!

— Eu só fiz meu trabalho. Eu tentaria salvar sua vida mesmo que você fosse um mendigo.

— E é por isso... — Olavo pegou mais uma caixinha e dela retirou um finíssimo colar prateado, que tinha não apenas um, mas dezenas de diamantes presos na delicada corrente. Passou a mão ao redor do pescoço dela e prendeu o fecho em sua nuca arrepiada. Continuou: — É por isso que você merece tudo que estou prestes a dar. Você tem um coração de ouro, Andressa.

Ela colocou a mão em seu peito e disse, em um suspiro derretido:

— Obrigada. Pelas palavras gentis. — Sorrindo, olhou mais uma vez para o anel, depois para as caixas, e disse: — E pelos presentes.

— De nada.

— Agora me dá licença, pois eu tenho um montão de coisas para experimentar.

— É claro, meu anjo! Fique à vontade. Eu também vou me arrumar. Nos encontramos no deque superior daqui a uma hora?

— Combinado.

Enquanto se dirigia para fora da suíte, Olavo perguntou:

— Ah, esqueci de perguntar. Você gosta de caviar?

Andressa respondeu com um sorriso já cansado:

— Eu não sei.

— Bem, vamos descobrir daqui a pouco.

Assim que fechou a porta atrás de si, Olavo sorriu internamente, e pensou que definitivamente não precisaria tomar nenhuma iniciativa para transar naquela noite.

Parte III de V

— Como é?

— Senhor, você precisa agendar uma conversa com o representante em um prazo de até sessenta dias.

— Eu escutei da primeira vez, não sou surdo!

— Calma, Olavo! — Andressa disse, cautelosa.

— Que calma? Esse cara não quer nos liberar.

— Senhor, já vamos liberar, eu só preciso que o senhor assine aqui...

— Eu não sou um passageiro comercial, você sabia? Acabamos de chegar em uma aeronave particular.

— Entendo, senhor, mas é que o seu nome apareceu aqui para mim...

— Você sabe com quem está falando, seu merda? Eu conheço seu chefe, sabia?

— Senhor, se não assinar, eu estou instruído a chamar a segurança.

— EXPERIMENTA! SÓ EXPERIMENTA para você ver como te boto na rua em duas ligações!

— Olavo, é só assinar, qual é o problema? — implorou Andressa. — Assina, assim a gente já vai embora daqui.

Respirando fundo e não querendo arrumar problema com ela, Olavo disse, entre dentes:

— E o que esse tal representante quer comigo?

Parecendo imensamente aliviado, o funcionário do aeroporto começou a explicar:

— Segundo a lei federal 394.827, os representantes enviados por Jesus têm direito de exigir reuniões com qualquer pessoa, residente ou não, que esteja em território nacional. E seu nome apareceu como uma solicitação explícita, senhor... Olavo Aguiar de Briexville. — Tinha olhado no seu monitor para conferir o nome. — Consta aqui que o senhor deve ter recebido uma correspondência eletrônica no último dia sete.

— Como pode ver, seu babaca, eu estava viajando com a minha namorada. E como você pode ver pelo meu itinerário que aparece aí na sua telinha, estávamos em minha ilha particular no Caribe. E se você der uma boa olhada para a minha namorada, vai entender que a última coisa que eu queria ficar fazendo era olhar e-mails. Entende isso? Olha pra ela, acha que eu ia deixar isso aqui de lado para ficar olhando e-mails?

Parecendo bastante envergonhado, o rapaz respondeu:

— Sim, senhor, me desculpe, senhor, mas ao entrar no país a lei diz que...

— Me dá logo essa merda! É só assinar?

— Sim. Ao assinar, você confirma ter recebido o comunicado, e se compromete a agendar uma reunião com o representante...

— Tá certo. Assinei. Liberado?

— Sim, senhor, obrigado. Bem-vindos ao Brasil.

Olavo nem olhou para trás. Apenas ouviu Andressa sussurrando algo para o rapaz antes de vir atrás dele.

Não querendo mais perder nenhum minuto naquele lugar, Olavo andava depressa, obrigando Andressa a dar pequenas corridas para acompanhá-lo. Ela estava de cabeça baixa. Assim que chegaram ao balcão do estacionamento, Olavo entregou seu cartão ao atendente e virou-se para ela:

— Acredita nisso? Agora tenho que marcar um encontro com o maluco?

— É.

— Impressionante como tem gente idiota nesse país. Eles acreditam realmente nessa bobagem de volta do Messias. Até aprovaram uma lei!

— Bem...

— Não me diga que acredita nisso também! — Ele tirou os óculos e a encarou com uma expressão de deboche.

— Parece que a coisa é séria. O pastor lá da igreja que a minha mãe frequenta explicou que...

— Sua mãe é uma idiota se acredita no que o pastor diz.

Ela imediatamente fechou a cara e abaixou a cabeça. Percebendo que tinha magoado-a, tentou consertar, fingindo estar interessado:

— Vai lá, anda, me diz o que o tal pastor falou.

— Ele disse que Jesus vai levar as pessoas aos poucos. Assim que os representantes forem conversando com cada um, já vai decidir quem vai e quem fica.

— Vai pra onde?

— Para o céu.

— Sei — ele riu. — E quem fica, fica onde?

— Aqui na Terra.

— Então eu já sei o que vou falar para esse tal representante quando o encontrar. Vou pedir para ficar aqui mesmo, com você. — Ele a abraçou com força e apalpou suas nádegas despudoradamente.

— Para, Olavo, isso é sério! — ela disse, afastando suas mãos.

— É claro que não. — Ele riu. — Se fosse sério, acha que Jesus ia envolver políticos nessa história? Acha que Ele ia precisar de leis, formulários, reuniões? Isso se parece MUITO com o tipo de lorota que acontece lá pelas bandas de Brasília, isso sim.

— É, olhando por esse lado, faz sentido.

— Claro que faz. Vai por mim, eu SEI do que esses caras são capazes. No fundo, é mais uma forma de controle, mais uma forma de poder. Mas comigo, não cola.

O ronco da Ferrari se fez ouvir quando o manobrista se aproximou do local. Olavo escoltou Andressa até o carro, abrindo a porta para ela antes de se dirigir ao lado do motorista e assumir o volante.

— Não vejo a hora de chegar em casa! — disse Andressa.

— Você não vai pra sua casa — respondeu Olavo. — Esqueceu que combinamos de passar o final de semana no meu sítio lá nas montanhas?

— Ah, Olavo, eu estou cansada de viajar! Quero ficar um pouco em casa antes de voltar ao trabalho na semana que vem.

— Nada disso, eu te prometi levá-la para conhecer meu sítio. Você precisa conhecer, é lindo. Já andou a cavalo?

— Não.

— Vai andar. Além disso, eu tenho uma surpresa pra você. — Ele deu um sorriso enigmático.

Sorrindo, ela perguntou:

— Que surpresa?

— Você disse que queria outra tatuagem. Então eu agendei o Deguille para a semana inteira. Pode escolher uma bem grandona!

— Sério? Ai, será que ele faz aquela fada élfica que eu queria?

— Anjo, pelo preço que eu estou pagando, ele faz até a Mona Lisa na sua bunda.

— Ele é ótimo! — ela riu, animada.

— Acho que eu vou fazer uma também, no antebraço. E você, onde vai querer dessa vez? A última foi ao lado do peito, né?

— Foi na penúltima. Dessa vez pensei em fazer na lateral da coxa, quase perto do bumbum.

— Aí, gostei! Vai ficar linda.

— Mas eu tenho que voltar ao trabalho na terça-feira, será que dá tempo?

— Eu dou um jeito nisso, fica sossegada.

— Que jeito, Olavo?

— Você me conhece, sabe que eu sempre consigo o que quero.

— Não vai arrumar confusão pra mim, né?

— Claro que não, anjo, só vou negociar uma troca de turnos, deixa comigo.

***

Olavo tomou mais um gole de uísque. Disse, com a voz bastante alterada:

— Está ficando linda, meu anjo. — Ele riu.

— Eu não consigo ver aí atrás. Tira uma foto pra mim?

— Nada disso, espera ficar pronta. O que você acha, Alberto?

— Tá ficando linda, gata.

Andressa olhou feio para o amigo de Olavo. Ela estava deitada de bruços. Usava apenas a parte de cima do biquíni, já que a parte de baixo atrapalharia o trabalho do tatuador. Uma pequena toalha, que Olavo escolheu por ser uma das menores que havia ali, cobria suas partes íntimas e quase nada mais.

— Sai daqui, Alberto — ela falou, brava.

