Amores Sintéticos

Rômulo

Capítulo 1 - Mau hálito

“Só mais um pouco!”

Rômulo fez um esforço para acelerar o passo, tentando não ultrapassar o limiar entre caminhada rápida e corrida. Não queria correr. Se o fizesse, as gotas da chuva desviariam da aba do chapéu para atingi-lo diretamente no rosto. Abaixou a cabeça e permaneceu assim, olhando para os próprios pés enquanto um pensamento se repetia:

“Água de chuva é boa. Lava a alma da gente.”

O pensamento não tinha dono. Era dessas lembranças de infância, fruto da mente de alguma tia que adorava repetir crendices. Ou então era de um filme ruim, colocado na fala de uma personagem fútil por escritores que adoravam repetir clichês. De qualquer forma, era um pensamento idiota. Água de chuva vinha do céu, trazendo consigo restos flutuantes de todo tipo de sujeira que a cidade produzia. Fumaça queimada em motores desregulados e nos pulmões enegrecidos dos fumantes. Restos de produtos químicos usados em larga escala nas padarias e fábricas de tinta. Aparas de metal, plástico e madeira cuspidas pelas esmerilhadeiras e lixadeiras que acordavam todo mundo às cinco da manhã. Mas o pior, certamente, era a poeira doméstica. Era despejada no ar, em movimentos de vassouras e aspiradores de pó vagabundos, de cada um dos milhares de apartamentos dos milhares de arranha-céus que escondiam o céu cinzento. Era um pó fino e asqueroso formado por restos de pele, folículos de cabelo, gotículas de suor, saliva e catarro que desgrudavam dos corpos dos milhões de moradores que se espremiam nos densos residenciais verticais que se multiplicavam por todo lugar.

Uma gota atingiu seus lábios. Sem diminuir a velocidade, pegou um lenço no bolso interno do sobretudo de couro marrom e os enxugou.

Arriscou levantar o rosto brevemente, apenas para ver que a entrada para a estação de metrô se aproximava. Era um buraco profundo, revestido por uma larga escadaria de pedra cinzenta. Durante o dia, exalava escuridão e frescor, trazendo alívio ao calor do cimento e do ar abafado pelas camadas de concreto e aço. Mas estava anoitecendo, e agora o buraco parecia a boca de um vulcão adormecido, com uma fraca luz alaranjada e odores ruins escapando das profundezas.

Rômulo odiava o metrô, mas não tinha outra opção, pois a boate para onde se dirigia ficava na porção subterrânea da cidade, onde os táxis voadores não chegavam. Respirando fundo, venceu os últimos metros sem molhar o rosto. Assim que chegou à entrada, soltou um xingamento. Duas enormes filas alinhavam pessoas entrando e saindo vagarosamente do buraco.

— Não, é melhor pegar a linha trinta e sete — disse um velho que estava saindo.

— A trinta e sete vem sempre lotada nesse horário — respondeu um homem ao lado. — Vale mais a pena esperar um pouco mais e tentar a cento e setenta.

— Você está é maluco! Assim vai demorar quarenta minutos, ou mais. Se tivermos sorte!

Rômulo ficou parado, ouvindo as gotas de chuva tamborilando em seu chapéu e casaco. Pelo teor das conversas, havia algum problema com os trens. Tentou identificar se a linha que pretendia tomar estava funcionando, mas não conseguiu. Não estava com a menor vontade de interagir com aquele bando de pessoas irritadas, então resolveu entrar na fila dos recém-chegados, seguindo assim a vagarosa procissão que descia.

Tão logo se viu livre da chuva, o som ficou abafado, assim como o ar ao seu redor. Suas narinas imediatamente sentiram o cheiro de enxofre do vulcão adormecido. Só que não era enxofre, e sim as expirações das centenas de milhares de pessoas que competiam pelo ar rançoso que os exaustores não davam conta de renovar. Avançou mais um pouco até ouvir uma gritaria mais adiante. De início, não conseguiu discernir palavras inteligíveis, mas logo percebeu que era um funcionário público listando as linhas quebradas e as que ainda funcionavam. Parou a poucos metros do rapaz e, para seu alento, ouviu-o recitando o número da sua linha entre aquelas que ainda estavam operando.

Sem querer perder muito tempo, empurrou braços e costas desconhecidos até chegar em um corredor mais largo. A densidade de pessoas diminuiu e ele conseguiu empregar um pouco mais de velocidade. Por alguns minutos, caminhou livre e chegou até a respirar um ar mais fresco. O breve alívio se desfez assim que chegou perto da área de embarque. Pelo menos cinco fileiras de pessoas se dirigiam ao mesmo lugar que ele, esperando sua vez de embarcar. Havia um funcionário organizando a bagunça, o que era um sinal ainda mais desanimador, pois o trem provavelmente iria trafegar com sua capacidade máxima. Rômulo sabia muito bem que isso significava que em cada vagão haveria o dobro ou o triplo da capacidade máxima estabelecida pelo fabricante.

Respirou fundo para tentar se acalmar, mas logo lembrou que isso significava inalar ainda mais daquele ar pestilento. Prendeu a respiração e caminhou devagar até parar em seu lugar da fila, se é que aquele aglomerado podia ser chamado de fila. Retirou do bolso o cartão com o endereço da boate, memorizando-o rapidamente:

“Cidade subterrânea, círculo sete, canal quinze, segunda travessa à esquerda.”

