3h15 A.M.

Autor: Daniel Lucrédio

O dia estava chegando ao fim. O Sol já estava escondido, mas o céu azul-escuro ainda ostentava tons alaranjados e alguns raios de luz que atingiam o topo das poucas nuvens que insistiam em manchar de branco o que havia sido um azul e quente dia de verão.

A viagem acabou se revelando mais longa e cansativa do que o planejado. No papel, eram apenas cerca de duzentos e cinquenta quilômetros, que em condições normais eram vencidos em pouco mais de duas horas em um carro de passeio comum. Mas a grande quantidade de lentos caminhões que entupiam a pista única e sinuosa não deixava que atingissem uma confortável velocidade de cruzeiro. Além disso, era uma sexta-feira que antecedia um feriado prolongado, o que significava que havia ainda mais carros disputando espaço. Em alguns pontos, era preciso engatar a primeira marcha, extinguindo o vento que oferecia algum frescor aos seis passageiros que sofriam com o calor dentro da velha SUV laranja.

Cláudia estava sentada no banco do passageiro. Acompanhava inquieta as incessantes ultrapassagens, muitas delas em trechos proibidos, feitas por seu marido Bernardo. Sentia um estresse constante que era compartilhado por todos. De vez em quando dava pequenos saltos a cada sinal de perigo:

— Ai! Tem um outro ali querendo ultrapassar, Bernardo!

— Estou vendo, estou vendo! Deixa ele esperar um pouco! — respondeu o motorista, impaciente.

— Quanto tempo ainda falta, gente? — era Mariana, espremida no banco de trás ao lado de Esteves, seu marido, e o casal João Carlos e Lúcia, que completava o grupo de viajantes.

— Já estamos há quatro horas na estrada, então não deve faltar muito! — respondeu Bernardo.

— Segundo o navegador, deve ter uma saída mais ou menos daqui a cinco quilômetros... se bem que o sinal de Internet está bem fraco, podemos já ter passado sem perceber! — disse Lúcia, esticando seu braço com o telefone para cima a fim de tentar obter um sinal melhor.

— Não vejo a hora! — disse Esteves. — Com esse calor vou querer me jogar na piscina logo que chegarmos!

— Calma, ô apressado! — disse Mariana. — Nem sabemos se vai estar limpa!

Cláudia virou-se e disse: — Vai sim! Segundo o anúncio do aluguel, o caseiro mantém a piscina e a casa sempre limpas!

— É disso que estou falando! Mordomia hein? Esse feriado vai ser "top"! Piscina e churrasco o tempo todo!

— Nem vem, Esteves seu folgado! — reclamou Mariana. — Primeiro você vai ajudar a gente a descarregar as malas!

— E alguém vai ter que fazer o churrasco, né? — completou Bernardo.

— Mas o caseiro não pode fazer isso?

— Ele é caseiro, e não mordomo! — brincou João Carlos.

— Ah! Mas ele não tem um ajudante, ou algo assim?

— Pelo que entendi, não! — explicou Cláudia. — O proprietário só mencionou o caseiro mesmo. Anísio, se bem me lembro, é o nome dele.

— Mas pelas fotos, o lugar é enorme! — disse Mariana. — Não dá pra uma pessoa só tomar conta de tudo!

— Êêêê não estou gostando! — reclamou Esteves. — Se o lugar estiver sujo vamos pedir um desconto, hein? Não vou pagar o aluguel de uma casa pra depois ter que ficar fazendo faxina o feriado inteiro!

— Calma, gente! O lugar foi bem recomendado, uma amiga minha lá do jornal já foi e adorou! — justificou Cláudia. — Vai estar tudo em ordem!

— Ali! — disse Lúcia, apontando para uma estrada de terra que abria caminho em meio a um denso aglomerado de árvores. — É a nossa saída. Temos que virar à esquerda, Bernardo.

Ele conduziu vagarosamente o carro até o acostamento do lado direito da pista, onde ficou esperando uma brecha para poder cruzar a rodovia e acessar a saída do outro lado. Os faróis dos carros trafegando nos dois sentidos, que no crepúsculo criavam um ofuscante contraste, atrapalhavam a visão de Bernardo, que precisou ensaiar algumas vezes antes de conseguir arrancar rumo à tranquilidade da estrada de terra.

— Ufa! — relaxou Cláudia. — Que alívio sair desse trânsito!

— Acelera aí então, Bernardão! — disse Esteves. — Manda um ventinho pra gente, pois estamos derretendo!

— E coloquem um som aí! — emendou Mariana.

— É pra já! — sorriu Bernardo, olhando para Cláudia, que já apertava os botões no aparelho de som do carro para fazer tocar "Start me up", dos Rolling Stones.

— Uhuuul! — gritaram os passageiros do banco de trás, embalando o carro que agora viajava livre e para longe da rodovia movimentada.

***

Eram quase oito horas da noite. O carro deslizava entre as árvores que invadiam a estrada de terra. A poeira levantada pelos pneus formava uma densa fumaça alaranjada. O silêncio absoluto dentro do carro era quebrado apenas pelo ruído das velhas molas do amortecedor da SUV. Estavam todos impacientes e mal-humorados devido à demora e aos constantes solavancos. O cansaço já havia vencido há muito tempo.

Enfim chegaram a um beco sem saída, ou pelo menos assim lhes pareceu à primeira vista. O desânimo tomou conta por alguns minutos, até que João Carlos notou o pequeno portão de ferro escondido entre as folhagens. Após verificarem novamente as instruções que tinham recebido do proprietário, encontraram uma chave escondida embaixo de uma lata e abriram os cadeados que pendiam das grossas correntes, abrindo espaço para seguir adiante.

Passado o portão, a estrada se tornava ainda mais estreita. Os galhos das árvores laterais agora estavam tão próximos que arranhavam os pneus e a lataria do carro. Mariana quebrou o silêncio:

— Gente, tá certo isso? Eu achava que era um lugar mais luxuoso!

— E iluminado! — emendou Lúcia.

— Nós estamos no caminho certo! — respondeu Cláudia. — Talvez mais adiante tenha iluminação.

De repente, ouviram um estouro.

— Ai, não! — disse Bernardo.

— O que foi? — perguntou Cláudia.

— Pneu! Acho que estourou!

— Ah não, logo agora? — choramingou Lúcia.

— Vamos em frente assim mesmo, Bernardo! — disse Esteves. — Não devemos estar longe.

— Não! Se eu continuar rodando assim pode ser que não tenha mais conserto, e aí a gente se ferra de vez!

— Então o que vamos fazer? — perguntou Cláudia.

— Vamos a pé, ué? — respondeu.

— Com as malas todas? E a comida que trouxemos?

— Fazer o quê?

— Calma! Olhem! — João Carlos apontou para a estrada à frente.

Uma luz se aproximava em meio à escuridão. Depois de alguns momentos perceberam que era uma caminhonete. Ela foi se aproximando até parar frente a frente com eles. Uma figura desceu do carro e se aproximou vagarosamente, sua silhueta escura interrompendo a luz dos ofuscantes faróis. Todos acompanharam apreensivos até que, no topo da figura, apareceu um rosto sorridente:

— Boa noite! Tudo bem aí?

Cláudia sentiu algo. Era como se o rosto não lhe fosse completamente estranho. Não se lembrava dele, mas a breve sensação lhe chamou a atenção.

— Boa noite! — ela respondeu — Você é o Anísio?

— Sim, muito prazer! — balançou a cabeça para o lado — Ouvi o barulho. Pneu?

— É! Já devia estar meio gasto, e não aguentou o caminho cheio de pedras — respondeu Bernardo.

— Que azar, mas não se preocupem! Amanhã eu chamo alguém para vir dar um jeito. Querem uma carona na caçamba para chegar até a casa ou preferem caminhar na noite fresca? — disse Anísio, com um sorriso.

— Carona! Carona! — gritou Mariana, do banco de trás.

Anísio sorriu mais uma vez: — Tá certo, então podem subir!

Bernardo desligou o carro e todos desceram. Já estavam começando a retirar as pesadas malas da traseira da SUV, quando Anísio os interrompeu:

— Podem deixar as malas aí, não vai caber tudo na caçamba! Fiquem tranquilos que eu volto depois e carrego para vocês!

— Imagina, senhor Anísio! — disse Mariana — É muito pesado, a gente ajuda.

— Insisto! — respondeu — Ou melhor, meu patrão insiste! É meu serviço, dona!

Mariana ia retrucar, mas Esteves deu-lhe um leve cutucão com o cotovelo e sussurrou: — Eu disse, não disse? Mordomia!

— Quieto, Esteves! — ralhou ela.

Bernardo acompanhou Anísio na cabine, enquanto os demais subiram na caçamba. A viagem não durou nem três minutos, pois estavam realmente muito próximos da casa. Logo estavam em um caminho de pedras, e a visão lhes revelou que a propriedade era de fato luxuosa, bem diferente do que sugeria a rústica estrada que chegava até ali.

— Uau! — disse Cláudia.

O caminho em que estavam era rodeado por um impecável gramado verde, amplamente iluminado por dezenas de postes com luzes amareladas. Subia de maneira levemente sinuosa. À medida que subiam, podiam ver mais partes do terreno. Avistaram, além do gramado, muitas árvores frutíferas. Uma aconchegante pista de exercícios, comprida e cheia de bancos de madeira para descanso. Uma academia iluminada por luzes coloridas, em frente a uma quadra de tênis. Viram também uma grande área para churrasco, que terminava em uma plataforma natural formada por pedras e uma área que servia de berço a uma enorme árvore.

Continuaram o passeio. Avistaram uma casa, que era bonita, mas não era a mesma das fotos do anúncio de aluguel, portanto deveria ser a casa do caseiro. Havia também uma capela que parecia ter sido entalhada em uma enorme pedra cinza. Em seguida fizeram uma curva que chegava até a parte mais alta do terreno, onde finalmente puderam avistar a casa onde passariam o feriado.

Se a propriedade era luxuosa, a casa não deixava por menos. Não era uma mansão, nem demasiadamente ornamentada com detalhes extravagantes. Tinha uma simplicidade imponente. A entrada era ampla, com paredes revestidas de pedras e uma enorme porta de madeira. Havia muita iluminação ali, deixando o ambiente alegre e convidativo.