— Calma, gata, só estou apreciando o trabalho do mestre Deguille — disse Alberto, que também estava bastante embriagado.

Logo chegaram outros dois amigos de Olavo, Richard e Menezes. Eles riam e falavam alto enquanto se aproximavam de Andressa. Olavo deu um tapa na nádega dela, fazendo a minúscula toalha escorregar para o lado. Ela rapidamente puxou-a, cobrindo-se novamente. Olavo falou, entre soluços:

— Olhem só essa obra-prima. Deguille não é um gênio?

Eles riram muito da piada. Andressa também riria, depois, é claro. Quando visse a tatuagem pela primeira vez, ela ficaria brava. Mas depois iria entender e entraria na brincadeira.

— Já estou terminando, seu Olavo — disse o tatuador.

— Ótimo, ótimo! Quem vai depois?

— Eu! — disse Richard. — Quero a Arlequina segurando um bastão de beisebol nas minhas costas.

— Maneiro! — concordou Alberto. — Quer um bastão entrando na bunda, né?

— Otário! — Richard deu um soco em Alberto, que revidou segurando seu pescoço. Eles riam muito enquanto travavam uma luta de mentira.

— Olavo... — era Andressa, em voz baixa.

— O que foi, anjo? — ele disse, aproximando seu rosto do dela. Ela puxou um pouco seu rosto para longe, certamente evitando o cheiro de álcool que repetidamente dizia não gostar. Isso o irritou.

— Pede para eles saírem daqui, por favor? Eu não estou me sentindo à vontade.

— Não. Eu estou pagando, não estou? Então eu escolho quem pode ver a tatuagem sendo feita.

— Mas...

— Terminei — disse o tatuador.

— Quero ver — ela disse. — Me dá um espelho?

— Er... eu preciso ir ao banheiro — respondeu Deguille. — Com licença.

Andressa olhava para os homens ao seu redor, parecendo desconfiada. Eles riam muito.

— Olavo, me dá um espelho?

— Claro, anjo. Toma — ele respondeu, rindo, enquanto lhe entregava um espelho de mão.

Ela esticou o braço, apontando o vidro para mirar a recente porção de tinta adicionada à sua pele. Ficou parada por alguns segundos, com a cara assustada. Em seguida, ela se levantou, sem se importar em vestir a parte de baixo do biquíni, e foi correndo até um espelho de parede inteira que havia mais ao fundo da sala.

— Que delícia! — disse Ângelo, olhando para Olavo e erguendo as sobrancelhas. Este respondeu erguendo seu copo de uísque em direção aos amigos.

— Olavo! Que porra é essa?

— Gostou, anjo?

— O que é isso que você mandou tatuar na minha bunda?

— É a minha logomarca. Relaxa, ficou bonita! Parece o símbolo da Ferrari, mas com as minhas iniciais. Eu uso essa logomarca em tudo, até nos animais aqui do sítio.

— Como é que é? — Olavo nunca tinha visto Andressa tão furiosa. Isso o deixou excitado. — Você disse animais?

Pegando uma toalha, ele se aproximou dela e cobriu-a da cintura para baixo.

— Você fica linda quando está nervosa, sabia?

— Corta essa, cara! Você... você me m-marcou?

— É isso aí, gata! — disse Alberto, rindo. — E você não é a primeira, sabia?

— SAIAM DAQUI! SAIAM, VOCÊS! — Andressa gritou, enlouquecida.

— Calma, gata, já vamos sair! Cuidado aí, Olavão, a tigresa vai unhar hoje à noite. — Os três amigos saíram, rindo muito.

— Chega, Olavo! — Ela chegou perto dele e empurrou-o, fazendo seu uísque cair no chão. — Eu cansei, isso foi longe demais.

— Ei, foi uma brincadeira — respondeu. — Vamos lá, aceite, você vai acabar gostando.

— Brincadeira? Você... você me tratou como uma... — ela não conseguia completar a frase. — E eu não sou a primeira a entrar nessa... brincadeira?

— A logomarca é bonita, parece um carrão, não parece? E ficou igual a minha, olha só como a gente combina! — Ele tirou a toalha dela e abraçou-a por trás, de modo que seus dois corpos esculturais se encaixassem perfeitamente um no outro e pudessem ser apreciados em conjunto no grande espelho. Puxou sua sunga um pouco para baixo, revelando uma tatuagem idêntica na própria nádega.

Andressa ficou se olhando por um tempo. Estava magnífica, apenas com a parte de cima do biquíni. E ela realmente ficava linda quando estava brava. Naquele momento, com o corpo colado ao seu, Olavo a desejou como nunca tinha desejado alguém antes.

— Você é linda, Andressa, sabia disso? — Ele a beijou no pescoço. — Eu confesso que já tive outras mulheres. Mas acredite em mim, nenhuma mexeu tanto comigo quanto você. — Segurou-a pelos quadris e apertou-a forte contra seu corpo.

— Olavo... eu...

— Vamos para o quarto?

Ela resistia. Seu corpo rígido lutava contra ele, tentando se afastar. Olavo continuou beijando-a, acariciando seus cabelos, enquanto puxava-a para perto de si com seus braços fortes. Aos poucos, sentiu-a amolecer. Quando ela tombou a cabeça para trás e ele pôde sentir os cabelos de sua nuca se arrepiarem, soube que tinha domado-a. Pegou-a no colo e levou-a até o quarto.

***

— Eu quero ir embora. — Andressa reclamou.

— Êêêê, de novo com essa história?

— Eu preciso ir trabalhar, já faz cinco dias que estou aqui!

— Mas está tão gostoso aqui. Amanhã a gente vai andar a cavalo de novo, que tal?

— Pra quê? Arrumar briga com o seu vizinho, de novo?

— Ele é um babaca!

— Você arrebentou a cara dele com um soco.

— E daí? Fui ofendido e só me defendi! Não tenho culpa se ele é um fracote de merda.

— Só porque você é todo malhado não significa que tem o direito de sair por aí batendo nas pessoas com quem tem uma divergência.

— Ele me ofendeu, me xingou. Xingou você também, se não se lembra.

— E daí, Olavo? Foi só uma briga idiota por causa de um esbarrão. O sujeito só tropeçou e derramou água em você.

— Você é muito inocente. Não foi sem querer coisa nenhuma, ele faz isso de propósito, aquele canalha.

— Ai, Olavo, tá bom, não me importo. Eu só não quero andar de cavalo. Me leva pra casa, por favor?

— Por que quer tanto ir embora?

— Eu quero ver minha mãe, meu irmão. Quero ver meus amigos, faz tempo que não saio com ninguém a não ser você.

— Sair? Onde? — ele riu. — No boteco do seu Jorge? Tomar cerveja quente e ouvir pagode?

— É, Olavo, no boteco do seu Jorge. Na praça, na praia. — O tom de voz dela começava a aumentar — Eu vou pro INFERNO que é a vida longe de você, tá me ouvindo? Eu sei que aqui é maravilhoso, você é maravilhoso... — Havia muita ironia em sua voz. Ela hesitou um pouco antes de continuar: — Mas eu preciso de um tempo!

Olavo ficou quieto por um tempo, olhando-a furiosamente. Ela parece ter se arrependido de ter falado aquilo, pois começou a balbuciar algo. Ele a interrompeu:

— Tempo? Que história é essa de tempo?

— N-não foi isso que eu quis dizer, calma. — Ela parecia deliciosamente amedrontada.

— Quer se separar de mim? Por que?

— Não quero me separar. Não foi isso que eu disse, Olavo, calma!

— Eu estou calmo. Só estou curioso. Por que você quer ficar longe de mim? Tem algum médico gostosão lá no hospital que te desperta alguma saudade?

— Ai Olavo, para, vai. Eu não disse isso.

Ele ficou quieto. Depois se levantou, deixando-a sozinha na sala. Foi até seu quarto, vestiu a camisa, pegou a carteira e as chaves do carro e retornou, dizendo:

— Eu vou sair. Tenho que ir àquela maldita reunião com aquele maldito representante. A gente continua a conversa depois.

— Não quero continuar conversando. Só promete que me leva embora, por favor?

Sorrindo, ele se aproximou. Levantou a mão e tentou segurar seu queixo, mas ela se afastou. Mesmo tomado pela ira, forçou-se a responder de forma educada:

— Está bem.

Ela pareceu aliviada ao dizer:

— Obrigada, Olavo. De verdade.

Ele assentiu com a cabeça e saiu de casa. Entrou no carro e saiu acelerando rápido pela pequena estrada de pedra que ligava a garagem até o perímetro de sua propriedade. Em poucos minutos chegou no portão, onde parou para conversar com o guarda:

— Volto em algumas horas. Tranque tudo e fique de olho nela. Não deixe-a sair de casa!