Esticou os pés para aumentar temporariamente sua estatura e tentar ver sobre as cabeças o enorme mapa horizontal que mostrava os pontos de parada e os trens que circulavam naquela linha. Mesmo com a pintura desgastada, ainda era possível ver nos sinais luminosos que havia cinco veículos se movimentando. Dois deles estavam muito à frente, e três se aproximavam da estação em que estava. Fez um cálculo mental e estimou que seriam necessários pelo menos cinco trens para evacuar toda a multidão acumulada. Isso significava uma espera de pelo menos quarenta minutos. Correu os olhos pelo mapa e encontrou seu destino, a estação do canal quatorze, que ficava nove estações adiante. Em mais uma estimativa, previu que estaria desembarcando em cerca de uma hora e meia. Depois disso, teria que caminhar mais quinze minutos, isso se os corredores não estivessem lotados.

“Ora, é claro que estarão lotados, não seja idiota!”

Meia hora de caminhada, ou mais. No total, chegaria ao seu destino em duas horas, aproximadamente.

Guardou o cartão de volta no bolso e respirou fundo mais uma vez, agora não mais se importando com a quantidade ou qualidade do ar que inalava. Iria demorar, mas pelo menos não chegaria atrasado. Começou a xingar a si mesmo, em pensamento:

“Parabéns, Rômulo, sempre precavido. Se não tivesse saído de casa tão cedo, poderia simplesmente cancelar o serviço por culpa do metrô, e estaria indo de volta para casa em um táxi agora mesmo. O cliente que esperasse mais uns dias. Seu idiota!”

Conformando-se, colocou as mãos no bolso e concentrou-se em juntar todas as doses de paciência que era capaz de invocar.

***

Rômulo despertou assustado após um dos vários solavancos que o trem produzia ao deslizar sobre os trilhos malcuidados. Esse tinha sido particularmente assustador, parecendo até prenunciar um descarrilhamento, mas a viagem seguiu normalmente. Certamente foi um exagero da mente em sono leve.

“Caramba! Eu dormi?”

De fato, tinha adormecido. Não achava que isso poderia acontecer, não naquela noite horrível e naquele metrô barulhento e abarrotado; mas quando chegou sua vez de embarcar, foi agraciado com uma visão alentadora: um banco livre, bem ao lado da porta. Sentou-se imediatamente, abaixou a cabeça e não voltou a levantá-la durante toda a viagem. Como resultado, acabou adormecendo. Era cedo, cerca de nove horas da noite, muito longe de seu horário de sono habitual, porém a insônia crônica que o afligia tinha esse efeito. Sempre que se acomodava de forma minimamente confortável, Morfeu assumia o controle.

Não que estivesse realmente confortável — estava sentado bem perto da porta, a centímetros de distância dos braços e cotovelos dos passageiros apressados que entravam e saíam do vagão. Em mais de uma ocasião teve sua cabeça empurrada e chacoalhada pelas pessoas mal-educadas que faziam pouco esforço para conter seus membros superiores. Decidiu recolher o corpo e grudar a cabeça junto à parede metálica do veículo. A posição quase fetal piorou a sensação de abafamento que seu nariz tanto odiava, mas pelo menos trouxe um pouco de sossego.

Ainda um pouco sonolento, começou a prestar atenção na conversa entre dois homens atrás dele:

— Você viu?

— Vi. Que coisa, não?

— Eu já imaginava que podia acontecer. Era questão de tempo.

— Ninguém podia imaginar.

— Eu imaginava, sim. Eu até falei pra minha mulher, tempos atrás…

— Olha, estão falando no noticiário.

Havia uma grande tela no vagão. Os homens pararam de conversar por uns instantes e se viraram para contemplá-la. Rômulo até virou a cabeça, mas não conseguia ver nada além de uma parede de cinturas e quadris envoltos por sobretudos e capas de chuva molhadas. Teria que se levantar, o que era a última coisa que desejava fazer. Também não conseguia ouvir nada devido ao barulho produzido pelo veículo e às vozes altas das pessoas que gritavam para se fazer ouvir. Virou a cabeça para cima e consultou, no mostrador luminoso que havia sobre a porta, que deveria desembarcar na próxima estação.

Imaginando o desastre que teria sido se não tivesse acordado a tempo, levantou-se e escavou um caminho entre os passageiros até conseguir se aproximar da porta. Quando o trem parou, ainda teve que forçar passagem em meio à onda de pessoas que queriam entrar. Não foi fácil. Pelas caras carrancudas e roupas suadas, aquelas pessoas deviam estar esperando há muito tempo para conseguir sua condução de volta para casa após um longo dia de trabalho. Mas depois de segundos de intensa luta corporal, estava finalmente caminhando livre pelas ruas da cidade subterrânea.

A paisagem mudou um pouco, não de forma muito drástica, afinal de contas tudo ali se resumia a corredores compridos e um teto baixo. Havia lojas e comércio, o que significava uma variedade maior de cores e luzes nas decorações montadas para atrair consumidores. E a variedade se estendia às ofertas. Havia desde lojas enormes de roupas chiques, que custavam um valor absurdamente alto para a pouca quantidade de tecido que as compunha, até lojas de antiguidades abarrotadas de potes, pratos, estantes, armários e velas, em uma mistura improvável de gostos e preços.