Anísio estacionou a caminhonete, e todos desceram. Olhavam para todos os lados, boquiabertos, admirando a bela arquitetura. O caseiro então se dirigiu à porta e a abriu, e todos ficaram maravilhados com o interior. Havia muito espaço, e muita iluminação. Móveis modernos se fundiam à arquitetura rústica com harmonia. Na cozinha, viram eletrodomésticos de última geração. Havia também uma enorme sala de jogos, e cinco quartos muito confortáveis. Cada casal escolheu um quarto e logo voltaram para fora da casa, conversando animados.

Em seguida, Anísio lhes mostrou a área da churrasqueira. Ajudou a acender o fogo e voltou com a caminhonete para buscar a bagagem que tinha ficado na SUV. Recusou mais uma vez a ajuda oferecida por Mariana, enquanto carregava cada mala para seu respectivo quarto, e as caixas com alimentos até a cozinha. Assim que estava tudo descarregado, Esteves foi até a cozinha e voltou sorridente, trazendo duas garrafas em suas mãos:

— Quem quer uma cerveja gelada?

Logo estavam todos bebendo e preparando o churrasco. Convidaram Anísio, que recusou, mas ainda ficou ali conversando por um tempo. Ele era muito solícito e sorridente, conquistando a simpatia de todos. Depois de um tempo, apareceu um enorme cachorro, correndo entre as pernas das pessoas, balançando o rabo e lambendo as mãos de todos, menos de Esteves, que ficou retraído. Mariana explicou:

— Desculpe, ele não gosta de cachorros!

— Não mesmo! Ainda mais um desse tamanho! — disse Esteves.

Anísio o apresentou como Otto, e o simpático cachorro da propriedade ficou ali com eles até acompanhar o caseiro de volta para sua casa, para alívio de Esteves.

Todos comentaram que Anísio era muito simpático. Cláudia concordou, e depois de conversar com ele por vários minutos, tinha certeza de que não o conhecia. Mas não conseguia esquecer aquela sensação estranha que teve ao vê-lo pela primeira vez.

***

Cláudia acordou assustada, no meio da noite. O silêncio era profundo, exceto pelo leve ronco de Bernardo, que dormia profundamente ao seu lado. Olhou para o celular, que marcava três horas e quinze minutos da manhã. Suspirou e levantou-se, indo até a cozinha para tomar um copo de água.

Ela tinha demorado para dormir. Mesmo exausta e um pouco bêbada, estranhou um pouco o lugar. Ela já estava acostumada, pois sempre tinha dificuldade para dormir em lugares diferentes. Mas sabia que em breve adormeceria de novo, bastaria esticar um pouco as pernas.

Foi até a sala e ficou observando a paisagem noturna através da grande porta de vidro. O céu estava escuro, de modo que havia muitas estrelas visíveis. Ficou ali admirando seu brilho, até que algo lhe chamou a atenção na área próxima à churrasqueira. Embaixo da enorme árvore que havia ali, percebeu um movimento de folhas. Por um instante, achou que poderia ser o vento balançando algum arbusto, mas o ar estava completamente parado. Isso lhe causou estranheza, pois, apesar de ser uma noite quente de verão e sem vento, sentia frio.

Apertou os braços ao redor do corpo e espremeu os olhos para ver melhor. As folhas se abriram e delas saiu uma forma escura. Pensou que poderia ser Otto, pois a forma estava agachada e parecia buscar restos de comida no chão. Mas depois de um tempo, a forma se levantou e Cláudia percebeu que era uma mulher. Ela era muito magra, e parecia assustada. Vasculhou toda a área, e Cláudia percebeu que definitivamente estava em busca de comida, pois ela comeu todos os restos de pão e carne que tinham deixado na churrasqueira.

Assustada, Cláudia foi correndo até a cozinha e pegou o telefone. Digitou o número que estava anotado ao lado, e logo foi recebida pela sonolenta voz de Anísio:

— Alô?

— Seu Anísio? Aqui é a Cláudia, da casa! Tem uma pessoa na churrasqueira, é uma mulher! Ela está pegando comida!

O telefone ficou em silêncio por um instante. Cláudia ofegava. Por que ele não dizia nada?

— Anísio? Você me ouviu? Tem um invasor aqui!

— Calma, dona Cláudia! — ele enfim respondeu. — Deve ser alguma indigente.

— Não é melhor chamar a polícia?

— Não! — respondeu Anísio, rispidamente. — Não precisa, eu vou lá espantar essa mulher! Acenda a luz lá de fora, ela vai fugir, pode ver.

Desligou o telefone. Cláudia foi correndo até a porta, procurou o interruptor ao lado e experimentou vários botões, até que a área da churrasqueira se acendeu. Ela então pode ver a mulher mais claramente. Viu que tinha cabelos negros, muito desgrenhados. Estava suja, tanto a pele como as roupas. E os braços e pernas estavam muito machucados. Não conseguiu ver seu rosto. Parecia mesmo uma indigente.

Assim que a luz se acendeu, a mulher saiu correndo e desapareceu na escuridão. Em pouco tempo, Anísio apareceu, segurando uma lanterna. Otto corria e latia ao seu lado. Ele acenou para Cláudia, pedindo para aguardar. Entrou em meio às folhagens, e voltou alguns minutos depois, indo até a casa para conversar com ela.

— Me desculpe, dona Cláudia. Eu sei quem é essa mulher. Ela mora nas redondezas, não bate muito bem da cabeça, e de vez em quando foge de casa.

— Mas você conseguiu encontrá-la? — perguntou Cláudia.

Anísio coçou a cabeça, e Cláudia percebeu certa preocupação em seu olhar:

— Er... não, mas ela deve ter fugido pela trilha que vai até o riacho. Não tem cerca lá embaixo. Mas pode ficar tranquila, ela é inofensiva! Ela não vai voltar mais aqui, pode confiar! Mas só por precaução, deixe a luzes de fora acesas esta noite, tudo bem?

Cláudia olhou para ele, pensativa, e respondeu:

— Tudo bem.

— Boa noite, dona Cláudia! — ele se despediu — Venha, Otto!

Otto estava excitado, farejando loucamente todos os cantos, balançando o rabo. Ao ver que o cachorro não obedecia, Anísio deu um ríspido tapa em seu traseiro e repetiu o comando. O cachorro emitiu um choro agudo, abaixou a cabeça e saiu trotando atrás do caseiro.

Cláudia ficou observando enquanto Anísio se afastava. Quando ele sumiu de vista, ela foi até o quarto, e pegou seu celular. Foi até a cozinha, pegou uma xícara de café e sentou-se à mesa. Todos continuavam dormindo, sem tomar conhecimento do que tinha acontecido. Ela não conseguiria dormir de novo. Não por causa da estranha invasão e daquela estranha mulher. Mas porque, ao ver o rosto de Anísio com um semblante sério e preocupado, ao invés de simpático e sorridente, ela tinha finalmente se lembrado de onde achava que o conhecia.

***

— Nossa, acordou cedo?

Era Lúcia, que tinha acabado de acordar. O Sol tinha nascido há pouco tempo, e sua luz pálida iluminava toda a parede da cozinha.

— Aham! Eu não consigo dormir direito em lugares diferentes! — respondeu Cláudia.

Na verdade, ela não tinha dormido nada depois do episódio da madrugada. Tinha ficado a noite toda tentando conectar seu celular à Internet, mas a rede era muito ruim e não conseguia navegar além das páginas de busca. Sempre que conseguia visualizar uma notícia ou página com algo interessante, a conexão caía e não conseguia ver muita coisa. Tentou incessantemente, mas não conseguiu encontrar o que procurava. Buscava uma notícia dos jornais da região, que tinha visto já há algum tempo. Mas era difícil pois não se lembrava exatamente de quando era a notícia. Tinha tentado também buscar pelo nome "Anísio" nos jornais, mas não encontrou nada.

Os outros foram acordando, pouco a pouco. Cláudia decidiu que por enquanto não diria nada. Agora, pela manhã, já não tinha mais a mesma percepção que tivera na madrugada. Afinal, ela estava cansada, com sono, e devia estar ainda um pouco bêbada. Se não tivesse apagado as luzes da churrasqueira com seus próprios dedos, poderia achar que tinha sido tudo um sonho.

Bernardo foi o último a acordar, indo direto para a piscina. A manhã ainda estava um pouco fria, então ele saiu e foi correndo pegar uma cerveja na geladeira.

— Bora beber para esquentar! — ele disse.

Cláudia tentou se juntar aos demais na animação, mas não conseguia se desligar. Quando Anísio apareceu, ela decidiu se esconder. Foi para dentro da casa, longe da vista dele, tentando ouvir se ele iria comentar algo com os outros. Mas Otto estava por perto, latindo muito, impedindo-a de ouvir qualquer conversa. Quando ele foi embora, ela saiu. Mariana a viu, e perguntou:

— Tudo bem, Clau? Você está com uma cara estranha!

— Sim, tudo bem! — respondeu, sorrindo.

Ao longo do dia, os seis fizeram tudo o que se podia fazer em um feriado. Nadaram, beberam e prepararam mais churrasco. Em meio às conversas, Cláudia tentava acessar seu celular, sem sucesso. Os outros comentavam: "Larga esse celular, Claudinha, desliga do mundo e vem curtir!". Ela sorria e deixava o celular de lado um pouco, mas logo retomava suas tentativas.

Eles aproveitaram para conhecer todos os cantos da propriedade. Passearam pelos locais que tinham visto no dia anterior, e admiraram todo o luxo e conforto do lugar. Passaram pela academia, quadra de tênis e pista de corrida. Em uma das extremidades do terreno, viram que havia uma trilha que levava até um riacho. Cláudia sentiu um calafrio ao ver essa trilha, e agradeceu quando decidiram que não valia a pena explorar aquele lado.

Durante a caminhada, ela percebeu que o sinal de Internet era mais forte perto da casa do caseiro. Decidiu que voltaria ali mais tarde, para continuar suas buscas. A certa hora, Anísio apareceu e disse que precisaria sair para fazer compras, e iria aproveitar para levar o pneu da SUV para consertar. Cláudia decidiu que era sua chance e se afastou dos outros.

Aproximou-se da casa do caseiro e ficou observando, sem ser vista, enquanto ele ligava sua caminhonete. Mas ao invés de acelerar o carro, ele o desligou, abriu a porta do veículo, voltou até a casa, abriu a porta e entrou. Ela o ouviu gritando com Otto:

— Sai, cachorro! Estou com pressa!