— Sim, senhor — respondeu o obediente empregado.

Sem se preocupar em dar mais satisfações, Olavo conduziu o veículo rumo à estrada principal, por onde seguiria até o centro.

Seu sítio ficava longe. Se não fosse a alta potência do seu motor e a sua direção arrojada, demoraria uma hora, ou mais. Mas fez o trajeto em quase trinta minutos. O local da entrevista era a catedral que ficava na praça da Fé. Era a maior igreja do estado, e também era um lugar estranho para uma conversa que tinha tudo para ser exclusivamente política. Assim que passou pelas enormes portas de madeira, foi recebido por um pároco:

— Pois não?

— Eu vim falar com o representante. Sou Olavo de Briexville.

— Ah, sim, senhor Olavo. Estávamos esperando pelo senhor. Siga-me, por favor.

O homem seguiu pelo corredor central até parar próximo ao altar. Apontando com o braço para a direita, guiou o olhar de Olavo até o sujeito que estava sentado em um dos bancos.

Ele parecia uma pessoa comum. Usava um terno salmão simples, com as calças e paletó combinando com a gravata, que pendia reta sobre uma camisa branca lisa. O homem sorriu ao avistá-lo. Ele tinha cabelos grisalhos, não usava barba ou bigode, e tinha olhos castanhos muito claros. Pelas linhas de expressão em seu rosto, devia ter cerca de sessenta anos. Não acreditava que aquele sujeito era realmente um representante de Jesus, e a primeira impressão apenas reforçou sua crença.

Olavo tirou os óculos escuros e passou a mão nos cabelos enquanto se aproximava em um andar forçadamente despreocupado. Não queria demonstrar a irritação que sentia. Sempre acostumado a antever o futuro e a ler corretamente as pessoas, incomodava-lhe o fato de que aquele encontro se dava em território completamente desconhecido. Tivera várias suposições sobre qual seria o assunto, e todas elas envolviam sua fortuna. Disso tinha certeza. Mas ele não fazia ideia do que o esperava, e era isso o que mais o irritava.

O homem o acompanhou com os olhos até que ele se sentasse ao seu lado. Estendendo a mão, disse:

— Meu nome é Luiz. Muito prazer, Olavo.

— O prazer é meu — disse Olavo, enquanto apertava a mão do homem.

— Imagino que saiba por que estou aqui, não?

Olavo decidiu entrar na brincadeira.

— Estou sendo julgado?

O homem sorriu ao responder:

— Todos estamos, o tempo todo, não concorda? Está me julgando agora mesmo.

Sorrindo, retrucou:

— Me pegou nessa. Então eu suponho que vá me fazer algumas perguntas.

— Não, não se trata disso. Nosso Senhor não julga as pessoas assim. É diferente.

— Então do que se trata isso tudo?

— Nós estamos procurando chegar nas pessoas. Queremos ter contato com todo mundo.

“Contato? Ou influência?” — pensou Olavo, imaginando onde ele queria chegar.

— Veja... — continuou Luiz. — Nosso Senhor fez várias aparições ao redor do mundo, como deve estar ciente. E juntou multidões ao seu redor. Mas multidões separam as pessoas de seus verdadeiros “eus”, por mais estranho que isso possa parecer. E neste momento cada ser humano precisa se reconciliar com seu verdadeiro “eu”.

— Verdadeiro “eu”? — perguntou Olavo.

— Sim, aquele pedacinho seu que vem de Deus. Todo ser humano tem essa centelha, essa luz dentro de si, mas alguns a perdem durante a vida. Outros apagam-na em seu caminho desvirtuado.

Aquele papo se parecia muito com as conversas religiosas que tanto abominava.

— Sei. E o que eu tenho a ver com isso? Acha que eu perdi essa minha luz?

— O senhor é muito influente. Tem meios para facilitar o nosso... e com nosso quero dizer o meu... trabalho.

Finalmente, as cartas seriam colocadas na mesa. Era hora de começar a negociar.

— Entendi. Eu ficarei muito feliz em ajudar da melhor forma possível, senhor Luiz.

— Excelente. Eu sabia que podia contar com você, senhor Olavo.

— E por onde quer que eu comece?

— Bem, nós temos arrecadado muitas doações, mas ainda assim o trabalho é muito, muito árduo. Estamos montando abrigos para juntar as ovelhas mais distantes, distribuindo alimentos e roupas, entre outras obras de assistência. Aqueles que ficarem para trás vão precisar de um pouco de conforto durante os terríveis anos de tribulação que precisarão enfrentar.

— Então é verdade isso? Dependendo desse tal julgamento, a gente pode ir para o céu ou ficar aqui na Terra?

— Sim, e como deve imaginar, aqueles que ficarem na Terra serão abandonados por um longo tempo.

— Isso não é crueldade com os filhos de Deus?

— Ah, sim, é muito cruel. A humanidade faz coisas terríveis consigo mesmo. Mas nosso Senhor é infinitamente benevolente. Ele nos enviou justamente para isso, para preparar abrigos, juntar alimentos, e...

— Você já disse isso.

— Me desculpe. Podemos contar com sua ajuda?

“Filho da puta! Está mesmo me pedindo dinheiro, seu corrupto?” — pensou Olavo.

— É claro que sim. Como eu faço? Tem uma conta, ou algo assim?

O homem riu ao responder:

— Não, não... precisamos ser ágeis. Precisa ser dinheiro em espécie, ou pode ser que não dê tempo de comprar tudo.

— Está certo, eu vou providenciar uma generosa quantia, que eu acredito que poderá ajudar muita gente.

— Posso saber quanto, senhor?

— Não sei, o que acha de... cem mil?

— Tem certeza? O senhor não vai precisar de sua riqueza quando...

“Filho da puta!” — pensou novamente.

— Um milhão e não se fala mais nisso?

O homem pareceu contente. Assentiu com a cabeça.

— Eu venho entregar o dinheiro pessoalmente, mas preciso solicitar ao banco. Semana que vem, neste mesmo horário, aqui na frente da igreja?

— Não é necessário, podemos enviar um coletor até sua residência.

— Faço questão de entregar em mãos.

— Como quiser, senhor.

Olavo apertou a mão do sujeito e se levantou. Mas antes que se afastasse muito, ouviu o homem às suas costas:

— Sabe, senhor Olavo...

— Sim?

— Todo mundo tem salvação.

— É? — Sorriu, debochado.

— Sim, mesmo no momento derradeiro, sua luz interior se acenderá. E se estiver realmente arrependido, Ele poderá salvá-lo.

— É bom saber disso.

— O momento derradeiro se aproxima. Tem certeza que só vai doar um milhão?

O sorriso no rosto de Olavo desapareceu. Ele voltou e perguntou ao homem:

— Que mais você quer de mim?

— Quanto mais você quer doar?

— Nem um centavo.

— Então não quero mais nada de você.

Olharam-se por alguns segundos. Olavo achou que o sorriso do homem, que era cordial, ficou esquisito por alguns instantes. Não soube dizer o que era, mas a sensação passou tão rápido quanto tinha chegado. Virou-se de costas e saiu a passos rápidos para fora da igreja. Assim que se sentou atrás do volante do carro, pegou o celular e fez uma ligação:

— Alô? Sou eu. Prepare uma equipe de reportagem para semana que vem. Quero uma cobertura completa do meu ato de generosidade no horário nobre.

Enquanto acelerava o veículo, via as milhares de pessoas que faziam fila para se aproximar do tal “representante”. Satisfeito, pensou que esse seria um dos melhores investimentos que já tinha feito em sua carreira.

Parte IV de V

— Olha lá, eu vou aparecer!

Andressa não respondeu. Estava sentada no sofá, com a cabeça enfiada nos joelhos, naquela que tinha se tornado sua posição preferida nos últimos dias.

Olavo continuou olhando para a televisão, animado. O apresentador começou a sua narração:

— E hoje o importante empresário Olavo de Briexville marcou presença na praça da Fé, ao lado do representante de Jesus, para fazer uma doação de dez milhões de reais para os trabalhos do Messias.

— É mentira! — ele disse, rindo. — Foi só um milhão! Mas foi convincente, não?

Ela não reagiu. A televisão continuou o noticiário:

— Segundo o representante Luiz, essa é a maior doação já feita por um cidadão brasileiro. E a população está muito grata a esse ilustre representante do nosso empresariado. Acompanhe na reportagem.

Uma outra voz se ergueu. Era uma velha senhora de aparência bastante humilde:

— Ah, mas esse homem é muito bom. Deus abençoe o senhor Olavo! Ele ajuda nós, pobres.