Também havia menos gente, aliviando o sistema de ventilação e tornando o ar quase tão respirável quanto o da superfície. Ainda que o cheiro fosse majoritariamente ruim, em alguns lugares era até possível apreciar os sabores e cheiros das cantinas e restaurantes que de vez em quando apareciam num beco ou esquina. Os restaurantes mais vazios eram, é claro, aqueles que cheiravam melhor. Também eram os de aspecto mais refinado e, possivelmente, de custo mais elevado. Rômulo não costumava frequentá-los, pois sua condição financeira preferia cafés e lanchonetes simples, desde que não estivessem cheios de gente. E, de fato, havia ali alguns que atendiam a esses requisitos. Com cadeiras vazias dispostas do lado de fora, traziam um charme que o convidava a parar por alguns minutos e satisfazer a fome que só fazia aumentar.

Consultou o relógio: nove e meia da noite. Havia tempo de sobra, mas era mais prudente deixar a fome de lado.

Apertou o passo. Queria terminar o serviço o quanto antes, não apenas para voltar para casa e usufruir de um merecido descanso. Também queria se ver livre daquela tarefa. Rômulo odiava aquele tipo de serviço.

Ironicamente, era o que sabia fazer de melhor.

Depois de mais alguns minutos de caminhada, avistou seu destino. Na frente da boate, uma enorme fila se apresentava. Animadas, as pessoas conversavam e dançavam timidamente ao som da música que escapava pela pequena porta, enquanto aguardavam a sua vez de passar pelos dois seguranças mal-encarados. A porta era preta, assim como as paredes que a circundavam. O preto da fachada era tão intenso que era incapaz de refletir a luz dos longos fios luminosos de cores brilhantes em tons de azul e violeta que formavam o nome do estabelecimento.

“Veludo Azul.”

Rômulo se aproximou de um dos seguranças. Escolheu o que tinha um aspecto mais sério, que estava atrás. Evitando o olhar das pessoas na fila, estendeu a mão de forma a exibir somente alguns milímetros de uma inconfundível cor esverdeada. O segurança escolhido esticou seu olho treinado e ficou satisfeito com a contagem rápida — havia quatro notas de alto valor ocultas ali. Deu um sorriso discreto e estendeu sua própria mão para o visitante endinheirado.

— Ufa! — disse Rômulo, exibindo a expressão mais amigável que conseguia fazer. — Consegui voltar a tempo de curtir a festa. Obrigado por me deixar sair, antes, para resolver aquele problema.

— Disponha, doutor — respondeu o segurança, aumentando o sorriso e acrescentando nele uma pitada de malícia. — Bem-vindo de volta.

Rômulo deixou as notas escaparem de sua mão e logo se esgueirou pela porta, não se dando ao trabalho de prestar atenção nos protestos frustrados das pessoas que esperavam para entrar.

Prosseguiu por um corredor escuro, sentindo as fortes batidas do ritmo musical aumentarem a pressão em seu peito à medida que se aproximava do recinto principal. Assim que chegou ao salão, começou a se sentir mal. O lugar era enorme, muito maior do que denunciava a sua fachada externa. E estava, como já temia, apinhado de gente.

A primeira coisa que sentiu foi o cheiro, como sempre. O olfato era seu sentido mais influente, ofuscando os demais com uma sensibilidade irritantemente detalhada e exigente. Como se quisesse provocá-lo, o ar viciado daquela boate trazia uma mistura de perfumes, suor, mau hálito e álcool, sendo que esses dois últimos se sobressaíam com pujança indiscutível. Devia haver outras substâncias também. Ele duvidava que alguns mais embriagados se dessem ao trabalho de tentar abrir caminho para ir até o banheiro e urinar em um local apropriado.

Nessas horas, seu instinto dizia para se movimentar. “Mexa-se, traga novos ares ao seu nariz melindroso, assim quem sabe ele te deixa em paz”. Foi o que fez. Porém, o lugar estava realmente lotado. Chegava a ser impossível se mover sem ter que escorregar entre os corpos das pessoas que pulavam ao som da música. E era escuro. Não tão escuro quanto o corredor de onde tinha acabado de sair, mas ainda assim era um lugar onde a visão precisava lutar para fazer seu trabalho.

A sensação era piorada pelo fato de que a iluminação ficava a cargo de luzes estroboscópicas que piscavam aleatoriamente em tons de branco e azul. Brotavam do chão, ou pelo menos assim parecia, era difícil dizer. Suas retinas tinham dificuldade em captar imagens coerentes. Registravam apenas partes humanas isoladas, como uma colagem de flashes instantâneos tirados por uma criança que não sabe usar uma máquina fotográfica. Via rostos sorridentes e embriagados, queixos e pescoços borrados de maquiagem e batom, axilas suadas levantadas, peitos e barrigas descobertos e coxas oleosas se encaixando umas nas outras.

As roupas também chamavam a atenção. Por mais que estivesse acostumado a frequentar esses lugares — sempre a trabalho, é claro —, elas simplesmente não faziam sentido. Eram recortes de panos que cobriam pedaços aleatórios dos corpos das pessoas e dançavam junto com elas. Era igualmente comum ver roupas que cobriam apenas da cintura para baixo, e outras que cobriam apenas da cintura para cima, incluindo a cabeça e o pescoço. Nada no vestuário dos frequentadores da boate indicava alguma tendência de moda ou de clima. E ainda que estivesse quente e abafado, o que justificava uma frequência maior de saias curtas e peitos desnudos, havia também aqueles que usavam longas vestes e capas cobrindo o corpo todo. Era o caso de Rômulo e seu sobretudo de couro, botas e chapéu. Só que, no caso dele, não era uma escolha estética, e sim um gosto pessoal sem embasamento na moda.