Otto chorou e saiu correndo em direção ao lugar onde Cláudia estava escondida. Ela temeu ser descoberta, mas Anísio não percebeu a movimentação. Entrou na caminhonete, fechou a porta e saiu acelerando. Neste momento, Otto alcançou Cláudia, e começou a lamber seu rosto, feliz.

— Calma menino! Calma! — ela disse enquanto afagava sua cabeça.

Ao se levantar para se esquivar dos beijos do cachorro, ela notou que, no lugar onde estava a caminhonete de Anísio, havia um pacote pequeno no chão. Ela foi até o local e o apanhou. Era uma carteira de couro, que o caseiro provavelmente havia derrubado ao sair apressado. Não resistindo à tentação, abriu-a e começou a vasculhá-la. Mas levou um susto quando ouviu Otto chorando mais uma vez. Levantou a cabeça e viu a caminhonete voltando. Ela colocou instintivamente as mãos para trás, escondendo a carteira, mas logo percebeu que não iria adiantar. Então esperou que Anísio descesse do carro, e lhe estendeu a mão com a carteira.

— Ah, a senhora encontrou! Voltei justamente porque tinha esquecido a carteira!

— É, eu vi algo no chão e vim pegar para ver o que era! — ela respondeu, sem olhar para ele.

— Muito obrigado, dona Cláudia! Até mais.

Ele voltou a entrar na caminhonete e saiu acelerando mais uma vez. Ela esperou até que ele sumisse de vista, e foi correndo até a varanda da casa do caseiro. Pegou o celular, e deu um sorriso ao ver que o sinal de Internet estava muito forte. Abriu a página de busca e começou a digitar um nome. Não tinha dado tempo de ver muita coisa ao vasculhar a carteira de Anísio, mas tinha conseguido, de relance, ver o nome que estava escrito na carteira de motorista. Disse para si mesmo, baixinho:

— Vamos ver o que aparece quando a gente busca o seu nome verdadeiro!

***

Cláudia correu ofegante para dentro da casa. Ao entrar, levou um susto. A música estava alta. Todos dançavam e riam bastante. Pareciam muito embriagados. Esteves e Bernardo tinham afastado vários móveis da sala de jantar, abrindo espaço para uma pista de dança. João Carlos e Lúcia estavam se beijando como adolescentes. Mariana estava chegando naquele momento da cozinha, trazendo uma jarra cheia de bebida e vários copos empilhados na mão.

— Cláudia, fiz uma batida "da hora" pra gente! Vamos beber! — ela disse, com a voz empapada.

— Não, gente, eu... — Cláudia começou a dizer, mas Bernardo se aproximou, abraçando-a.

— Amor, onde você estava? Demorou um tempão! — ele aproximou seu rosto do dela e tentou beijá-la.

— Não, Bernardo, agora não, por favor, me escute...

Bernardo a afastou, com o olhar sério. Perguntou:

— O que foi? Por que você não quer se divertir com a gente?

Neste momento, os demais se aproximaram para conversar também. Ela olhou para eles, respirou fundo e disse:

— Gente... é sério, vocês precisam ver isso! — e mostrou o celular.

— Ah, larga esse celular, Claudinha! — reclamou Bernardo.

— Não! É sério! Vocês tem que ver! — ela falou, irritada.

— Eu estou vendo três telas! Você vai ter que ler pra gente — disse Esteves, rindo.

Cláudia suspirou e começou a falar:

— É uma notícia de um jornal da região, de dois anos atrás. Eu me lembro porque estava pesquisando para aquele artigo que escrevi sobre casos não resolvidos de pessoas desaparecidas. Vejam a foto, é o Anísio! Vejam!

Ela mostrou mais uma vez o celular para os amigos. Na tela se via uma foto do rosto do caseiro, com um semblante sério. Cláudia continuou:

— Aqui diz que a esposa de Anísio, cujo nome verdadeiro, aliás, é Francisco, desapareceu sem deixar pistas. O nome dela era Betina.

— E daí? — perguntou Lúcia. — É triste, mas, quer dizer... acontece, não é?

Cláudia suspirou e continuou falando.

— Calma, fica mais estranho. A notícia também diz que Anísio, ou Francisco, nunca prestou queixa do desaparecimento na polícia. Quem reportou o sumiço foi uma amiga dela, da Igreja. Não é estranho que o próprio marido não tenha ido à polícia?

Todos se entreolharam. Mariana disse:

— É, estranho mesmo.

Cláudia olhou para os outros, com o olhar desafiador. Ninguém parecia disposto a discutir. Enfim Lúcia pegou um copo da mão de Mariana e disse:

— Muito bizarro isso, gente! Mas eu vou é beber!

— Mas... — começou a dizer Cláudia, antes de ser interrompida por Bernardo.

— Cláudia, eu sei que você tem esse faro de jornalista, essa vontade toda de descobrir verdades... Mas você quer mesmo se meter nesse assunto? Não temos nada a ver com isso!

Cláudia olhou para baixo, pensando no que iria dizer a seguir. A ideia era meio maluca, mas fazia sentido em sua cabeça. Enfim, mesmo com medo de parecer paranóica, levantou o rosto e disse:

— É que... aconteceu outra coisa também. Eu acho que... a mulher dele, a que desapareceu, Betina, está aqui!

— O quê? — perguntaram vários, ao mesmo tempo.

— Foi ontem de madrugada... — ela respondeu. — Eu acordei e vi uma mulher perambulando na área da churrasqueira, comendo restos de comida. E ela se parecia muito com a foto da notícia, olhem aqui! — e mostrou mais uma vez o celular. — Quero dizer, eu não consegui ver direito o rosto dela, mas...

Enquanto falava, Cláudia percebeu os outros trocarem olhares entre si. Bernardo fez um sinal com a cabeça para Mariana, que deixou os copos e a jarra em cima da mesa e sumiu dentro da casa. Voltou em seguida com um pedaço de papel. Ela o deu para Cláudia segurar, e disse:

— Era essa mulher aqui?

Cláudia olhou o papel. Era um cartaz onde se via uma foto de uma mulher de cabelos pretos e desgrenhados, o rosto sujo e a boca com vários dentes faltando. Abaixo da foto, lia-se: "Se você vir esta pessoa, ligue para o número abaixo". Cláudia levantou o rosto e viu que os demais a fitavam. Continuou a leitura. O cartaz explicava que se tratava de Maria do Carmo, uma moradora da região que tinha problemas mentais, e que de vez em quando invadia as casas, mas era uma pessoa boa. O telefone era do irmão dela, e ele viria buscá-la caso necessário. Pedia também para não chamar a polícia, pois a condição dela piorava muito quando via uma viatura.

— Anísio falou com a gente hoje de manhã, ele explicou que você ficou bastante nervosa. — disse Bernardo.

— E com razão! Deve ter sido um baita susto, ver alguém assim, invadindo no meio da noite! — completou Mariana.

— Mas... — disse Cláudia.

— E você achou que essa era a mulher dele? — perguntou João Carlos.

Cláudia ficou envergonhada. Mas respondeu:

— Bem, eu... Ela parecia machucada e maltratada. Eu pensei que... talvez... ele esteja mantendo-a presa aqui, sem falar para ninguém...

Esteves soltou um riso alto:

— Tipo... ele é um psicopata, então? Que mantém pessoas em gaiolas, com correntes, e tudo o mais?

Cláudia não respondeu. Esteves continuou:

— Mas você viu alguma algema? Como ela conseguiu escapar, se estava presa? Aliás, onde pode ter um calabouço por aqui? Será que é embaixo da piscina?

Mariana deu um cutucão no marido, que ficou sério de repente e se calou. Bernardo abraçou Cláudia e disse:

— Amor, esquece isso! A gente vai ficar só uns dias aqui, não temos nada a ver com a vida dessas pessoas. Deixa pra lá e vamos nos divertir.

Mariana encheu um copo com a batida e o colocou na mão de Cláudia, que enfim deu um sorriso:

— Tá certo! Estou de férias, não é?

— Isso aí! — disse Lúcia, erguendo seu copo.

Cláudia forçou-se a esquecer o assunto, bebendo e dançando. Enfim conseguiu se descontrair, e a ideia toda agora lhe parecia muito ridícula. Depois de muita festa, foi para a cama e adormeceu profundamente.

***

Desta vez, não estava silêncio. Havia um barulho constante perturbando seu sono, e que de tanto insistir acabou acordando-a. Cláudia pegou o celular, e seu coração deu um pequeno salto. Eram três horas e quinze minutos, o mesmo horário em que tinha acordado na noite anterior.

O barulho vinha de fora. Parecia longe, mas não muito. Calculou que devia estar próximo à extremidade do terreno. Não tinha certeza se vinha de dentro ou de fora da propriedade. Era um latido, ameaçador e vigoroso. Era Otto.

Cláudia ficou quieta, escutando. O timbre nervoso do latido sugeria que Otto estava vendo algo, ou alguém. Vez ou outra, um rosnado preenchia a lacuna entre os latidos. Otto estava bravo e tentava espantar a presença que percebia.

De repente, ela ouviu um ganido alto e agudo, seguido por um choro canino. Otto parecia ter sido atingido por alguma coisa. O silêncio tomou conta, e Cláudia pode ouvir as batidas de seu próprio coração de maneira bastante evidente. Apurou os ouvidos, mas não conseguiu ouvir nada. Enquanto decidia se iria se levantar e tentar olhar pela janela, ouviu passos.

Eram passos rápidos, sobre a grama. Era Otto, pensou. Ele parecia ir e voltar em círculos. Em meio ao trotar do cachorro, Cláudia conseguiu ouvir um segundo conjunto de passos. Mais leves e cadenciados, como os de uma pessoa. Estavam muito próximos. De repente, o som mudou, indicando que aqueles pés agora pisavam no chão duro, e não mais na grama. Pisavam no calçamento que havia ao lado da casa, cada vez mais perto. Pelo timbre, Cláudia percebeu que eram pés descalços.

Na escuridão, Cláudia arregalou os olhos. Parecia que os passos estavam a centímetros dali. Então ela viu uma sombra passando pelas frestas da janela de madeira. Estava muito escuro, mas mesmo assim conseguiu ver nitidamente que se tratava de uma pessoa. Levou a mão à boca e segurou um grito. Colocou a mão no braço de Bernardo e o sacudiu violentamente:

— Bernardo! Acorda, Bernardo! — sussurrou em seu ouvido.

— O que foi? — resmungou o marido.