Outra voz, agora um homem:

— É, o seu Olavo é muito gente boa sim. Ele “tá” ajudando Jesus, então é gente boa, com certeza.

— Ai, ele é tão generoso, e tão bonito! — A voz agora era de uma jovem, que ria enquanto abanava o rosto. — Por dentro e por fora! — A reportagem terminou com uma gargalhada da moça.

— Você é horrível por dentro!

— O que foi, meu anjo?

— Você é horrível! Por dentro e por fora! — murmurou Andressa.

— Ah, por fora não, vai! — ele riu. — Admite, eu sou acima da média!

— Seu monstro.

Sério, ele segurou o queixo dela com a mão. Ela puxou o rosto para se desvencilhar dele. Olavo então levantou a mão e deu-lhe um forte bofetão na bochecha. Disse:

— Engraçado, até umas semanas atrás eu não era um monstro.

— Você me enganou.

— E você gostou de ser enganada, confesse!

— Você me estuprou.

— Não, eu fiz amor com você.

— Mas eu não queria!

— Desde quando? Desde que você enjoou de mim? Antes, quando você queria, não era estupro. Aí, agora que enjoou, virou estupro? É assim que funciona, Andressa?

— Claro que sim, seu doente. Você é um doente, se não consegue enxergar isso.

Olavo respirou fundo. Ela estava fora de si novamente, não adiantava ficar argumentando. Mas ele sempre se esquecia disso e cedia aos seus joguinhos. Recompondo-se, disse:

— Tá, tanto faz. Vou tomar um banho. Fica aqui, se acalma, e vamos tentar ter um jantar tranquilo, para variar. Eu sinto falta de como éramos no começo, você não?

— Não! Hoje eu vejo como fui idiota em me entregar a você.

— Idiota, não, porque de idiota você não tem nada. É uma vagabunda, isso sim. Só queria o meu dinheiro, as minhas coisas. Mas pode ficar contente, pois vai ter de tudo, viu? Joias, roupas, e a melhor comida... Vai ficar aqui bonitinha e quietinha por um looongo tempo, aproveitando o meu dinheiro.

— Me deixa ir embora. Eu prometo que sumo da sua vida pra sempre.

— Ih, voltou pra mesma conversa mole de novo. Muda o disco, Andressa. Cansei. Tchau.

Deixando-a para trás, subiu as escadas e foi até o segundo andar da casa. Despiu-se em frente ao espelho de parede inteira, para poder apreciar seu corpo. Estava impecável, como sempre. Seus músculos estavam inchados por causa da longa sessão de musculação. Sorriu antes de entrar no banheiro.

Enquanto deixava a água escorrer, pensou ter ouvido algum barulho estranho. Desligou o chuveiro por uns instantes, mas não percebeu nada de diferente. Ouvia apenas o som da televisão no andar de baixo. Voltou a se lavar.

Quando terminou de se enxugar, enrolou a toalha na cintura, pensando que aquele seria um bom momento para uma transa. Mesmo brava, ela não iria negar aquele corpo particularmente inchado. Mas ao descer, encontrou a sala vazia.

— Andressa?

Não teve resposta.

— Onde você está, meu anjo?

Perambulou pela casa em busca da namorada, mas não a encontrou. Verificou cada cômodo duas vezes, antes que seu celular tocasse.

— Alô!

— Chefe. Ela fugiu.

Olavo arremessou o aparelho contra a parede. Subiu, vestiu uma roupa e saiu da casa, indo até o perímetro do sítio. Encontrou os homens enfileirados ao lado do portão. Olhando na cara de cada um, perguntou:

— Quem a ajudou?

Um guarda fez um leve gesto com a cabeça apontando o colega ao lado. Sem pestanejar, Olavo desferiu um soco no nariz do acusado. Mal o rapaz caiu no chão, encheu-o de chutes e pisões no estômago. Virou-se de costas e se afastou rapidamente, deixando o rapaz se contorcendo de dor.

***

— Desgraçada! — murmurou entre dentes.

As mãos tremiam de ódio enquanto lia a carta. Estava assinada por um juiz que ele não conhecia, e suas palavras descreviam o processo que tinha sido aberto pelos advogados de Andressa. Estava tudo ali, em detalhes. Mas eram fatos distorcidos. A carta falava da tatuagem, que ela alegava ter sido uma agressão. Mas foi uma brincadeira. E custou uma fortuna. Falava das relações não consentidas. Mentira. Quantas vezes ela tinha seduzido-o por vontade própria? Dizia que estava com tesão. Mentirosa, safada. E o cárcere privado? Palhaçada. Por acaso aquela casa se parecia com uma prisão? Tinha tudo do bom e do melhor ali, as melhores refeições, academia, piscina... o que mais ela poderia querer?

Controlando seus dedos, pegou o telefone e apontou a câmera para as folhas e tirou várias fotos. Em seguida, encaminhou-as para a pessoa que podia ajudá-lo. Ligou em seguida:

— Alô, ministro? Sou eu.

— Olavo? Bom dia, caro amigo. O que manda?

— Papo reto. Você recebeu uma mensagem minha aí? Confirma, por favor.

— Espera aí, vou ver se chegou... ah, sim! — Fez uma pausa. — Caramba, pesado isso aqui, hein? Já caiu na mídia?

— Ainda não, mas já estou cuidando disso.

— Olhe lá, hein? Seria bom reforçar sua imagem junto à opinião pública, para afastar os abutres da imprensa.

— Eu disse que já estou cuidando disso.

— Como?

— Se quer mesmo saber, dê uma passada nas bancas daqui a duas semanas.

— Uma reportagem encomendada?

— Um pouco mais do que isso. — Olavo sorriu ao responder. — Mas agora eu preciso de outra coisa. Você dá um jeito de substituir o juizinho desse processo aí? Coloca alguém de confiança, pode ser o Roberto ou o Nicolau.

— Não precisa pedir duas vezes. Considere feito!

— Grande ministro! Muito obrigado! Quanto é?

— O de sempre, Olavão. Cenzinho.

— Estou te mandando duzentos!

— Não precisa.

— Trezentos e não se fala mais nisso!

— Você não existe, Olavo! Quer mais alguma coisa?

— Por enquanto, não, ministro. Muito obrigado mais uma vez.

— Eu que agradeço.

***

— Sorria.

Ele obedeceu. Colocou um sorriso falso no rosto enquanto o brilho do flash cegava seus olhos. A maquiadora apareceu ao seu lado e retocou a maquiagem, destacando suas bochechas e removendo o brilho de sua testa.

— Está ótimo, estão ficando todas boas — disse o fotógrafo. — Só mais uma sessão?

— De quantas mais você precisa?

— Você vai sair na capa da revista. Normalmente tiramos umas cem fotos, assim temos várias opções. Relaxe e sorria.

— Que horas chega o Luiz?

— Ele já deve estar chegando. Disse que vinha por volta das nove.

Não demorou muito para que o homem de terno salmão e cabelos grisalhos entrasse no recinto.

— Luiz! Chega mais! — Estendeu-lhe a mão.

— Olá, senhor Olavo — respondeu Luiz, apertando-a de volta.

— Pronto para tirar umas fotos? Vai ser bom para o Messias ver como estamos trabalhando.

— Está querendo fazer fama em cima da sua generosidade, Olavo?

Ainda sorrindo, puxou o homem para perto de si. Sussurrou em seu ouvido:

— Não fode comigo. Eu estou doando mais dois milhões, está lembrado?

— Me desculpe, eu só estou querendo entender qual é o verdadeiro motivo por trás das suas doações.

— Está achando ruim? Eu paro de doar agora mesmo.

— Não, é claro que não é ruim. Está ajudando muito.

— Que bom que estamos nos entendendo.

— Sabe, não precisa doar, se não quiser. Doação é ato de caridade, senhor Olavo.

— Caridade? Em dinheiro vivo?

O sorriso cordial do homem se transformou no mesmo sorriso esquisito que Olavo tinha visto antes. Mas desapareceu quando ele respondeu:

— Como eu disse, assim é mais fácil para os preparativos...

— Poupe-me dessa conversa fiada! — interrompeu-o. — Nós dois sabemos que tipo de transação precisa de dinheiro vivo.

— Está certo, Olavo. Acho que você vai se arrepender disso no futuro. Mas isso é bom, lembra?

— Do que?

— Todo mundo tem salvação. Basta reconhecer sua luz interior e se arrepender.

Impaciente, Olavo retrucou:

— Vamos tirar logo essas malditas fotos.

Os homens se posicionaram lado a lado e sorriram para a câmera. Enquanto os flashes brilhavam, o editor da revista perguntou:

— Qual deve ser a frase da capa?