O salão tinha o formato de um grande retângulo. No centro havia um palco elevado, sobre o qual havia um conjunto responsável pela música eletrônica. Era composto por três pessoas, dois homens e uma mulher, que dançavam enquanto manipulavam botões e alavancas de alguns equipamentos eletrônicos luminosos. Diferente da maioria, estes vestiam roupas impecáveis e esteticamente agradáveis: trajes sociais finos, em cores claras e discretas, que acompanhavam as curvas de seus corpos com uma caída bem justa e costurada. Além disso, seus movimentos eram ritmados, precisos e sensuais, bem diferentes do pula-pula caótico e embriagado das pessoas na pista. O aspecto deles era tão diferente que Rômulo desconfiava serem robôs.

Ao redor do palco, ficava a pista de dança. Era um lugar aberto, exceto por oito pedestais elevados sobre os quais foram montadas finas gaiolas de metal. Dentro de cada gaiola havia um dançarino ou dançarina. Vestindo quase nenhuma roupa, dançavam de olhos fechados, provavelmente concentrados na passagem do tempo e em coletar seu salário no final da noite. Assim como os músicos do palco, moviam-se de um jeito muito mais profissional e deliberado do que a maioria. Estes, e disso Rômulo tinha certeza, não eram robôs.

Um pouco além do palco, havia um longo balcão de vidro iluminado onde as pessoas podiam adquirir suas bebidas. Atrás do balcão, três mulheres desesperadas corriam de um lado para outro tentando atender às dezenas de beberrões que balançavam as mãos tentando chamar a atenção. A julgar pelos seus semblantes, estavam muito arrependidas de trabalhar ali. De cada lado do balcão havia um corredor, sobre os quais filetes luminosos desenhavam símbolos representando, de maneira bastante abstrata, porém inconfundível, os órgãos genitais masculinos e femininos. Esses eram os banheiros. Ao notar as filas quilométricas, Rômulo prometeu a si mesmo que beberia o mínimo possível para não ter que encarar aquela jornada mais tarde.

Contornando a pista de dança, ficavam as paredes do retângulo, recortadas em nichos que formavam pequenas cavernas ainda mais escuras do que o salão. Eram espaços mais reservados, onde provavelmente acontecia de tudo.

Era em um desses lugares que Rômulo precisaria fazer seu serviço.

Antes, precisava descobrir em qual deles estaria o seu alvo. Pelo horário, ela já devia estar ali. Pegou seu comunicador pessoal do bolso. Com alguns gestos, abriu a foto dela e admirou seu rosto. Já o tinha memorizado antes, é claro. O que fazia agora era apenas um reforço para ajudar na busca. Mulher branca, de cabelos loiros, longos e levemente ondulados. Quarenta e cinco anos, magra, estatura mediana. Seu nome era Mônica. Seu rosto era dolorosamente parecido com o de uma pessoa que ele conhecia.

“Não é ela, Rômulo! É outra pessoa, acalme-se!”

Chegou perto do primeiro nicho, mas não conseguiu ver nada lá dentro. Retirou do bolso outro aparelho, em formato de óculos. Era um gravador de vídeo capaz de captar imagens em ambientes de pouca luz. Colocou-o no rosto e o ligou. Imediatamente, passou a enxergar tudo de maneira clara. Caminhou lentamente, passando por cada nicho e esquadrinhando os rostos em busca da mulher.

No primeiro nicho, havia cerca de cinco pessoas. Estavam sentadas, bebendo e conversando aos gritos, parecendo se divertir bastante. No segundo, havia quatro casais se agarrando. Beijavam-se e apalpavam-se de maneira despudorada. Uma das mulheres tinha os cabelos parecidos com os do seu alvo.

“Bem, aqui vamos nós.”

Aproximou-se e colocou o rosto bem perto da moça, apenas para descobrir que não era Mônica. Ninguém lhe deu atenção e ele prosseguiu sua busca.

Mais cinco nichos foram visitados sem sucesso. Viu mais pessoas bebendo e conversando, um grupo compartilhando um cigarro de cheiro suspeito e outro grupo envolvido em beijos e abraços. Em um dos nichos, havia apenas um casal, que estava claramente transando. Ela estava sentada no colo dele, com a saia levantada e pulando no ritmo da música. Mas era morena, e não loira, então ele seguiu adiante.

Finalmente, em um dos últimos nichos, ele a encontrou. Havia quatro pessoas ali, três homens e ela. Dois dos homens se beijavam e se acariciavam, sentados em um sofá. Mônica estava em pé, encostada na parede, de costas para o terceiro homem. Este a segurava por trás, puxando seu cabelo com uma das mãos enquanto levantava seu vestido com a outra.

Rômulo sentiu o estômago revirar. Imagens parecidas começaram a pipocar em sua mente, evocando lembranças dolorosas que ele lutava muito para esquecer.

“Controle-se! Termine o serviço!”