— É aquela mulher! Ela entrou aqui de novo!

— Quem?

— Levanta, Bernardo, vem!

Cláudia se levantou e foi correndo até a sala. Tateou em busca do interruptor e apertou todos os botões que encontrou. Luzes se acenderam por todo lado, dentro e fora da casa. Por um instante, a claridade a ofuscou. Mas logo conseguiu ver tudo claramente.

Procurou com os olhos pelo exterior da casa, mas não viu nada de diferente. Atrás dela, chegou Bernardo, sonolento. Ele também começou a olhar, sem saber direito o que procurar.

— Você sonhou, Cláudia! Bebeu demais, foi isso.

— Não fala assim, Bernardo! — ela gritou — Eu não sonhei! Eu escutei e vi tudo claramente, e foi depois que eu já estava bem acordada!

— Calma, me desculpe! Vamos fazer o seguinte, eu vou pegar o cartaz e você pega o telefone. A gente liga para o tal irmão dela, tudo bem?

— Tudo bem! — respondeu Cláudia.

Nessa hora, Mariana e Esteves tinham se levantado também.

— Ouvimos um grito, o que foi? — perguntou Mariana.

— Acho que a tal da Maria do Carmo apareceu de novo. — respondeu Bernardo, e Cláudia ficou grata pelo marido ter acreditado nela — Onde está aquele cartaz, Mari?

— Está na cozinha, acho. Vou pegar — disse Mariana, afastando-se.

Cláudia foi até o quarto e apanhou o celular. Voltou até a janela e ficou ali espiando. Esteves tinha se sentado numa cadeira e parecia que já tinha dormido de novo. Bernardo tinha ido ao banheiro, e Mariana ainda estava na cozinha.

De repente, Cláudia levou um susto. Estava com o rosto encostado no vidro, quando sentiu um baque que a jogou para trás. Otto tinha aparecido e saltado em sua frente, colocando as duas patas no vidro, na altura de seu rosto. Ele latia e abanava o rabo, feliz.

— Calma, garoto, calma! — ela disse, respirando fundo para tentar se acalmar.

Otto começou a arranhar o pé da porta, querendo entrar. Esteves estava realmente dormindo profundamente, pois nem percebeu a presença do cachorro. Bernardo apareceu, dizendo:

— Opa, Otto! Calma! O que foi? Você também, hein? Nem para espantar os invasores! Que belo cão de guarda!

— Peraí! — disse Cláudia. — Ele latiu sim, mas...

— O quê?

— Ele estava latindo, e de repente começou a chorar... e aí... pelo barulho, parecia que ele estava correndo em volta da mulher, como se a conhecesse.

Bernardo fez uma expressão de concordância, e disse:

— Hum, não é de se estranhar. Se ela mora por aqui, os cachorros acabam conhecendo mesmo.

Mariana voltou com o cartaz, enquanto Otto continuava arranhando a porta. Ela disse:

— E agora? A gente liga?

— Calma, vamos primeiro ter certeza! — disse Bernardo.

— Eu tenho certeza! Eu vi! — disse Cláudia.

— Sim, eu sei. Eu me referia à certeza de que ela ainda está aqui, para poder dar a informação correta para o irmão. Eu vou lá fora olhar.

Cláudia ficou satisfeita. Bernardo abriu a porta, tentando não deixar o cachorro entrar, mas não conseguiu. Ele passou entre suas pernas e começou a farejar todos os lados.

— Venha, Otto, venha! — disse Bernardo, e o cachorro o seguiu para o lado de fora.

Cláudia e Mariana se juntaram a Esteves e se sentaram. Ficaram aguardando por vários minutos, até que Bernardo voltou, dizendo:

— Gente, acho que ela já foi embora. Dei a volta na casa toda e não vi nada. O Otto também parece que não viu ninguém. Acho melhor nem ligar, né?

— É verdade! — disse Mariana.

Eles ficaram ali por mais alguns minutos, e decidiram que iriam dormir. Otto não queria ir embora. Estavam tendo trabalho para conseguir colocar o enorme cachorro para fora da casa. Ele insistia em farejar tudo. De repente, Otto inclinou a cabeça, olhando para um canto escuro da sala. Seus pelos ficaram eriçados, e começou a latir loucamente.

Nesta hora, todos acordaram por causa do barulho. Esteves se levantou, assustado com o cachorro, e logo apareceram João Carlos e Lúcia.

— O que houve? Por que esse bicho está dentro de casa? — perguntou Esteves.

Cláudia aguçou os olhos e viu. No canto da sala, agachada, estava a figura de uma mulher, magra e com os cabelos desgrenhados.

— Gente, quem é essa? — perguntou Lúcia.

— Vou acender a luz! — disse Bernardo, e correu até o interruptor. A luz iluminou a sala, e a mulher agachada cobriu o rosto com os braços.

Esteves continuava incomodado com Otto. Ele dizia: "Sai, bicho feio! Fora!", enquanto batia o pé no chão, em frente ao cachorro. João Carlos então puxou-o pela coleira e finalmente o colocou para fora, fechando a porta. Mas o cachorro continuou ali perto, olhando.

Cláudia se aproximou da mulher, devagar. Ela parecia assustada. Cláudia disse, baixinho:

— Maria do Carmo?

A mulher abaixou os braços e enfim puderam ver o rosto dela. Estava sujo, mas Cláudia achou que não se parecia nada com a mulher do cartaz. Para a surpresa de todos, a mulher negou com um sinal de cabeça.

Cláudia pegou o cartaz que ainda estava na mão de Mariana, e comparou os rostos. Definitivamente não eram a mesma pessoa. Ela decidiu arriscar:

— Er... Betina?

A mulher arregalou os olhos e fez que sim com a cabeça, confirmando. Cláudia olhou para os outros, que pareciam estar em estado de choque.

— Gente, tragam um copo de água, um pão, alguma coisa! — disse Cláudia, o que fez Lúcia sair correndo para a cozinha. Cláudia se virou para Betina, dizendo:

— Venha, sente-se aqui, Betina. Está tudo bem agora!

Ela se levantou, ainda encolhida, e foi até a mesa, sentando-se. Bebeu toda a água e devorou rapidamente o pedaço de pão trazido por Lúcia. Cláudia continuou:

— Betina, você precisa nos contar o que aconteceu. Todos acham que você está desaparecida! Onde você esteve esse tempo todo?

Ela não disse nada. Ficou parada, olhando para as próprias mãos. Cláudia insistiu:

— Foi o Anísio? Ou melhor... Francisco? Ele fez alguma coisa com você?

Neste momento, ouviram um barulho de carro. Era a caminhonete do caseiro, que voltava. Betina levantou-se e voltou correndo para o canto, encolhendo-se novamente. Cláudia olhou para os outros, como quem indicasse que esse comportamento confirmava sua teoria de que Anísio estava maltratando a esposa. Todos se levantaram e foram até a porta, observando enquanto a caminhonete ziguezagueava pelo caminho, fazendo mais curvas do que o necessário.

Ele desceu do veículo e veio cambaleando até a casa principal. Bernardo saiu ao seu encontro, evitando que ele entrasse na casa e visse Betina ali dentro.

— Boa noite, seu Anísio!

— Oi, boa noite, senhor Bernardo! Por... p... que estão acordados? — ele disse, olhando sobre o ombro de Bernardo para tentar ver os demais dentro da casa. Gaguejava. Parecia estar muito embriagado.

— Ah, a noite hoje foi boa! Ficamos bebendo e dançando até agora há pouco! — mentiu Bernardo. — Espero não termos incomodado os vizinhos.

Anísio pareceu desconfiado, mas sorriu, exalando um forte odor alcoólico em seu hálito:

— Não, imagina! Os vizinhos mais próximos estão bem longe daqui! Eu também ... hic... aproveitei a madrugada para beber umas!

— Hahaha! É bom demais! Mas é perigoso dirigir assim, não?

— É verdade, é verdade! Mas eu só ... p... peguei estrada de t... terra. E vim devagarinho... com muito cuidado!

Bernardo sorriu sem dizer nada, evitando prolongar a conversa na esperança de que Anísio se despedisse logo, o que não tardou a acontecer. Virou-se de costas e foi cambaleando até sua casa. Nem se lembrou de chamar Otto, que continuava na porta, olhando para dentro da casa. Assim que Anísio desapareceu, Bernardo voltou para casa, tomando cuidado para não deixar o insistente Otto entrar de carona.

— Pronto, ele já foi embora! — disse, olhando para Betina, que pareceu relaxar os ombros ao escutar a notícia.

Mariana se aproximou de Betina e a pegou pela mão:

— Venha, você poderá dormir em um dos quartos aqui hoje. Não é, pessoal? — disse, olhando para todos.

— É claro! — disse Cláudia. — Boa ideia!

Betina olhou para todos e se deixou levar por Mariana até um dos quartos. Depois de um tempo, Mariana voltou para a sala. Disse:

— Deixei a pobrezinha na cama. Ela dormiu instantaneamente, coitada, devia estar exausta.

— O que faremos? — perguntou João Carlos.

— Chamar a polícia, é claro! — disse Cláudia — Vocês ainda acham que a minha teoria é maluca?

— Não, não! — disseram os outros, incluindo Esteves, que havia caçoado mais cedo.

— Calma! — disse Bernardo — Acho melhor esperar até amanhã. Já são quatro horas, não vai demorar até o Sol nascer. Vamos deixar a coitada descansar um pouco.

Apesar de um breve protesto de Cláudia, todos concordaram e foram se deitar. Decidiram que não tinham tanta pressa, pois pelo estado de Anísio, ele iria demorar a acordar.

***

— Clau! Amor, acorda! Ela sumiu!

Era a voz de Bernardo, despertando Cláudia de um sono profundo.

— O quê? — perguntou, sonolenta.

— A mulher, a Betina... ela não está no quarto!

— Mas como? Que horas são?

— São oito horas! Sei lá o que aconteceu. A cama está revirada, mas ela não está lá.

Cláudia se levantou e foi se juntar aos outros, que conversavam na cozinha. Ficaram discutindo por um tempo, imaginando o que teria acontecido. Será que ela fugiu sozinha? Será que Anísio tinha acordado e a capturado antes do amanhecer?

— Não, ele ainda está lá! — disse João Carlos — Eu fui até a janela da casa dele e pude ouvi-lo roncando alto.