Olavo pensou um pouco antes de responder em uma voz de locutor de rádio:

— Que tal... De ajudante do Senhor a ajudante do povo: como o empresário de sucesso pretende trilhar a carreira de deputado.

***

O telefone tocou.

Era ela.

Estava ficando cansado da briga que travava com a vagabunda. A cada novo processo, celebrava uma vitória comprada na base do suborno. A cada tentativa dela de difamá-lo nas redes sociais, gastava caminhões de dinheiro com posts pagos para desmoralizá-la e desviar o algoritmo. Até agora tinha escapado ileso, e ele podia continuar assim por mais trinta anos sem sofrer nenhuma diminuição expressiva de sua fortuna. Mas dessa vez o perigo era mais grave. Foi com uma voz falsamente amigável que atendeu:

— Alô!

— Você espalhou vídeos íntimos meus?

— Oi, meu anjo! Sim, você gostou? Tem mais de onde vieram esses. Lembra daquele no banheiro?

— Ai não, Olavo, aquele não!

— No dia você topou e gostou, sua safada. Será que sua mãezinha vai gostar de ver a filhinha dela daquele jeito?

— Seu monstro, não faça isso!

— Espera um pouco... pronto! Enviado!

— Filho da puta! — Ela começou a chorar. — Eu te odeio, Olavo! Seu filho da puta! Você acabou com a minha vida!

— Escuta aqui, ô sua cachorra. Eu ainda nem comecei a arruinar sua vida! Você não tem ideia de quem eu sou, está ouvindo? E eu sei que você está querendo me difamar em uma entrevista no horário nobre, no domingo.

Ela ficou em silêncio. Certamente não esperava que ele soubesse da entrevista. Continuou:

— Eu já convenci o repórter a desistir de tudo. Não vai rolar, queridinha.

Ela continuou sem responder. Somente a sua respiração se fazia ouvir, acelerada. Olavo deu seu golpe final:

— E só para você ficar esperta, eu vou te dar um presentinho.

— O que vai fazer agora, seu monstro?

— Vai descobrir em breve. Considere isso um lembrete para você ficar quietinha, no seu canto! Se continuar tentando abrir o bico, vai ser bem pior, tá entendendo? Tchau, vagabunda!

Desligou o telefone mas manteve-o em sua mão. Seu coração batia acelerado em excitação enquanto acionava outro contato. Não queria que chegasse naquele ponto, mas ela estava perigosamente perto de conseguir prejudicá-lo. Não achou que ela seria capaz de causar muito estrago, isso era certo. Mas só por via das dúvidas, precisava mandar um aviso mais firme.

— Alô, prefeito? Aqui é Olavo.

— Oi, Olavo, como vai essa força? Estou te devendo uma visita pra gente terminar aquele uísque hein?

— Deixa de conversa mole, estou com pressa. Escuta, preciso de um favor. Quem está como diretor da Santa Casa?

— Ah, é o Celso Freitas, lembra dele?

Abrindo um enorme sorriso, respondeu:

— O Celso? Claro que lembro, caramba!

— Do que precisa?

— Preciso que ele demita uma vagabunda! Andressa Morena Silva.

— Morena Silva... anotei. Considere feito!

— Obrigado, prefeito! Pode passar lá em casa mais pro final da semana pra gente tomar aquele uísque.

— Está marcado! Que mais?

— Só isso por hoje! Abraço!

— Abraço!

***

— Sai! Agora quero ver televisão. Vai dar um mergulho na piscina, vai.

— Você não quer se juntar a mim? — perguntou a garota de programa, passando os dedos em seu peito nu.

— Não acabei de falar que eu quero assistir televisão?

A loira olhou-o com desaprovação enquanto se levantava e se afastava em direção ao terraço da cobertura. Olavo trocou de canal até sintonizar no programa de notícias do final de domingo. A reportagem falava de supostos desaparecimentos que começavam a se tornar cada vez mais frequentes:

— Só no Brasil, já são quase duzentas pessoas — dizia o repórter. — São crianças, adolescentes, adultos, homens e mulheres, não há nenhum perfil bem definido para os desaparecimentos. Também não há nenhum tipo de crime envolvido, como pedido de resgate ou ameaça. A única explicação, até agora, são as promessas feitas pelos autoproclamados representantes de Jesus. Eles dizem que o Messias está levando os justos para o seu lado, deixando para trás aqueles que...

— Quanta bobagem! — Olavo disse a si mesmo enquanto se levantava e ia até a cozinha. Serviu-se de uma generosa dose de seu uísque dezoito anos e bebeu tudo de uma única vez. Encheu o copo novamente e acendeu um charuto antes de voltar para a sala. Assim que viu a imagem na televisão, deixou cair o copo, estilhaçando-o e espalhando o valioso líquido pelo tapete.

Não podia acreditar no que estava vendo. Era ele próprio, Olavo, quem aparecia na imagem. Eram fotos antigas, publicadas em suas redes sociais. Aparecia sem camisa, fumando charutos, jogando golfe e velejando. As fotos eram intercaladas com a imagem e voz distorcidas de uma mulher que chorava:

— E ele me batia. Me prendeu por muitos dias na casa dele, não me deixava sair.

— ANDRESSA! SUA VAGABUNDA!

— Me chamou, querido? — ouviu a prostituta chamando-o.

— Fica quieta! — gritou, enquanto aumentava o volume. Na televisão, a mulher continuava a falar em voz chorosa:

— Ele publicou vídeos íntimos meus, todos meus amigos viram. E me fez uma tatuagem forçada.

— Posso ver? — perguntou a repórter.

A mulher se levantou, virou-se de lado e abaixou as calças, exibindo a tatuagem. Era a sua logomarca, com suas iniciais, pintadas de preto contra a pele morena daquela que um dia se disse sua namorada.

— O que é esse desenho? — perguntou a repórter.

— É a marca dele — respondeu Andressa. Sua voz e seu rosto estavam distorcidos, mas ele sabia que era ela. Conhecia aquele corpo. Conhecia aquela bunda. — Ele me marcou, como faz com seus animais na fazenda.

Ela tinha conseguido. Mesmo com todo o dinheirão que ele estava gastando, Andressa tinha conseguido a maldita entrevista. Não era no canal mais popular da rede, mas era em um canal bastante expressivo. Certamente no dia seguinte haveria notas em todas as páginas de notícias do país repercutindo aquela reportagem.

Continuou acompanhando enquanto ela repetia as mesmas acusações que estivera ouvindo nos últimos meses. Não havia nenhuma prova, exceto as palavras dela. Menos mal. Não seria processado novamente. Mas mesmo assim, o estrago à sua imagem seria grande.

Assim que o programa terminou, Olavo pegou o telefone e ligou para todos os contatos que conhecia. Gastou quase cinco milhões de reais, mas arrancou promessas sinceras das principais páginas de notícias e de fofocas de que nada sairia a seu respeito. Ainda restariam poucas notas aqui e ali, mas nada muito relevante.

Mais tranquilo, saiu da sala e foi até o terraço de sua cobertura, parando ao lado da piscina. A loira estava deitada em uma bóia. De olhos fechados, ouvia música com fones de ouvido e não deu bola para ele.

Olhou para o chão, perto da borda. Foi bem ali que eles se conheceram. Ele estava sem ar, e seu coração estava parado. Com um sopro e um beijo, ela o tirou da morte.

Ele estava morrendo e ela salvou sua vida. Repleto de gratidão, Olavo lhe deu tudo o que podia dar. E ela retribuiu com prazer, alegria, carinho e admiração.

E agora tudo o que restou foi o ódio e a ingratidão.

O dedo estava a milímetros de tocar na tela do celular. Teria coragem de fazer isso com ela?

Lembrou-se mais uma vez daquele momento. Lembrou-se da primeira vez que sentiu aquela boca úmida grudada à sua, e do sopro de vida que ela lhe concedeu.

Tocou no ícone do celular. Uma voz sombria atendeu:

— Alô?

— Sou eu.

— O que quer?

— Preciso de um serviço seu. Pago o triplo.

A voz demorou um pouco, mas respondeu:

— Está bem. Quem é o alvo?

— São dois. Não sei o nome. São a mãe e o irmão de uma vagabunda. Vai ter que descobrir quem são.

— Deixa comigo. Qual é o nome da vagabunda?

— Andressa Morena Silva. Ela é daqui mesmo.

— Certo. Como quer que eu faça?

— Tanto faz.

— Certo, e a vagabunda?

Desta vez foi Olavo quem fez uma pausa antes de responder:

— Ela, não. Ela tem que ficar viva.