Apertou um botão na haste dos óculos e começou a gravar. Aproximou-se do rosto dela, de modo a identificá-la de maneira inequívoca no vídeo. Ela não percebeu sua presença, pois estava de olhos fechados, certamente apreciando o momento de prazer proibido. Depois ele se afastou, para mostrar, também de maneira indiscutível, o que ela estava fazendo. Enquadrou o corpo inteiro, mostrando os movimentos repetitivos do homem atrás dela. Ele também não percebeu a presença estranha, pois estava concentrado em transar com a loira à sua frente. Rômulo fez mais um close do rosto dela, tentando capturar o máximo de detalhes possíveis, como a pinta que ela tinha na testa e as leves rugas ao redor da boca. Sentindo o estômago voltando a castigá-lo, decidiu encerrar a gravação. Tirou os óculos e se afastou dali, indo até um lugar mais aberto para respirar fundo e retomar o controle. Decidiu tentar a sorte pegando uma bebida para se acalmar. Aproximou-se do balcão e entrou na disputa pela atenção das pobres atendentes.

Depois de alguns minutos, já com uma bebida gelada refrescando sua garganta e acalmando seu estômago, seu comunicador vibrou. Era seu cliente: o marido de Mônica.

— Alô? — atendeu Rômulo.

— E aí?

— Está feito.

— Ela está mesmo aí? — A dúvida na voz revelava que ainda vivia nele uma triste esperança. Sempre há esperança. Até não haver mais.

— Sim... Sinto muito.

“Detesto esse tipo de serviço!”

O homem ficou quieto, obrigando Rômulo a se esforçar para manter o profissionalismo:

— Eu já vou te mandar o vídeo, assim que chegar em casa.

— Não! — respondeu o homem. — Eu quero falar com ela! Vá até lá, agora!

— Isso não foi o combinado.

— Eu te pago o triplo para você me colocar para falar com a vagabunda agora. Por favor, cara! — O tom suplicante de sua voz se fazia ouvir mesmo sob o barulho intenso.

Rômulo analisou o pedido. Por um lado, teria que renunciar à sua discrição de investigador. Não gostava de se expor, não era bom para os negócios. Por outro lado, havia possíveis benefícios. Se o marido extravasasse seu ódio naquele momento, talvez ficasse menos propenso a planejar alguma retaliação depois. Muitas vítimas de adultério que sofrem silenciosamente acabam fazendo coisas das quais se arrependem. E ele tinha dito… o triplo? O dinheiro extra seria muito bem-vindo.

— Está bem — respondeu Rômulo.

O homem do outro lado da conversa deu um suspiro nervoso. Rômulo pegou novamente seus óculos de gravação e os recolocou no rosto. Após conectar os aparelhos, disse:

— Deve estar vendo o mesmo que eu. Confere?

— Sim, vejo tudo perfeitamente. Vá, agora!

Respirando fundo, Rômulo se dirigiu ao nicho onde estava Mônica. Por um instante não a viu e pensou que ela já tinha ido embora, mas a voz trêmula em seu comunicador logo anunciou:

— É ela! Ali, no sofá.

Mônica estava agora sentada no colo do homem. Ele estava sem camisa, e ela tinha abaixado as alças do vestido até a cintura. Eles se beijavam enquanto ela subia e descia em um movimento repetitivo.

— Me coloca no alto-falante, por favor.

Muito relutante, Rômulo aquiesceu. Esticou o braço e mostrou a tela para a frente. Assim que estava perto o suficiente, ouviu seu cliente gritar:

— Mônica!

A mulher se virou para encarar o estranho que se aproximava. Seus cabelos estavam bagunçados, e sua boca, aberta em espanto, estava borrada pelo batom vermelho. Ela demorou para perceber o que estava acontecendo. Quando viu o rosto de seu marido no pequeno comunicador à sua frente, entendeu que tinha sido encontrada. Seu semblante mudou imediatamente para uma expressão de pânico.

— Samuel?

— Sua vagabunda, safada! — A voz do marido traído soava alta. — Eu devia saber que você estava aprontando.

— Não, meu amor! Não é nada disso, você… eu estava apenas…

Rômulo tentou desligar o cérebro. Já tinha ouvido aquele tipo de discussão, e não tinha como terminar bem. Pelo menos o marido não estava realmente ali, portanto não havia risco de uma briga física ou coisa pior.

Enquanto brigavam, Mônica tentava pegar o comunicador da mão de Rômulo, mas ele não deixou, segurando-o firmemente. Seria até bom descansar um pouco o braço, pois era cansativo, além de muito estranho, segurar um aparelho na direção de uma mulher desesperada com os seios de fora. Mas ele sabia que a conversa iria demorar e queria ter algum tipo de garantia de que poderia ir embora com seu valioso comunicador intacto. A mulher tentou de todo jeito, chegando a arranhar as costas da mão dele com suas unhas compridas, mas não conseguiu. Eventualmente, ela desistiu e ficou ali, sentada e dizendo coisas em uma voz chorosa, apenas para receber xingamentos de seu futuro ex-marido.

Depois de muitos minutos de gritaria, Samuel encerrou a ligação. Mônica abaixou o rosto e começou a chorar. Seu parceiro tentou consolá-la, colocando as mãos em suas costas, mas ela o empurrou. Recolocou as alças do vestido, pegou sua calcinha, que estava jogada no chão nojento, e foi embora em passos rápidos. Rômulo podia finalmente ir embora dali.

Enquanto se dirigia à saída da boate, passou bem perto do palco e reparou que os músicos definitivamente não eram robôs.