Decidiram que não iriam chamar a polícia, pois não tinham nada para mostrar. Se de fato Anísio fosse um criminoso, e a polícia viesse, serviria apenas para alertá-lo de que eles sabiam de algo, o que poderia ser muito perigoso.

Algum tempo depois, Anísio acordou e se aproximou da casa. Bernardo e Esteves foram conversar com ele. Parecia sóbrio, o que mostrava uma tremenda capacidade de se recuperar da ressaca. Ele tinha trazido o pneu da SUV consertado, e queria ajuda para recolocá-lo. Bernardo se ofereceu para ir junto. Antes de sair, olhou para Cláudia e fez um sinal sutil com a cabeça, que ela captou nitidamente. Ele estava dando a deixa para vasculharem o local em busca de Betina ou de alguma pista para poderem chamar a polícia.

Assim que a caminhonete sumiu de vista, todos se espalharam pela propriedade. Esteves e Mariana foram explorar o perímetro do terreno, em busca de alguma passagem ou esconderijo. Cláudia, João Carlos e Lúcia foram até a casa do caseiro. Por sorte, a porta tinha sido deixada aberta, e eles puderam entrar.

Dentro da casa, espalharam-se pelos cômodos. Não eram muitos, e não demorou até que Cláudia achasse algo muito intrigante.

— Gente, vem aqui, rápido!

Ela estava ao lado de um computador, que ficava próximo a uma impressora. Dentro da gaveta da impressora havia várias páginas impressas, todas elas com o mesmo conteúdo. Era o cartaz que Anísio havia entregado anteriormente. Havia diferentes versões do cartaz, algumas com erros visíveis, outras com fotos de pessoas diferentes, o que indicava que ele estivera experimentando ideias até conseguir produzir uma convincente.

— Olha só! Eu sabia que essa história estava estranha! — disse Cláudia — Essa Maria do Carmo não deve sequer existir. Foi ele quem inventou tudo, e imprimiu esse cartaz para que não desconfiássemos!

Continuaram vasculhando, sem saber o que mais iriam encontrar. João Carlos, que estava na cozinha, foi quem fez a próxima descoberta. Era um alçapão que levava até um cômodo embaixo da casa. Eles desceram na escuridão, tateando em busca de algum interruptor. Enfim Cláudia encontrou um botão, e a luz se acendeu, fazendo todos ficarem de cabelos em pé.

Era um cômodo pequeno e abafado. Estava bastante sujo, as paredes cobertas de rabiscos e símbolos estranhos feitos em tinta vermelha e preta. Cláudia não reconheceu aqueles símbolos, mas viu que tinham sido copiados de papéis jogados no chão, provavelmente impressos na mesma impressora que tinham acabado de visitar. No centro, havia um círculo desenhado no chão com tinta branca. Ao redor do círculo, havia um enorme acúmulo de cera derretida, indicando que ali tinham sido acesas muitas velas. Mas o pior estava em um dos cantos. Correntes e algemas estavam presas à parede, completando o que certamente teria sido cenário de um terrível cárcere e rituais macabros.

— Meu Deus! — exclamou Lúcia.

— Vamos embora daqui! — disse João Carlos — Esse cara é maluco mesmo!

— Calma, gente! Precisamos achar alguma prova, algo para mostrar para a polícia! — disse Cláudia.

— Você acha que precisa de mais do que isso? — perguntou Lúcia.

— Sim, estritamente falando... — Cláudia começou a dizer, mas foi interrompida por um latido, seguida pelo barulho de um carro se aproximando. Anísio e Bernardo estavam voltando.

— Vamos embora, rápido! — disse João Carlos.

Apagaram a luz, subiram pelo alçapão e saíram correndo pelos fundos da casa do caseiro, sem que fossem notados. Esgueiraram-se pela lateral do terreno até dar a volta na casa principal, onde entraram e ficaram aguardando os demais.

Esteves e Mariana voltaram logo depois, sem encontrar nada. Cláudia, João Carlos e Lúcia contaram o que tinham achado, deixando Esteves e Mariana igualmente consternados. Decidiram que, assim que Bernardo voltasse, iriam embora dali e chamariam a polícia.

Mas Bernardo e Anísio voltaram trazendo uma frustrante notícia. O pneu tinha sido consertado, mas a bateria acabou descarregando e o carro não queria mais ligar. Teriam que chamar um mecânico para dar uma olhada. Anísio se ofereceu para fazer isso e se despediu, deixando-os sozinhos.

Ao ouvir o relato dos demais, Bernardo concordou que deveriam ir embora o mais rápido possível. Mas ponderou:

— Gente, calma. Por enquanto ele não desconfia de nada. Somos apenas visitantes nos divertindo no fim de semana. Não precisamos sair correndo a pé. Podemos ficar seguros aqui, dentro de casa, e esperar o carro ser consertado. Até onde sabemos, esse cara não quer nada com a gente!

Apesar de muita relutância, todos concordaram que era menos arriscado esperar, então decidiram ficar, mas quietos dentro da casa. Aproveitaram o tempo para deixar as malas arrumadas para uma saída rápida.

O tempo passou, e o socorro ainda não tinha chegado. Já era noite quando o telefone tocou. Era Anísio dizendo que já tinha encomendado uma bateria nova e que o mecânico chegaria no dia seguinte, logo cedo. Apreensivos, todos foram dormir.

***

Desta vez, Cláudia não acordou sozinha. Sentiu seu corpo sendo balançado por Bernardo, e logo ouviu os mesmos latidos que tinha ouvido na noite anterior. Otto estava mais uma vez alucinado, esbravejando contra algum visitante. Cláudia nem estranhou ao pegar o celular e conferir o horário: três horas e quinze minutos. Se era mesmo Betina, porque insistia em chegar sempre no mesmo horário?

Cláudia e Bernardo foram acordar os outros. Eles se levantaram e foram até a sala, espiando pela porta. Viram as silhuetas de Otto e Betina aproximando-se pela grama. Abriram a porta e deixaram-na entrar. Otto conseguiu escapulir e entrou junto, sentando-se aos pés da mulher.

— Betina, por que você sumiu hoje de manhã? — perguntou Cláudia — Nós iremos proteger você, pode confiar! Iríamos chamar a polícia, mas você sumiu, então ficamos sem saber o que fazer.

Ela não disse nada, apenas ficou sentada na mesma cadeira que na noite anterior, com as mãos estendidas.

— O que você quer, querida? — perguntou Mariana — Algo para comer?

Ela acenou positivamente, e Mariana foi até a cozinha trazer um pouco de comida que tinha sobrado do jantar. Betina começou a comer vorazmente, enquanto todos olhavam para ela. Cláudia pensou se deveria mencionar que tinham encontrado a sala embaixo do alçapão, mas talvez pudesse assustá-la. Deixaria para comentar isso depois que tivessem chamado a polícia.

— Vamos chamar a polícia agora? Por favor? — perguntou Esteves.

— Sim, vamos! — disse Bernardo.

Ele pegou o celular, mas não conseguiu sinal. Foi até a porta de vidro, onde o sinal estava mais forte. Assim que começou a digitar, um forte baque o jogou para trás. Era Anísio, o rosto colado no vidro e as mãos batendo fortemente, produzindo um barulho constante.

— O que estão fazendo? Quem está aí?

Lúcia deu um grito. Betina se levantou e foi correndo até o mesmo canto escuro em que tinha ficado encolhida na noite anterior. Otto começou a latir desesperadamente, o que fez com que Esteves ficasse muito apreensivo e nervoso. Neste momento, Anísio reconheceu a figura da mulher. Seu rosto se cobriu de espanto, e ele começou a gritar:

— É ela quem está aí? Ali no canto?

Betina começou a se balançar, para frente e para trás. Otto latia tanto que Esteves não aguentou. Pegou-o pela coleira e o arrastou até a porta, chutando-lhe o traseiro:

— Para de latir! Vai embora! — gritava Esteves, o medo de cães dominando-o.

O cachorro chorou e saiu correndo para longe. Anísio pareceu aterrorizado. Gritou:

— Otto, não! Volte aqui! Não vá embora, por favor!!

Neste momento, Anísio se virou e fez um gesto para entrar, mas Bernardo e Cláudia fecharam a porta rapidamente. Anísio continuou a bater, gritando:

— Não, abram a porta! Abram!

— Não vamos deixar você machucar a Betina, seu psicopata! — gritou Cláudia — Bernardo, chame a polícia, rápido!

Ao ouvir isso, Anísio balançou a cabeça, e seu rosto se retorceu em pânico e medo. Ele disse:

— Não, não! Vocês não sabem o que estão fazendo! Precisam sair daí, estão correndo perigo, olhem! — e apontou para o canto onde estava Betina.

Todos se viraram para olhar. Betina ainda estava balançando para frente e para trás. Mas parecia diferente, maior. O balançar parecia cada vez menos o de uma pessoa assustada, e começava a se assemelhar ao serpentear de uma cobra, o movimento do tronco e braços levemente defasados em relação ao restante do corpo. A figura foi se retorcendo cada vez mais, ante o olhar assustado de todos. Até que levantou as mãos, revelando um rosto escuro e medonho, a pele parecida com uma casca de árvore, buracos negros no lugar dos olhos, preenchidos pelo brilho tênue de chamas avermelhadas. A boca se abriu com um estalo, e dela saiu um grito gutural, ensurdecedor, ao mesmo tempo agudo como o assovio do vento, e grave como o timbre de um trovão.

— Fujam! Fujam, seus tolos! — gritava Anísio, sua voz distante. Já estava longe.

***

Bernardo e Esteves saíram primeiro, empurrando a porta com força para fora, abrindo o caminho para os demais. Depois vieram Cláudia, Lúcia, João Carlos e Mariana. Anísio tinha desaparecido. Saíram correndo em direção ao gramado, passando ao lado da piscina e depois em direção à pista de corrida. Corriam juntos, lado a lado, ofegantes. Cláudia ouvia gritos e choros, de Lúcia, Esteves, Mariana, não sabia direito. Ao seu lado, Bernardo corria segurando forte sua mão. Cláudia também ouvia os passos de todos, ao seu lado. E atrás deles, os pesados passos da criatura demoníaca.

Em determinado momento, Cláudia virou-se, e abriu a boca em terror. O monstro estava muito próximo. Apesar de andar a passos lentos, suas pernas eram compridas e ele ganhava terreno facilmente. Em pouco tempo chegariam ao fim da propriedade e não teriam para onde ir. João Carlos teve a ideia:

— Vamos nos separar! Mari, Lúcia, venham para a esquerda comigo. Os demais, dêem a volta e subam pelo outro lado! Três, dois, um ... agora!