— Combinado. Dinheiro adiantado, como sempre?

— Como sempre. Te levo amanhã, no local de entrega.

O telefone ficou mudo.

Parte V de V

A vida tinha voltado ao normal. Ou quase.

Havia um resquício de mágoa, afinal ele tinha dedicado meses de sua vida a ela. Foram meses de muitas viagens, de muita diversão e muita paixão. Mas tinha chegado ao fim. Paciência.

Olavo estava feliz. Sua campanha para deputado estava indo muito bem. As pesquisas o colocavam entre os mais votados do estado, o que significava que o seu investimento em promoção pessoal estava dando retorno. Uma das coisas que mais deram certo foi o esforço em ser pintado como vítima. Depois de minar a repercussão daquela maldita reportagem, foi fácil comprar editoriais e posts que plantavam a narrativa de que Andressa tinha sido chutada por Olavo. Segundo essa narrativa, ela quis difamá-lo apenas para tirar proveito próprio e tentar arrancar algum dinheiro em um acordo financeiro. A mentira colou. E o melhor, colocou-o em destaque nos noticiários de forma positiva. Bastou aliar a isso as frequentes aparições ao lado do representante Luiz, conquistadas graças às generosas doações em dinheiro vivo, e a população passou a considerá-lo digno de confiança e uma opção atraente para as eleições que se aproximavam.

Olavo dirigia sua Ferrari pela avenida do aeroporto. Acompanhado de uma ruiva de corpo escultural a quem tinha conhecido algumas semanas atrás, estava a caminho de passar uns dias em Dubai. Fazia tempo que não provava a comida do oriente. E fazia muito tempo desde que tinha traçado uma ruiva. Queria aproveitar essas sensações ao máximo. Queria tanto que absteve-se completamente de comida árabe e de sexo, deixando para prová-las somente em solo árabe.

Como de costume, dirigia seu conversível em alta velocidade. Costurando pelo trânsito, esquivava dos veículos lentos com movimentos ágeis do volante de couro. A ruiva sorria para ele, excitada pelo perigo da direção imprudente e pela expectativa em viajar ao lado do famoso empresário e futuro deputado. Mas ela também parecia nervosa. Ela falou:

— Você não tem medo de dirigir assim?

— Claro que tenho! Mas eu enfrento o medo, com unhas e dentes. — Deu um riso debochado.

— Você é maluco. — Ela esticou o braço e ligou o rádio. Estava passando o noticiário, mas ela logo mudou de estação. Olavo a repreendeu:

— Não, quero ouvir! Volta lá!

— Ah, que chato, quero ouvir música!

— Volta e fica quieta!

Olavo já sabia qual seria o assunto do noticiário, mas queria ouvir mesmo assim.

Os desaparecimentos.

Eram quase diários agora, e chegavam cada vez mais perto de seus círculos. O porteiro de seu prédio. Duas de suas faxineiras mais antigas. A secretária de uma de suas lojas no centro. Ele nunca chegou a acreditar na história sobre a volta de Jesus, mas estava ficando cada vez mais difícil encontrar explicações alternativas. Enquanto o locutor recitava nomes de pessoas desaparecidas, imaginava se seu nome também estaria sendo lido em breve.

— Você acredita nisso? — perguntou à ruiva.

— No que? Nos desaparecimentos?

— É.

— Uma colega da agência desapareceu. Eu acho que ela fugiu, sabe? Ela tinha dito que estava de saco cheio por causa do nosso agente, o Sid. Eu já te falei do Sid? Ele é insuportável...

— Além dessa sua colega — interrompeu-a —, teve mais alguém?

Ela pensou por um instante, depois respondeu:

— Acho que não, por quê?

— Por nada. Droga! — disse, enquanto pisava no freio.

O trânsito estava bloqueado por uma ambulância. Xingando muito, apertou a buzina e pisou no acelerador, produzindo barulhos insuportáveis. Estava tão irritado que nem reparou quando cerca de quinze homens chegaram correndo entre os veículos, vindos do acostamento. A ruiva gritou enquanto era agarrada e retirada do veículo. Antes que pudesse alcançar sua arma embaixo do banco. Olavo foi atingido na cabeça. Seus sentidos se desligaram por um instante e, quando voltaram, apenas puderam perceber o saco sendo colocado em sua cabeça antes de ser golpeado novamente.

***

Acordou com uma sensação gelada no rosto e no corpo. Era água sendo jogada sobre ele.

Abriu os olhos. Estava escuro. Apenas uma fraca luz incandescente iluminava paredes descascadas e sujas. Seu nariz também retornou à vida. Sentiu um cheiro de mofo misturado com urina. Fazia seus olhos arderem. Olhos que viram suas mãos e pés amarrados a uma cadeira velha.

— O-onde estou?

— É dia do julgamento, Olavo! — A voz estava diferente. Fria. Decidida. Mas reconheceu-a imediatamente.

— Andressa.

Levantou o rosto e a viu. O cabelo estava horrível, desarrumado, comprido demais. Seu rosto era uma sombra da beleza que lhe era característica. Tinha manchas escuras sob os olhos. A boca estava seca e os lábios, brancos, ressecados e quebradiços. Em nada se parecia com a boca deliciosa que um dia tinha beijado tão avidamente.

— Euzinha.

— O que aconteceu? Onde estou?

— Você vai ser julgado e condenado. Este é seu tribunal. E eu — aproximou-se dele com um sorriso sombrio — sou a juíza.

— Vagabunda. Eu devia saber que você não iria aprender sua lição. Não sofreu o suficiente? Quer sofrer ainda mais?

— É, eu não aprendo mesmo, não é? — Ela riu. Uma gargalhada alucinada.

— O que fez com a Melissa?

— Aquela gostosa que estava no carro com você?

Olavo não respondeu. Andressa continuou:

— Não se preocupe. Eu a salvei. Salvei de você!

— Tem certeza? Os caras que a raptaram não pareciam ser bonzinhos.

— Ah, nisso você tem razão. Eles não são nada bonzinhos. São bandidos da pior espécie. Mas são conhecidos de um amigo meu e me fizeram um favor. Morar na periferia tem suas vantagens.

— O que eles vão fazer com ela, sua desgraçada?

— Preocupado com os outros, Olavo? Não me parece do seu feitio.

— Ela é inocente!

Andressa deu um soco na cara dele, jogando sangue para cima e fazendo sua visão escurecer.

— Não se atreva a demonstrar bondade agora, seu monstro!

Ele ficou quieto. Andressa retomou seu tom de voz mais calmo.

— Mesmo que eles a estuprassem e a matassem, ainda seria um destino muito melhor do que ficar ao seu lado por um minuto sequer!

— O que vai fazer comigo?

Ela ficou séria. Levou a mão ao bolso traseiro de sua calça, tirou uma arma e apontou-a para o rosto dele.

— Eu salvei sua vida. Fiz por obrigação, mas salvei sua vida. E você ACABOU com a minha. Você destruiu tudo o que eu tinha, TUDO. Meu amor próprio. Meus amigos. Meu emprego. E m-matou minha família!

Olavo começou a rir, em deboche. Andressa continuou.

— Nunca deveria ter salvado sua vida. E agora eu vou corrigir meu erro.

Ele ria ainda mais, provocando-a. Ela perguntou:

— Qual é a graça?

— Anjo! Você ainda não entendeu com quem está se metendo? Se me matar, você também vai morrer. Mas não vai morrer fácil não. Vai ser torturada, bem devagar. Acha que eu te estuprei? Você vai saber o que é estupro de verdade. Vão te quebrar todinha, e vão garantir que você sinta uma dor como nunca imaginou sentir antes. Eu deixei instruções bem detalhadas para garantir tudo isso. Está entendendo, anjo?

Andressa ficou séria por alguns segundos, durante os quais Olavo acreditou que tinha conseguido intimidá-la. Mas ela desembestou a rir. Assim que ela se recuperou, disse:

— Aaaaah, Olavo, Olavo... você é muito inteligente. Mas nada disso importa, sabe? Você tirou tudo de mim. Tudo! Então...

Ela se aproximou dele e colocou a boca bem perto do seu ouvido. Sussurrou, exalando um hálito doce:

— Assim que eu meter uma bala na sua cabeça, eu vou me matar!

Ela se afastou, ainda rindo. Levantou a arma e apontou-a para o rosto dele mais uma vez.