***

Já passava da meia-noite quando Rômulo saiu da estação de metrô. Ainda estava chovendo, mas dessa vez não se importou em se molhar um pouco, pois estava exausto. A fome agora estava insuportável, mas havia ao menos uma boa notícia: por ser tão tarde, o restaurante que ficava na esquina de sua casa estava vazio.

Foi recebido com um simpático sorriso pela proprietária do estabelecimento:

— Olha só quem apareceu!

Rômulo apenas acenou com a cabeça e sentou-se em um banco em frente ao balcão.

— O de sempre, Carmem, por favor.

— Boa noite para você também, senhor rabugento. — Ela sorria de maneira amigável, sem ligar para a falta de educação do cliente recém-chegado. — Batatas ou arroz?

Seu rosto era fino, com um nariz pontudo que se destacava na pele sardenta. Seus cabelos vermelhos e encaracolados estavam presos por um lenço branco naquela noite. Ela usava um batom da mesma tonalidade dos cabelos e sardas, mas tinha o hábito desagradável de aplicá-lo um pouco além dos lábios, o que ele achava desconcertante, lembrando-o da maquiagem de um palhaço.

— Batatas.

— Tem certeza? O arroz está soltinho, acabei de…

— Batatas — ele repetiu, seco.

— Nossa, o que aconteceu com você hoje, Rômulo? Me conta, foi alguma coisa no serviço?

— Não quero conversar.

— Está tarde, né? Deve estar cansado, pobrezinho. Eu sempre digo, não se deve trabalhar muito, mesmo que a gente precise do dinheiro, às vezes é melhor…

— Carmem — ele a interrompeu —, apenas me traga um pouco de comida, fazendo o favor?

— Pois não. — Ela comprimiu os lábios e se afastou, finalmente parecendo um pouco ofendida. Mas aquilo não duraria muito. Ele sabia que, quando ela voltasse, faria mais perguntas e daria mais conselhos intrometidos.

Um homem se aproximou e sentou-se ao seu lado. Sem cumprimentar, foi logo falando, seu hálito de cerveja atacando as narinas de Rômulo:

— Ela é inconveniente, não é? Eu sempre me sento longe. Não gosto de ficar no balcão, justamente por causa disso.

Rômulo sentiu as gotículas saindo da boca do homem. Ele tinha o péssimo hábito de aproximar seu rosto ao conversar. Rômulo deu um resmungo, na esperança de calá-lo, mas não funcionou. O homem continuou falando e cuspindo:

— Escuta, nosso prédio está com umas rachaduras, você viu? Eu falei para o síndico…

Era o vizinho de Rômulo, do andar de baixo. Sempre que se encontravam, ele começava a reclamar de algo: do prédio, dos vizinhos, dos cachorros ou da prefeitura. Era uma fonte inesgotável de queixas, independentemente do assunto.

Rômulo se virou na esperança de que o homem percebesse que estava perto demais, mas ele não notou. Suas sobrancelhas grisalhas e longas se moviam enquanto falava, e pequenas gotas de saliva se acumulavam nos cantos de sua boca desdentada. A barba malfeita, com pelos pretos e brancos misturados e trechos de pele enrugada à mostra, contribuía para o aspecto desleixado de seu rosto magro.

— Escute, senhor Gomes — interrompeu-o —, podemos conversar sobre isso outra hora? Eu estou realmente cansado e nem um pouco a fim de ouvir suas reclamações infinitas.

O final de seu apelo continha uma dose não-intencional de agressividade que acabou escapando. Funcionou, pelo menos em parte. O homem desviou o olhar e começou a beber de um copo de cerveja que Rômulo só então percebeu que estava ali. Porém, antes que pudesse comemorar o silêncio, Gomes voltou a falar:

— Está bem, vamos mudar de assunto. Você viu o noticiário da noite?

— Não, não vi.

— Está todo mundo comentando.

Nesse momento, Carmem retornou com um prato de batatas e legumes cozidos, com um pequeno pedaço de frango ensopado em cima. Ela disse:

— Ah, estão falando do noticiário? Nossa, que coisa, não?

— Eu acho que foi muito bem-feito — respondeu Gomes.

— Ai, não fala isso! — retrucou Carmem. — Como pode uma coisa dessas?

— Como pode? — Gomes elevou a voz, assim como a quantidade de cuspe que produzia ao falar. — Eu te digo como pode! Essas coisas aí…

Rômulo colocou a mão nos olhos, apertando-os até ver um caleidoscópio de luzes coloridas. Ficou assim por um tempo, tentando ignorar a gritaria ao seu redor, quando foi surpreendido por um toque leve no ombro.

— Com licença?

Abriu os olhos e encarou o sujeito que tinha chamado. Demorou até conseguir focalizar seu rosto. Era um rosto quadrado e bem proporcionado, com olhos e nariz perfeitamente desenhados. Sua pele lisa não apresentava nenhuma imperfeição, e não havia um único fio de barba por fazer. Seu hálito era completamente inodoro.

— Com licença — ele repetiu. — Poderia se juntar a mim, ali naquela mesa? Eu preciso conversar com você.

Era um robô.

Estranhando o pedido, mas aceitando a oportunidade para se afastar dos outros, Rômulo pegou seu prato de comida e acompanhou o robô até sua mesa.

Assim que se sentaram, o robô disse:

— Não se preocupe, não precisa conversar comigo. Vou ficar quieto, assim você pode apreciar sua refeição sem ser incomodado.

— Hein?