Eles obedeceram, e o truque pareceu ter enganado a criatura temporariamente, e eles se viram ganhando distância à medida que voltavam para a casa. Ao subir de volta a rampa que levava à piscina, porém, Mariana tropeçou, machucando a perna. Esteves voltou para ajudá-la. Cláudia, em desespero, percebeu que seriam alcançados facilmente. Ela gritou:

— Bernardo! Volte, não podemos deixá-los lá!

Bernardo e os outros diminuíram o passo até parar, virando-se para trás. Ficaram paralisados enquanto viam Esteves tentando levantar Mariana, mas sem sucesso, enquanto o monstro Betina parava a poucos metros dos dois. Ele esticou o longo braço com seus dedos pontudos e afiados em direção ao rosto de Mariana. Mas antes que pudesse encostar, Anísio surgiu gritando atrás dele.

— Aqui! Venha me pegar, aqui!

A criatura se virou, e Anísio disparou na outra direção. Neste momento, João Carlos se juntou a Esteves, e ambos conseguiram erguer Mariana. Ouviram Anísio gritar, antes de começar a ser perseguido pelo monstro:

— Para a capela, corram para a capela! Ela não vai entrar lá!

Sem titubear, os seis amigos dispararam rampa acima e logo estavam na área da churrasqueira. Atravessaram o mato em meio a uns arbustos, cruzaram a passagem de veículos, e entraram na escura capela, espremendo-se o mais fundo que conseguiram, longe da entrada. Ficaram ali parados, ouvindo gemidos e a respiração pesada de Anísio, cada vez mais próxima. Em seguida sua figura apareceu no arco de pedra, e ele se esgueirou para dentro, sentando-se junto à parede, ofegante.

Os barulhos de passos pesados lá fora se aproximaram, mas não pareciam estar muito perto. Ouviram sons de uma pesada respiração, seguidos por um grito, um pouco mais baixo, mas tão terrível quanto aquele que tinham ouvido há pouco tempo atrás, depois da transformação. Depois disso, os passos se afastaram e a criatura foi embora.

— O que... o que era aquilo? — perguntou Cláudia.

Anísio levantou a mão, pedindo um pouco mais de tempo. Respirou algumas vezes, descansando, e começou a falar.

— Aquilo... era minha esposa, Betina. Ou melhor, uma aberração, uma sombra terrível, deformada, do que já foi uma vez o amor da minha vida!

— Você... sabia? — perguntou Cláudia, insandecida pela raiva — Sabia que ela... podia se transformar nesse monstro? E não nos disse nada? Não me disse nada quando ela apareceu, na primeira noite?

— Ela quase nunca se transforma nisso... só quando fica nervosa. Só quando está longe do Otto. Ele é a única coisa que consegue acalmá-la, que consegue deixá-la mais... parecida com o que era antes de morrer!

Eles se entreolharam. Bernardo perguntou:

— Morrer?

Anísio suspirou:

— Sim, ela morreu há mais ou menos dois anos! Foi um acidente terrível, eu... foi minha culpa... eu não tive a intenção, mas ...

Ninguém falou nada. Anísio soluçava agora, quase chorando, mas continuou falando:

— Eu tinha saído de casa, fui até o bar lá na vila, e perdi a hora. Quando cheguei, já era de manhã. Ela estava muito brava, estava me esperando perto do riacho. Eu... eu estava muito bêbado, não conseguia nem ficar em pé direito... eu...

Parou mais uma vez de falar. Cláudia o acusou:

— Então você a atacou?

— Não! Não foi isso. Nós discutimos, foi ela quem começou a me bater! Eu me defendi, mas acabei tropeçando e caindo. Ela caiu por cima de mim e... caiu no riacho, bateu a cabeça no fundo. O riacho é bem raso, ela... quebrou o pescoço, acho! Coitada... ah, Betina, pobre Betina! Eu a amava muito!

Ele estava chorando agora. Depois de um tempo, ele se acalmou, respirando fundo, e continuou:

— Eu desmaiei depois disso, não vi mais nada. Acordei com Otto lambendo meu rosto. O Sol já estava alto. Ele começou a farejar em volta e entrou no riacho. Voltou carregando o corpo dela. Ele a colocou do meu lado, e só aí eu vi a besteira que eu tinha feito!

— E depois? — perguntou Cláudia, com a voz fria — Por acaso chamou a polícia, para avisar?

— Não, eu... tive medo! Achei que poderia me encrencar. Além de ficar sem minha querida esposa, talvez fosse para a cadeia! Que bem isso faria, me diga? Iriam trazê-la de volta, por acaso? Talvez eu tenha fraquejado, mesmo. Mas Deus sabe que eu não a matei! Enterrei-a embaixo da grande árvore, e tenho vivido com essa culpa desde então! Só que ela... bom... ela voltou!

— Como assim, voltou? — perguntou Lúcia — Você não a enterrou?

— Não é o corpo dela! Eu acho que é um tipo de espírito. Tem raiva... não sei se é de mim, ou se é de qualquer um! Acho que quer se vingar, acha que morreu injustamente naquela manhã e quer se vingar! Ela começou a aparecer na noite seguinte. No começo achei que era uma miragem, mas ela não falava comigo, não olhava para mim. Até que ela se transformou a primeira vez, e eu percebi que precisava mandá-la embora, de algum jeito.

— É para isso que você tem aquele quarto? — perguntou Cláudia.

Anísio a olhou assustado. Percebendo a dúvida nele, Cláudia completou:

— Embaixo do alçapão, na sua cozinha. Nós entramos lá e vimos tudo. O que você faz ali?

Anísio concordou com a cabeça, não parecendo se incomodar com o fato de que sua privacidade tinha sido invadida:

— Sim, o quarto! Eu venho estudando ocultismo, bruxaria, tudo o que consegui encontrar, na tentativa de fazer algum feitiço ou ritual que a mande embora. Mas eu não consigo, eu não sei o que fazer! Já tentei tudo que podia!

Todos ficaram quietos por um tempo. Então Mariana disse:

— Eu acho que você precisa sair daqui!

— O quê? — perguntou Anísio, ao que Mariana respondeu:

— Claramente esse espírito está preso neste local, onde morreu. Você a enterrou, mas não teve um funeral, não teve uma despedida! Acho que você precisa sair daqui, levar os restos mortais dela, avisar a Igreja, os amigos e conhecidos, e enterrá-la de uma forma decente!

— Mas... ela não vai deixar... ela... está muito brava! — disse Anísio.

— Acho que a Mariana tem razão, Anísio! — disse Bernardo — Você precisa tentar!

Ele pensou por um tempo, depois concordou:

— Acho que vocês tem razão! É... vou tentar isso!

— E nós? — perguntou Esteves.

— Sim, acho que podemos sair. Vamos para a minha casa, Otto deve estar por lá. Assim que o encontrarmos, estaremos seguros. Não podemos deixá-lo ficar longe dela, ouviu? — o último comentário tinha sido para Esteves.

— Sim! — disse Esteves, arrependido — Acho que depois dessa, meu medo de cachorros desapareceu por completo!

Todos esboçaram um sorriso. Anísio se levantou e colocou a cabeça para fora da capela. Ele disse:

— Ela está por aqui, mas está longe! Vamos fazer o seguinte, eu corro para o lado de baixo do terreno e vocês correm direto para a minha casa. Otto deve estar na casinha dele. Peguem-no e entrem no quarto sob o alçapão. Fechem-no e só abram para mim. Se eu voltar!

— Anísio! Você não precisa fazer isso! — disse Cláudia.

— Sim, eu preciso! — disse Anísio — Preciso muito! Vocês não tem nada a ver com isso!

Depois disso, ele fez um sinal com a mão, e os seis amigos saíram em silêncio, um a um. A criatura estava longe, e não pareceu perceber o movimento. Mas Cláudia deu um pisão em falso e fez um barulho, atraindo a atenção do monstro. Anísio saiu correndo em direção a ele, acenando os braços, dizendo:

— Vão, rápido! Peguem Otto!

Eles correram e logo chegaram na casa. De fato, Otto estava na varanda, em sua casinha, e foi recebê-los, alegre. Eles entraram na casa, foram até a cozinha e abriram o alçapão. Desceram rapidamente, seguidos por Otto, e se fecharam ali. Ficaram esperando, até que ouviram a voz de Anísio chamando:

— Podem abrir, estou aqui!

— Calma! — disse Cláudia, pegando Otto e dando-lhe um abraço, segurando-o logo abaixo do alçapão. Ela então disse a Bernardo:

— Apenas uma precaução canina! Vai, pode abrir!

Ele abriu a portinhola de madeira, e Anísio apareceu. Estava de fato sozinho. Ele trazia uma sacola cheia de mantimentos que tinha pegado na cozinha. Estava muito machucado. Pelo jeito, tinha escapado mais uma vez por um triz. Ele disse:

— Agora vamos ficar bem. Ela vai sumir quando o Sol aparecer, então poderemos todos ir embora daqui. Vamos descansar um pouco. Eu trouxe comida e bebida para todos, peguei aqui em cima, venham!

Comeram e beberam, e depois revezaram-se para subir e usar o banheiro, sempre levando Otto como companhia. Depois recolheram-se e ficaram conversando por algum tempo. Anísio abriu uma garrafa de bebida alcoólica e ofereceu a todos. Cláudia negou, condenando o homem por se deixar levar pelo vício em uma hora tão inapropriada, mas os demais aceitaram tomar uma dose. A bebida deixou o ambiente mais leve, e puderam relaxar um pouco. Depois de um tempo, adormeceram encostados uns aos outros.

***

Cláudia acordou mais uma vez na madrugada. Mas dessa vez sentia que não tinha adormecido nem quinze minutos. Abriu os olhos e viu o céu estrelado. Sentiu seu corpo balançando. Estava em uma espécie de carrinho, pequeno. Tentou se levantar, mas não conseguiu. Tentou falar, mas também não conseguiu. Estava amordaçada, e tinha os pés e mãos amarrados fortemente. Então percebeu que tinha sido enganada.

— Me desculpe, dona Cláudia! — era a voz de Anísio — Não tinha outro jeito melhor de carregar a senhora, então estou usando esse carrinho de mão.

— Hummm! Mmmmmm! — ela tentou dizer algo, mas não conseguia.