Seus olhos arregalaram e sua respiração falhou. O terror tomou conta de seu espírito, fazendo-o tremer na cadeira. Ali estava uma mulher que não tinha nada mais a perder e, portanto, estava verdadeiramente imune a qualquer tipo de truque em que ele pudesse pensar. E pela segunda vez em sua vida, Olavo sentiu medo. Não era o medo da morte natural, cruel porém inevitável, como da primeira vez. Era medo da morte deliberada. Era medo da morte proposital. Medo da morte por vingança. Uma morte que, até então, julgava ser impossível experimentar graças ao seu enorme poder. Um poder que lhe foi destituído completamente por Andressa.

Fechou os olhos e sentiu lágrimas escorrendo, molhando-lhe o rosto. E naquele momento, quando tudo que tinha conquistado estava sendo tomado, ficou aterrorizado. Não conseguia lembrar de nada que lhe desse conforto em seus últimos instantes na Terra. Tentou pensar em suas posses. Seus carros, barcos e casas. Lembrou-se das viagens que fez, dos lugares que conheceu. Todas essas lembranças eram frias, escuras, embaçadas. Apenas faziam seu coração doer mais em um aperto solitário.

Tentou se lembrar de sua família. Mas ao invés do rosto carinhoso da mãe e do semblante orgulhoso do pai, via apenas mágoa e rancor, resultado de décadas de brigas e desavenças. Tentou se lembrar dos amores que teve, das mulheres que o amaram. Mas isso nunca tinha acontecido de verdade. Ali na frente, apontando uma arma para seus olhos, estava a prova disso.

Não era capaz de resgatar uma mísera lembrança verdadeiramente feliz que lhe abrandasse o terror que sentia. E assim sua alma se desfez no mais amargo arrependimento.

Arrependimento.

Um sentimento que nunca tinha apreciado durante a vida, e que aparecia agora, no derradeiro momento.

E foi justamente nesse momento de puro arrependimento que algo extraordinário aconteceu. Uma luz brilhante se acendeu no recinto. Da luz, saiu a figura de um homem. Usava um terno salmão e exibia um sorriso bondoso no rosto.

— Luiz! — exclamou Olavo.

O homem olhou para ele, e em seguida para Andressa, que parecia tão atônita quanto ele.

— Luiz! — Ele chorava muito enquanto tentava falar. — Agora eu t-te entendo. Eu devia ter doado dez milhões. Cem milhões. Devia ter doado toda a minha fortuna. Eu troquei a minha vida por dinheiro. E agora estou aqui, prestes a morrer, e percebi que não tenho nada! Nada!

O homem se aproximou de Olavo. Ele resplandecia, transbordando uma luz intensa. Trazia um olhar magnífico. Um olhar que, agora percebia, não era de um enganador. Era de bondade. Era de perdão. Aquele olhar trazia o perdão de que tanto precisava.

— Luiz! — disse, em pranto sincero. — Eu estou arrependido, verdadeiramente arrependido por tudo o que eu fiz. Todo mundo tem salvação, não é?

— Sim, Olavo. Todo mundo tem salvação. — Ele inclinou a cabeça para o lado ao falar.

— Até mesmo um cara pecador como eu?

— Jesus disse: “Eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores, ao arrependimento”.

Olavo sorriu aliviado. As lágrimas de arrependimento se transformaram em lágrimas de felicidade enquanto seu peito se enchia de alegria genuína, resultado do perdão. Então aquilo era ser abençoado. Aquilo era ter uma alma limpa. Fechou os olhos e curtiu a merecida remissão que substituiu a angústia de minutos atrás. Disse:

— Andressa, pode me matar. Eu estou pronto para ir embora deste mundo em paz.

— Cale a boca, Olavo!

Era Luiz.

Olavo abriu os olhos. O homem trazia aquele sorriso estranho no rosto novamente. Aquele sorriso trazia uma sensação ruim.

— Isto não é sobre você!

— O q-quê? — perguntou, com a voz trêmula. — O que disse?

O sorriso do homem se esticou ainda mais. Seus olhos ainda pareciam bondosos, mas para Olavo causavam o mais puro terror. A bondade não era destinada a ele.

E pela terceira vez em sua vida, Olavo sentiu medo. Ao entender o significado das palavras de Luiz, sentiu que estava perdendo algo muito mais valioso do que a vida. O medo da morte, tão presente segundos atrás, nem se comparava ao verdadeiro pânico que agora se apossava dele. Em meio ao terror e à tremedeira que tomavam conta de seu corpo e alma, ouviu o homem dizer mais uma vez:

— Esta história nunca foi sobre você!

Neste momento, Luiz se virou e olhou para Andressa.

***

O monstro estava sob a mira de sua arma, que se não fosse pela enorme determinação de suas mãos, estaria tremendo freneticamente. Andressa lutava para manter o cano apontado diretamente para a cabeça de Olavo. Não queria correr o risco de errar o disparo. Já seria ruim o suficiente puxar o gatilho para tirar a vida de alguém. Se tivesse que fazer o gesto uma segunda vez, temia não ter forças, nem físicas, nem mentais, para ser bem sucedida.

— Andressa. — O homem de terno salmão se aproximou dela. — O que quer fazer?

— Q-quem é você?

— Isso importa?

— É um daqueles representantes de Jesus, não é?

Ele se aproximou ainda mais e repetiu:

— Isso importa?

Ela olhou para ele e percebeu que seu olhar era bondoso. Fazia muito tempo desde que alguém tinha olhado-a desse jeito. Lágrimas começaram a escorrer de seus olhos, mas seu semblante continuava sério.

— O que veio fazer aqui?

— Eu só quero conversar um pouquinho com você.

— Veio me julgar?

— Não, não funciona assim.

— Então o que você quer de mim?

— Você tem certeza que quer fazer isso que está prestes a fazer?

— Não penso em outra coisa. Eu já estou planejando isso há muito tempo. Não se passa um segundo sem que eu imagine o momento em que eu meto uma bala na cabeça desse filho da puta! Nada mais importa pra mim.

Além das lágrimas que escorriam, o queixo dela começou a tremer. Ele perguntou:

— Isso é mesmo tão importante para você?

Sua voz fraquejou ao responder:

— S-sim, e-eu...

— Você não precisa fazer isso.

— Se eu matá-lo, vou para o inferno? E se eu poupá-lo, vou para o céu? É isso?

Ele sorriu e respondeu:

— Não funciona assim.

— Pare de me confundir! Então como é que funciona?

— Não existe céu, ou inferno, como você imagina. Existe apenas a caridade, e a ausência dela.

Andressa o encarou por um instante. Depois disse:

— Ele é um monstro, não merece caridade! Ele fez coisas terríveis comigo, e sabe-se Deus com quantas outras pessoas. Se eu poupar a vida dele...

— Andressa! — O homem disse, sério. — Esta história não é sobre ele, nunca foi. É sobre você! Ainda não entendeu isso?

A arma começou a baixar em direção ao chão. Ela perguntou:

— Você é mesmo o representante de Jesus?

— Sim.

— Então ele está mesmo de volta? Vai levar os justos para seu lado?

— Sim.

— E os demais serão... deixados para trás aqui na Terra? — Olhou para Olavo. — Para sofrer pelos pecados que cometeram?

— Ah, eles vão sofrer, mas esse nunca foi o objetivo.

Andressa sentiu um leve sorriso passando por sua boca. Disse:

— E depois? O que vai acontecer com eles? Eles vão sofrer por um tempo e aí vão alcançar... salvação eterna? — Sua voz assumiu um tom fúnebre. — Como se nunca tivessem feito nada de errado? Como se ELE nunca tivesse feito nada? Isso é justo?

— Eu já te falei que a história não é sobre ele — disse o homem.

Andressa não sabia o que dizer. Luiz continuou:

— E se nada disso estivesse acontecendo de verdade? E se Jesus não tivesse voltado? E se Ele ainda demorasse muitos anos para voltar? Você já teria puxado o gatilho?

Andressa não respondeu. O homem continuou:

— E se eu não tivesse chegado aqui a tempo? Você já teria puxado o gatilho?

Ela voltou a olhar para Olavo e disse, sem pestanejar:

— Já!

Luiz não disse nada, apenas sorriu. A luz que emanava dele pareceu se intensificar quando ela falou isso.

— Que diferença isso faz? — ela perguntou.

— Isso faz toda a diferença.

— E-eu não entendo...

— Não precisa entender. Basta se lembrar que esta é a SUA história. Ele — apontou com a cabeça para Olavo — não precisa mais fazer parte dela.

— Você chegou tarde. Eu vou estourar os miolos desse monstro. Depois disso, vou segui-lo até o inferno. São duas almas a menos para você se preocupar.

— Sim, você pode fazer isso.

— O que... — Ela hesitou. — O que vai acontecer com ele quando eu matá-lo?