O robô sorriu para ele:

— Eu percebi que você não quer conversar, quer apenas comer. Como seus amigos não parecem ter percebido isso, achei por bem ajudá-lo. Fiz mal?

Rômulo olhou para ele, incrédulo. Não costumava interagir com robôs, pois não eram comumente vistos naquele lado da cidade, e nem se interessavam por seu trabalho. Sem saber direito o que dizer, apenas respondeu:

— Não, de forma alguma. Eu… obrigado.

O robô apenas sorriu, pegou seu comunicador e ficou olhando para ele, entretido com notícias ou qualquer outra coisa que robôs faziam para se distrair.

Rômulo respirou aliviado e começou a comer lentamente. Enquanto apreciava o sabor do frango, só conseguia pensar na surpreendente sensibilidade do robô e em como ele percebeu que realmente precisava de ajuda.

Terminada a refeição, Rômulo tocou levemente no braço de seu companheiro, o que o despertou da paralisia artificial. Sem demonstrar reação, ele foi logo dizendo:

— Espero que tenha apreciado seu jantar.

— Sim, mais uma vez, obrigado.

— Não foi nada. A propósito, meu nome é Dédalo-seis.

— Muito prazer em conhecê-lo. Meu nome é Rômulo. — Estendeu-lhe a mão.

— O prazer é meu, Rômulo. — O robô a apertou. Em seguida, segurou seu comunicador e o apontou para Rômulo, dizendo: — Posso te mandar meu contato? Caso queira um jantar sossegado novamente? — Ele sorria de maneira fria, porém amigável.

— Sim, é claro. — Rômulo pegou seu próprio comunicador e o apontou de volta, finalizando a troca de seus contatos.

— Boa noite. — Sem esperar por uma resposta, o robô se levantou e saiu do restaurante sem pagar a conta. Embora fosse estranho, não era uma atitude inesperada, afinal, robôs não precisavam se alimentar. Ou precisavam? Rômulo sabia muito pouco sobre essas máquinas.

Rômulo se levantou, pagou a conta e saiu do restaurante. Gomes e Carmem ainda discutiam sobre algo, mas ele não quis saber o que era. Queria ir para casa.

Depois de poucos metros, chegou ao seu prédio. Era um pequeno edifício de apenas quarenta andares. Ele morava no décimo, o que era muito bom, pois ficava acima da maior parte da fumaça dos veículos velhos que transitavam por aquelas bandas. Assim que chegou na porta de seu apartamento, tirou as botas e as colocou ao lado do capacho marrom-escuro.

Entrou. Acendeu a luz.

Depois de uma noite cheia de luzes brancas e azuis piscantes e letreiros coloridos por todo lado, a fraca luz amarela do abajur ao lado do sofá teve um efeito calmante imediato. Olhou ao redor e respirou fundo. Apenas cheiros familiares chegaram às suas narinas. Por mais simples e apertado que fosse, era um espaço só seu.

Tirou o sobretudo e o pendurou atrás da porta. Enquanto desabotoava a camisa e soltava o cinto, dirigiu-se ao banheiro. No espelho, um homem à beira da meia-idade o encarava. Seus cabelos curtos e castanhos, já com sinais de entradas perto da testa, estavam suados. Seus olhos castanhos, em um rosto fino, pareciam cansados, e as finas rugas que começavam a surgir sob as pálpebras estavam mais escuras do que o normal.

Depois disso foi para o chuveiro. O banho rápido, em uma água dois graus mais fria do que gostaria, não foi suficiente para dissipar a imagem do adultério que ajudou a desnudar. Por mais que estivesse acostumado, aquela imagem certamente ajudaria a alimentar a insônia que o atormentava noite após noite.

Pois era uma imagem terrivelmente familiar.

“Detesto esse serviço.”

Capítulo 2 - Algo diferente, para variar

— Samuel?

— Sua vagabunda, safada! Eu devia saber que você estava aprontando.

— N-não, meu amor! Não é nada disso… Eu estava apenas dançando com umas amigas e amigos do serviço!

— Dançando? Com os peitos de fora e sentada no colo desse aí? A câmera do detetive filma no escuro, sabia?

— E… eu… me perdoa, Samuca. Me p-perdoa.

— O que você fez não tem perdão, Mônica!

— Eu estou me sentindo t-tão sozinha ultimamente. Não estou dizendo que a culpa é s-sua, mas…

O estômago de Rômulo começou a embrulhar, mas precisava continuar. Tinha que transcrever tudo para colocar no relatório final. Continuou anotando o triste diálogo enquanto lutava contra as sensações ruins que tomavam conta de seu corpo.

— Vamos conversar, amor…

— Acha que tem conversa depois disso?

— Tem, sempre tem um jeito. A gente conserta!

Era difícil focalizar na imagem, pois sua cabeça estava começando a girar. Fechou os olhos, o que foi infinitamente pior. Ao invés de Mônica, a adúltera que tinha gravado na noite anterior, viu sua ex-mulher, em uma lembrança tão vívida quanto aquelas imagens que estava vendo segundos atrás:

— Jana? Rique?

A cena diante dos olhos era surreal. Seu coração parou.

— Ih, fodeu. — A voz dela misturava decepção e desprezo.

— V-vocês… quando? Como?

Janaína suspirou algumas vezes para recuperar o fôlego. Depois saiu de cima de Henrique e puxou o lençol para se cobrir. Disse, em tom de piedade:

— Ah, Rômulo, não precisa fazer cena, né? Você já sabia, não sabia?