— Eu sei que a ideia da sua amiga, de enterrar a Betina decentemente, parece boa, e tal... mas eu li bastante sobre isso. Nesses casos, não é suficiente! Ela está com muita raiva! Ela precisa se vingar ... de alguém! Bem... vou tentar com a senhora!

Cláudia estremeceu. Aquele homem estaria mesmo disposto a entregá-la para uma criatura demoníaca? Ele parecia arrependido, mas ela nunca conseguiu dissolver a estranha sensação que tivera ao vê-lo pela primeira vez. Agora sabia o que era. Ele era um covarde!

Anísio continuou falando de maneira conclusiva, como se estivesse simplesmente cumprindo com sua obrigação:

— Sim, vai dar certo. Só preciso deixá-la no lugar certo, perto do riacho. Ela vai aparecer, cedo ou tarde. Vou prender o Otto na capela, só para garantir. Esse cachorro sempre acha um jeito de escapar.

Cláudia não conseguia acreditar. Estava mesmo ali, sendo levada para o abate. Viu enquanto se aproximavam da cerca no final do terreno. Atravessaram a pequena trilha e chegaram ao riacho. Otto os acompanhava, e Cláudia percebeu que o cachorro não parecia feliz com a cena, mas talvez fosse apenas sua imaginação. Anísio abaixou o carrinho de mão e deu a volta, encarando-a de frente.

— Com licença, dona Cláudia!

Ele a pegou no colo. Nesse momento, ela se debateu, e com muita luta conseguiu soltar suas mãos. Desferiu um golpe contra o rosto de Anísio, que a deixou cair no chão, rugindo de dor.

— Meu olho! Você acertou meu olho, sua desgraçada!

Sem pensar, Cláudia tentou soltar as amarras de seus pés. Não conseguiu livrá-los completamente, mas deixou-os livres o suficiente para se levantar e sair pulando. Anísio devia estar bastante incomodado com sua visão, pois ele permanecia no lugar, esfregando o rosto. Otto latia, assustado.

Cláudia aproveitou e conseguiu escapar dali, entrando novamente na propriedade. Em poucos instantes, sentiu um alívio. Viu Bernardo caminhando em sua direção. Ela abaixou a mordaça de sua boca e gritou:

— Bernardo! Socorro, Bernardo! O Anísio me pegou, ele queria me entregar para Betina, ele…

Bernardo se aproximou e a abraçou. Ela começou a chorar em seu ombro. No começo, não percebeu, mas depois estranhou quando o abraço começou a ficar apertado demais. Ela disse:

— Você está me apertando, Bernardo! O que foi?

Ele continuou apertando-a. Com alguma luta, se desvencilhou. Ao afastar-se dele, ficou assustada com seu olhar. Ele parecia estar fora de si.

— Bernardo? O que aconteceu?

Seu rosto estava impassível. Ele disse, calmamente:

— Eu estou muito chateado com você, Cláudia! A gente veio aqui se divertir, e você só quer saber de ficar encanada com as coisas! Relaxe, vamos lá para a piscina!

— Que história é essa, Bernardo? Do que você está falando? — ela disse, afastando-se.

Bernardo esticou o braço e tentou segurá-la, mas ela escapou. Ainda sem entender direito o que estava acontecendo, começou a andar para trás. Ele a acompanhava devagar. De repente, sentiu uma mão em suas costas. Virou-se em um susto, e deparou-se com Mariana. Ela sorria:

— Clau, finalmente! Vamos lá para cima! A Lúcia vai preparar uns drinks pra gente! Larga essa história aí e vamos nos divertir!

Cláudia não entendia o que estava acontecendo. Estavam todos enlouquecendo. Não sabia o que pensar, ou o que fazer. Em pouco tempo, os outros apareceram também. Esteves chegou, trazendo uma garrafa de cerveja em cada mão. João Carlos e Lúcia estavam abraçados, sorrindo. Nesse momento de distração, Bernardo a pegou pela cintura e todos começaram a subir o terreno. Gritavam e sorriam:

— Piscina! Festa, vamos lá! Hahahaha!

Cláudia tentou se soltar do abraço de Bernardo, mas os outros ajudaram, empurrando-os para cima, às gargalhadas.

— Parem! Levem-na para o riacho! — era a voz de Anísio, surgindo de trás.

Neste momento, todos ficaram parados. Bernardo apertou Cláudia ainda mais, e Mariana se aproximou, segurando suas mãos. Lentamente, começaram a descer o terreno, em direção à trilha que levava ao riacho.

— Não! Parem! Bernardo, me solta! O que está acontecendo com vocês?

— Seus amigos estão bem! — disse Anísio — Eles estão apenas sob o efeito do forte alucinógeno que eu dei. Você, é claro, não quis beber, mas eles ficarão assim, felizes e obedientes por um tempo.

Enquanto caminhavam, Cláudia tentou protestar, mas Anísio logo recolocou a mordaça em sua boca, dizendo:

— Shhh, silêncio. Sua gritaria pode confundi-los. O ritual que eu fiz exige concentração, não os atrapalhe!

Logo estavam mais uma vez ao lado do riacho, Anísio ordenou que a colocassem de joelhos, de costas para uma pequena árvore. Ele pegou mais um punhado de corda que trazia nos ombros, e amarrou novamente os pulsos de Cláudia, agora prendendo-os ao tronco da árvore.

— Muito obrigado, pessoal! Podem ir se divertir agora! — disse Anísio.

Esteves soltou um grito, levantando as garrafas de cerveja:

— Uhuuuu! Vamos moçada!

Um a um, os amigos se afastaram. Somente Bernardo permaneceu. Com a boca entreaberta, parecia entorpecido. Olhava para Cláudia, mas não parecia estar ali. Parecia estar dormindo. Esteves voltou, passando o braço em seu pescoço e puxando-o. Bernardo sorriu e foi embora atrás dos outros.

Depois de um tempo, Anísio se aproximou:

— Me desculpe! — ele disse, olhando-a nos olhos enquanto exibia um sorriso estranho no rosto — Eu não sei mais o que fazer, estou desesperado, preciso tentar! Adeus, dona Cláudia!

Ele se afastou. Otto ficou ali, olhando para Cláudia. Ele levantou as orelhas e inclinou a cabeça, tentando entender por que ela não estava saindo do lugar. Balançou o rabo e abaixou as orelhas, lambendo seu rosto. Até que Anísio o chamou:

— Venha Otto!

O cachorro deu um leve ganido, e se afastou, com a cabeça baixa. Cláudia estava sozinha.

***

A noite estava escura, mas o brilho das estrelas se refletia no riacho, salpicando-o de pequenos pontos brilhantes. O barulho do pequeno fluxo de água era muito sereno, quase não se ouvia nada. Mas alguns respingos de vez em quando se faziam ouvir, como pequenas pedras caindo na água.

Cláudia respirava fundo. Ouvia seu coração batucando dentro de seu corpo, forçando os tímpanos como se fosse um tambor constante. Sua respiração era pesada, agonizante. Seu queixo tremia, o medo e antecipação tomando conta e trazendo o desespero a cada instante. Até que o terror superou todas essas sensações, paralisando-a completamente.

Ouviu passos pesados e vagarosos, atrás de si. O chão tremia levemente a cada pisada. Cada vez mais perto. Ouviu também a respiração da criatura. Um chiado gorgolejante, parecido com o de um longo tubo metálico. Cláudia fechou os olhos e começou a chorar. Sentiu a presença ao seu lado. Depois percebeu-a movendo-se devagar. Estava na sua frente agora. Bem pertinho. Se abrisse os olhos, veria o monstro. Veria aquela pele escura e os olhos vermelhos flamejantes, sem alma. Não tinha coragem de abrir seus olhos. Restava apenas esperar e torcer para desmaiar logo, para que tudo acabasse de uma vez.

O que aconteceu a seguir foi ainda pior. Ouviu pela terceira vez naquela noite o grito enraivecido de Betina. Estava muito perto, de modo que pode sentir o ar se movimentando em seu rosto. Agora, mais próxima, percebeu que o grito era meio humano, feminino. Mas também era bestial, ao mesmo tempo. Devido ao susto, ela não resistiu e abriu os olhos. Viu o monstro com a cabeça para o alto e os braços esticados para os lados. Em seguida, o braço desceu e bateu com força na árvore, derrubando-a, junto com Cláudia, para o lado.

O violento golpe despedaçou a árvore, de modo que as amarras se soltaram. Milagrosamente, Cláudia tinha sobrevivido. Estava machucada. Certamente tinha quebrado algum osso. Mas estava viva. E precisava sair correndo dali.

Virou-se a tempo de ver o monstro se preparando para outro golpe. Percebendo o que iria acontecer, rolou o corpo para o lado e ouviu o barulho de madeira se quebrando mais uma vez. Sem pensar, pôs-se de pé e saiu mancando.

O monstro parecia ainda mais bravo. Atrás de si, Cláudia ouviu seus gritos enquanto ele terminava de despedaçar a árvore em busca do corpo que estava ali instantes atrás. Aproveitou para ganhar terreno rapidamente, deixando o monstro para trás. Em pouco tempo chegou até a piscina, onde seus amigos bizarramente riam e conversavam. Ela chegou chorando:

— Bernardo! Você está sob o efeito de alguma droga!

Ainda com o olhar impassível, Bernardo negava com a cabeça. Cláudia dava tapas em seu rosto, sem provocar reação. Olhava para os demais, e gritava, mas sem sucesso.

Até que Betina chegou, subindo pela escada que circundava a piscina. O monstro subia derrubando tudo o que via pelo caminho, produzindo enormes estrondos a cada passada. Todos riam e apontavam para a criatura, como se fosse algo muito engraçado. Esteves se aproximou, e começou a dar pisões fortes no chão na frente dele, dizendo:

— Xô, sai bicho feio! Não gosto de cachorros!

Betina olhou para Esteves, e desferiu um golpe com as mãos em sua cintura. O corpo de Esteves se dividiu em dois, jorrando sangue para todos os lados e pintando a piscina com um vermelho vivo.

Cláudia deu um grito, horrorizada. Neste momento, os demais pareceram despertar de seu transe. Trocavam olhares entre si e o corpo despedaçado de Esteves, metade boiando na piscina e metade no deque de madeira. Quando viram a silhueta enorme de Betina recaindo sobre eles, saíram em disparada.