O homem colocou a mão sobre a dela, e ela sentiu seu toque gentil sobre a pele. Fazia muito tempo desde que tinha sido tocada com gentileza pela última vez. Ele disse:

— A pergunta mais importante é: o que vai acontecer com você se não o matar?

— Eu não conseguiria... Eu não consigo, não posso deixá-lo impune! Droga, ele... ele me quebrou completamente!

Luiz sorriu bondosamente mais uma vez ao responder:

— Andressa... Todo mundo tem salvação.

Ela não disse nada. Sua respiração ficou mais apressada.

— E então, o que vai fazer? Qual será o fim desta história?

Andressa pensou nas palavras de Luiz, mas não conseguia compreendê-las, pois sua mente ardia em lembranças. Lembrou-se do temperamento egoísta de Olavo. Lembrou-se de seu comportamento raivoso e arrogante.

Levantou a arma vagarosamente.

Lembrou-se das brincadeiras idiotas e da tatuagem. A maldita tatuagem que lhe ardia a pele sempre que se lembrava dela.

Enquadrou aquele rosto odioso sob sua mira, que agora tremia erraticamente.

Lembrou-se de ter sido tocada por suas mãos nojentas. Mãos manipuladoras, que a privaram do sustento e respeito próprios.

Colocou o dedo no gatilho.

Suas mãos eram violentas, separaram-na de seus amigos. Assassinaram sua família.

O gatilho começou a se mexer. Andressa não sabia dizer se era ela quem o comandava, ou se a arma tinha vontade própria.

Não.

Não havia salvação para ele.

O estouro seco e o coice em seu braço indicaram que a arma disparou. Andressa ficou boquiaberta, tentando por alguns instantes absorver tudo o que seus sentidos lhe diziam: o som do tiro reverberava em seus ouvidos; o rápido brilho do disparo ainda ardia em suas retinas; o cheiro de pólvora queimada corroía suas narinas; e o suor quente escorria em suas costas.

Olavo foi atingido na testa. Seu rosto ficou sereno, repleto de tranquilidade, indiferente ao filete de sangue que escorreu pela pele oleosa.

Lágrimas começaram a cobrir os olhos de Andressa, tornando-os incapazes de discernir as formas à sua frente. Uma difusão de luz parecia engolir a figura de Olavo, fazendo seu rosto desaparecer aos poucos. Ela enxugou as lágrimas a tempo de ver os últimos resquícios de luz que dançavam onde o corpo de Olavo deveria estar. Em seu lugar, restou apenas uma cadeira vazia.

— O que… o que aconteceu? — ela perguntou.

— Acabou — disse Luiz.

Ela se virou para olhar para ele. Sua pele estava estranhamente clara.

— Onde ele está? Olavo? ONDE ELE ESTÁ?

Luiz suspirou, parecendo muito cansado. Colocou a mão no ombro dela e disse:

— Ele se foi, Andressa. Não era isso que queria?

Dizendo isto, luzes começaram a envolvê-lo, e sua imagem começou a desvanecer.

— Não! Assim, não! Eu… eu vou buscá-lo no inferno! — Levantou a arma até o queixo e apertou o gatilho. Nada aconteceu.

— Nunca se esqueça, Andressa, de que todo mundo tem salvação.

Apertou o gatilho de novo. Nada. Olhou para baixo, para a mão que segurava a arma, e viu que não havia nada ali. A arma tinha desaparecido.

A última coisa que viu antes de Luiz desaparecer completamente foram seus olhos cansados. Ele ainda sorria, mas era um riso triste.

Andressa gritou e começou a correr. Não se lembrava direito como tinha chegado ali, antes. Esbarrou em portas fechadas, virou corredores escuros e tropeçou em escadas que subiam e desciam, até chegar a um beco escuro. Respirou fundo e correu até a rua. Perdeu o fôlego assim que olhou para a cena à sua frente.

A luz do dia estava estranha. O céu estava repleto de nuvens escuras que não obstruíam completamente o brilho avermelhado do sol poente, visível no horizonte. Não estava perto do meio-dia? Não se lembrava de ser tão tarde assim. Atordoada, começou a caminhar.

Ao redor, tudo o que viu foi um cenário desolado. Havia carros abandonados em pleno meio-fio, alguns ainda soltando fumaça de seus escapamentos, latas de lixo reviradas e portas de comércio entreabertas.

Não havia nenhuma pessoa à vista.

***

Andressa continuou caminhando. Caminhou por dias, meses e anos, sem nunca encontrar ninguém. Não sentia fome, sede ou cansaço. Apenas caminhava, buscando sem parar, em meio às intermináveis ruínas, sempre procurando.

Sua companhia eram suas lembranças. No começo, as memórias eram todas dos momentos que viveu com Olavo. Sempre começavam com a primeira impressão que teve dele, morrendo à beira da piscina. Um homem frágil, uma vida precisando ser salva. Ela o salvou e se encantou com ele. Depois foi sugada para dentro de seu turbilhão de maldades. Cada lembrança terrível era marcada pelo ódio, como uma tatuagem na mente, indelével.

Não sentia a dor do esforço, apesar de caminhar incessantemente. As pernas pareciam incansáveis, e os pulmões, capazes de processar uma quantidade infinita de ar sem arder. A única coisa que sentia era uma coceira ali, naquele local maldito, perto das nádegas.

Sua tatuagem coçava o tempo todo, e ela respondia enfiando as unhas com toda a vontade que tinha. Certo dia, experimentou dar uma olhada, e o que viu a aterrorizou. Carne viva e sangue preto tinham apagado a marca do homem odioso. Sua pele, que uma vez tinha sido sedosa e brilhante, mais se parecia com um amontoado disforme de carne, gordura e ossos.

Depois disso, não olhou mais para o local. Em resposta, o local parou de coçar.

No início, ela tinha certeza que Olavo estava ali também, naquele deserto da mente. Ele tinha que estar. Não era justo que ela estivesse ali e ele, não. Era isso o que a movia. A perspectiva de encontrá-lo era seu combustível, a única coisa que nutria seus músculos com energia inesgotável. Depois de um tempo, a vontade se tornou obrigação; a obrigação se tornou hábito; e o hábito se tornou uma procissão lenta, sem começo nem fim.

Andressa se pegava conversando consigo mesmo, às vezes. Não tinha certeza se falava em voz alta ou apenas dentro de sua cabeça. Não fazia diferença, pois não havia ninguém para ouvir.

“Se não há ninguém para ouvir, não existe som.”

Mas ela falava mesmo assim:

— Quem vai cobrir o turno da Salete hoje? Eu não posso, tenho um encontro. Mas chegou um chamado urgente, preciso atender. O trânsito está ruim, não vamos chegar a tempo. Acelera esse carro, Olavo, está muito devagar! Seu barco não navega mais rápido, não? Quem sabe se eu meter uma bala na sua cabeça? Engraçado. Uma bala… na cabeça… vocês me ajudam? Eu sei atirar. Não preciso de ajuda. Quero fazer isso sozinha. Desculpe, mãe, eu não…

— Andressa?

— Q-quem é? — Ela sempre respondia a si mesma em suas conversas, mas não usava seu nome.

— O que está procurando?

— E-eu não consigo te ver.

— Estou aqui do seu lado.

— Onde?

— O que procura, Andressa?

— Eu não sei. Eu me perdi, acho.

— Quem está procurando, Andressa?

— Ninguém, eu só… eu só queria…

— Posso te levar até ele, se quiser.

— Ele?

— Sim, ele. Quer vê-lo?

Andressa fez silêncio e pensou em qual resposta daria. Não sabia direito, mas sentia que aquela resposta era muito importante.

— Ver quem? Quem é ele?

Não ouviu resposta. Andressa olhou para cima. O céu estava azul. Olhou ao redor. Não havia mais deserto. Estava em uma cobertura riquíssima. O chão coberto de porcelanato fino rodeava uma enorme piscina de águas cristalinas. Ao lado da piscina, um homem agonizava. Estava respirando com dificuldade. Seu rosto bonito estava pálido, e seus olhos vidrados já estavam quase vazios. Seu olhar suplicava:

— Salve-me!

Andressa não tinha seus equipamentos de primeiros socorros, então ela se ajoelhou, abriu a boca e cobriu a dele com seus lábios. Soprou uma, duas, três vezes, depois massageou seu coração. Repetiu os movimentos até que o homem reagiu. Ele piscou os olhos, respirou algumas vezes e a olhou profundamente.

— Você me salvou! Como se chama?

— Andressa.

— Você é um anjo?

— Não — ela riu. — Só fiz minha obrigação.

— Muito obrigado!

— E você, como se chama?

— Olavo.



Fim



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