Cláudia segurou a mão de Bernardo e ambos foram correndo em direção à capela. Cláudia ainda ouviu mais um grito atrás de si. Era Lúcia, cujo pedido de socorro tinha sido interrompido pelo rugido gutural de Betina, que aparentemente tinha feito sua segunda vítima.

Bernardo e Cláudia continuaram correndo, e enfim avistaram a entrada da capela. Porém, estava bloqueada. Anísio estava parado ali, segurando uma espingarda em suas mãos. Otto estava atrás dele, preso em uma coleira.

— Nem pensem em se esconder! Vocês vão me ajudar a acabar com isso, e vai ser hoje! — disse Anísio, apontando a arma para eles.

— Seu desgraçado! — gritou Cláudia — Sai da frente!

— Fiquem aí mesmo, paradinhos! — disse Anísio, antes de mirar com a arma e puxar o gatilho. O disparo atingiu a perna de Bernardo, que caiu no chão, gritando.

— Bernardo! Bernardo! — chorou Cláudia.

— Aaaai! Como dói! — ele gritou, segurando a perna ensanguentada.

Anísio entrou na capela e fechou a entrada com um pedaço de madeira. Cláudia olhou para os lados, desesperada, em busca do monstro que devia estar se aproximando. Tentou levantar Bernardo:

— Venha, vamos nos esconder em algum lugar!

Bernardo tentava soltar o braço de Cláudia:

— Meu amor, deixe-me aqui! Vá, fuja! Esconda-se! Eu fico aqui para distrair o monstro!

— Não! Nem pensar! Eu...

Neste momento, Betina apareceu mais uma vez. A criatura estava com as mãos e a boca cheias de sangue. Cláudia imaginou se teria matado alguém mais além de Esteves e Lúcia. Na verdade, não importava, eles eram suas próximas vítimas. O monstro se aproximava devagar, a respiração pesada preenchendo o silêncio da noite, medindo, calculando, pronto para descarregar sua raiva. Cláudia olhou para o céu e percebeu que a luz do Sol começava a querer aparecer no horizonte. "Que pena!", pensou. Alguns minutos a mais e estariam salvos. Em breve o monstro desapareceria, e voltaria somente no dia seguinte, às três e quinze da madrugada.

Neste momento, um pensamento surgiu em sua mente. Sua primeira reação foi espantar-se. Mesmo depois de todo o terror que tinha passado, e estando prestes a sofrer uma morte horrível, ainda preservava sua capacidade de pensar. Passado o espanto, Cláudia teve tempo de processar aquele pensamento, aquela ideia. Era algo que não se encaixava muito bem na história toda. Não fazia sentido. Mas mais do que isso, era uma chance de conseguirem escapar daquela situação.

Enchendo-se de coragem, ela se levantou e se colocou em pé à frente de Bernardo, escondendo-o com seu corpo. O monstro parou, encarando-a com seus olhos vermelhos, e por um instante pareceu não saber o que fazer.

— O que está fazendo? — disse Bernardo, sussurrando — Fuja daqui!

Cláudia o ignorou. Olhando para o monstro, disse com a voz firme:

— Betina! O que aconteceu às três horas e quinze minutos da madrugada, no dia em que você morreu?

O monstro não esboçou reação. Cláudia respirou fundo, torcendo para sua ideia estar dando certo. Continuou:

— Francisco disse que você morreu de manhã, com o dia já clareando. Mas você sempre aparece às três e quinze da manhã! O que aconteceu às três e quinze?

Betina continuou parada, olhando para Cláudia. Ela disse:

— Você não sabe, não é? Acha que foi apenas um acidente, uma briga infeliz que lhe custou a vida... mas você não gostaria de saber o que aconteceu naquela noite?

O monstro agora empertigou seu corpo, ficando ainda mais alto. Cláudia sentiu que estava conseguindo o que queria, pois o monstro parecia confuso, menos disposto a atacar. Ela ouviu um barulho atrás de si:

— Pare! — era a voz de Anísio, gritando de dentro da capela — Pare de conversar com ela ou eu meto uma bala em sua cabeça!

O monstro, ao ouvir aquela voz, emitiu um chiado furioso e curvou suas costas, como um gato enraivecido. Temendo o pior, Cláudia agiu rápido:

— Francisco está ali dentro, Betina! Ele sabe a resposta! Ele pode te contar exatamente o que aconteceu naquela noite! Você não quer saber?

O monstro parecia entender exatamente o que Cláudia estava falando. Ele começou a se mover. Mas ao invés de se aproximar de Bernardo e Cláudia, ele desviou e parou em frente à capela. Ficou ali, parecendo estudar o que fazer. Inclinou a cabeça para o lado, provavelmente imaginando o que aconteceria se tentasse entrar ali.

De repente, um barulho estrondoso irrompeu no ar. Um buraco se abriu na madeira, causado pelo disparo da espingarda. O projétil atingiu em cheio o peito do monstro. Mas a criatura não pareceu ter sentido nada além de um leve empurrão. O disparo deu-lhe a coragem que faltava. Enfiou a mão para dentro do buraco e agarrou Anísio pelo pescoço. Puxou-o para fora com violência, arrebentando a porta, e segurou-o em sua frente.

— Aaaarghh! — ele ofegava — Eu... aarff... não consigo... respirar...

Betina deu mais um de seus gritos aterrorizantes. Estava a um instante de quebrar o pescoço de Anísio. Cláudia precisava agir rápido:

— Vamos, Francisco, diga! — gritou Cláudia — Conte o que aconteceu naquela noite! É isso que você precisa fazer para mandá-la embora! Precisa ter coragem, uma vez na vida!

Ele buscou fôlego, tentando dizer as palavras:

— Eu... naquela noite... eu... eu a traí, com outra mulher!

O monstro então afrouxou o aperto, derrubando Francisco no chão. Betina permaneceu em pé, olhando para baixo, para o homem que lutava para respirar. Ele se ajoelhou e continuou a sua confissão:

— Eu traí você! Eu estava bêbado, sim, mas eu sabia bem o que estava fazendo. Foi uma fraqueza minha, um momento em que eu me perdi! Eu nunca quis magoá-la! Eu não queria... eu a amava demais... se eu pudesse, voltava atrás! Daria tudo para... voltar... atrás…

Ele chorava agora, a cabeça baixa, soluçando. Cláudia e Bernardo ficaram ali, olhando a cena. Estavam ainda muito assustados, claro, por causa da aterrorizante presença do monstro. Mas a criatura começava a diminuir. Ficava menos demoníaca a cada soluço do homem ajoelhado à sua frente. Até que a sua imponente figura se tornou delgada e humana mais uma vez.

Neste momento, Otto se soltou e foi correndo até a sua antiga dona. Ele se aproximou e deu várias lambidas em seu rosto, o rabo sempre abanando. Neste momento, o Sol surgiu no horizonte, banhando tudo com sua luz amarelada. Betina então desapareceu no ar, como se nunca tivesse existido, e o cachorro ficou abanando o rabo e cheirando por todos os lados.

— O que... o que aconteceu? — perguntou Anísio.

— Era você, Francisco! — disse Cláudia — O monstro não era Betina, era você mesmo! Sua culpa, sua raiva, seu remorso, por tê-la traído, por tê-la matado e enterrado, por não ter avisado a polícia. Ele era sua covardia!

Ele concordava com a cabeça, chorando:

— Sim, sim, é verdade! Eu errei muito! Errei! Mas agora vou consertar! Vou colocar a Betina num cemitério, vou...

Cláudia não ficou para escutar. Foi até a casa, sem olhar para trás e sem ouvir o que o homem dizia. Foi até a sala, encontrou o celular caído no chão e o pegou nas mãos. Digitou alguns números e disse para a voz que atendeu:

— Alô, é da polícia? Eu quero denunciar uma pessoa!

***

O dia tinha sido muito longo. Teve muito trabalho, desde as primeiras horas da manhã. O esforço perdurou a tarde toda, se estendeu até a noite, e agora a madrugada já estava adiantada. Mas faltava pouco tempo para finalmente ir para casa e descansar. O policial acabava de carregar a última mala na SUV, que agora estava consertada e funcionando. Tinha passado horas ouvindo depoimentos e explicações nada convincentes. Um monstro tinha surgido e assassinado duas pessoas brutalmente. Segundo os amigos das vítimas, o caseiro era o verdadeiro culpado. Estranhamente, o caseiro concordou com tudo, e confessou ter matado a esposa também, anos atrás. Apesar da história fantasiosa, a confissão servia. O caseiro foi preso, e os demais foram liberados.

Um casal tinha sobrevivido. O marido estava com a perna ferida por uma bala. O caseiro confirmou ter sido o autor do disparo. Os outros dois sobreviventes não eram um casal, e estavam em estado de choque. Estavam vivos, mas muito abalados por terem perdido seus cônjuges. Foram todos juntos em uma ambulância até um hospital da região.

Também tinha estado ali o proprietário da casa. Ao ser contatado pela polícia, tinha aparecido prontamente para prestar seu depoimento. Ele informou que o caseiro era um homem pacato. Às vezes se excedia na bebida, mas sempre cumpria suas obrigações e mantinha a propriedade em ordem. Após concluir sua entrevista, ele chamou o cachorro da propriedade, que entrou feliz em seu carro, e foi embora.

Já era madrugada, mas um grupo de peritos tinha chegado há pouco tempo e começava a escavar embaixo da grande árvore, em busca do corpo da suposta esposa do caseiro. Se realmente encontrassem o corpo ali, a confissão do caseiro estaria confirmada, e ele provavelmente enfrentaria uma longa temporada na cadeia. Sob a luz de fortes holofotes, o policial observava enquanto as pás levantavam a terra e produziam um profundo buraco. Finalmente, um dos peritos gritou:

— Achei algo!

Aproximando-se, o policial olhou para o fundo do buraco, enquanto os peritos removiam a terra de cima do objeto.

— O que é? — perguntou.

— Só um minuto, por favor! — respondeu o perito, alcançando o bolso de seu macacão branco com a mão e pegando um gravador. Ele apertou um botão e começou a gravar sua voz a descrever o que tinham encontrado, enquanto outro perito tirava fotos.

— É um corpo! Está em avançado estado de decomposição. É possível ver cabelos compridos... provavelmente é uma mulher. O corpo foi encontrado exatamente às... — e fez sinal com as mãos para o policial, pedindo que lhe informasse as horas.

O policial olhou no relógio do celular, e disse:

— Três e quinze da manhã.



Fim



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