— Com meu melhor amigo, Janaína? E-eu… eu v-vou… — Sua visão começou a escurecer.

— Ei, cara? — O amigo parecia genuinamente preocupado.

— Vai se foder, Henrique! Vão se foder, vocês dois!

Rômulo sacou sua arma e a apontou para a cama. O casal de adúlteros levantou as mãos ao mesmo tempo.

— Calma, Rômulo, não vai fazer besteira — alertou Janaína.

— Cara, não acabe com a sua vida! — Henrique parecia mais desesperado do que ela na tentativa de impedir a ação.

— Boa ideia, Rique.

Rômulo virou a arma para a própria cabeça e soltou um riso enlouquecido de dor. Iria puxar o gatilho. Não havia dúvida em sua mente. Era simples. Era fácil. Iria fazê-lo. Mas algo o impediu.

Não foi medo de morrer, nem a culpa por desistir de tudo tão rapidamente. Também não foi a lembrança das amizades que lhe restariam, ou os parentes distantes que ainda eram vivos.

Foi o olhar dela.

Ao ver o que Rômulo pretendia fazer, Janaína não conseguiu conter a alegria que tentava escapar do olhar. Sua expectativa era visível. Ela estava contemplando uma vida sem a miserável presença de seu fraco marido. Uma vida que estava prestes a começar. E o que sentia naquele momento, indubitavelmente, era o mais completo júbilo.

“Ah, você ia adorar se eu fizesse isso, não ia?”

Abaixou a arma e saboreou o sumiço rápido daquele olhar.

— Meu advogado vai entrar em contato. — Foram as últimas palavras que dirigiu àquela que um dia tinha sido o motivo para as principais alegrias de sua vida.

O rosto de Mônica voltou a entrar em foco, substituindo as doloridas lembranças. Ela ainda falava com a câmera, suplicando por uma segunda chance.

Com o devaneio, Rômulo perdeu várias falas, mas ao invés de reprisar o vídeo, decidiu deixar para continuar depois. Sua cabeça estava dolorida, em parte por causa do teor da gravação, mas também por causa da forte luz artificial que brilhava sobre a folha branca do bloco de anotações onde escrevia.

Diferentemente da chuvosa noite anterior, o dia amanheceu ensolarado, o que não queria dizer muita coisa em termos de iluminação. O relógio marcava nove e quinze da manhã, mas as sombras projetadas pelos enormes arranha-céus impediam que a luz do Sol chegasse até sua janela. Se quisessem luz direta, Rômulo e os demais moradores daquela região da cidade teriam que esperar até perto do meio-dia, que era quando o disco solar se fazia visível entre os beirais dos edifícios, centenas de metros acima do chão. Durava pouco, cerca de meia hora, o único momento que se podia perceber que era verdadeiramente dia. Mas mesmo nesse breve instante, a constante poluição do ar consumia boa parte dos tons azuis e violetas do espectro, deixando passar apenas uma luz verde-alaranjada. O resultado era um aspecto doentio e um estado de constante depressão, além de uma escuridão onipresente nos ambientes internos, fazendo das luzes artificiais um item obrigatório a qualquer hora do dia ou da noite.

Levantou-se e espreguiçou-se, esticando as costas e os braços, produzindo uma sensação dolorida, mas gostosa, que aliviava um pouco da tensão acumulada durante o longo tempo sentado. Olhou para a mesa à sua frente: estava impecavelmente limpa. Embaixo da incômoda luminária, não havia nada além da câmera com o vídeo pausado, seu bloco de notas com a caneta apoiada em cima e uma caneca vazia sobre um descanso de papelão. Tampou a caneta, apagou a luminária e pegou a caneca. Meio cambaleante, caminhou até a cozinha para reabastecê-la com café fresco. Encheu o recipiente da cafeteira com a água suja que saía da torneira, colocou três colheres de café moído e ligou o aparelho barulhento. Depois disso, foi até o painel de mensagens ao lado do telefone.

Havia, como sempre, dezenas de propagandas inúteis, mas uma frase lhe chamou a atenção: “Reações ao assassinato”. Vinha de Tiago, um colega detetive com quem interagia pouco e sempre por mensagens. O conteúdo tinha poucas palavras, indo direto a um compilado de gravações caseiras em torno do mesmo assunto: “Pessoas reagindo ao assassinato do robô na Cidade do Ingleses.”

“Assassinato? De um robô? Mas quem faria isso?”

Não fazia sentido. Robôs eram os bens mais cobiçados do mercado. Matar um robô era como jogar uma joia preciosa no fundo do oceano. Um desperdício, quase um pecado.

Os vídeos mostravam protestos de diferentes naturezas. A maioria pedia a cabeça do culpado, erguendo cartazes com dizeres como “Cadeia já!”, “Punam o assassino!” e outras exigências por uma ação enérgica e imediata. Havia alguns mais pacíficos. Fileiras de humanos e robôs abraçados, entoando cânticos de paz e harmonia entre as espécies.

Mas havia um vídeo diferente. Tinha sido gravado apenas alguns minutos antes, aparentemente no local do crime: um bairro conhecido como Cidade dos Ingleses. Duas turbas se encaravam, separadas pela distância de um bom arremesso de beisebol. Do lado dos moradores do bairro, homens e mulheres de rostos enrubescidos esbravejavam e xingavam. Alguns erguiam pedaços de pau, enquanto outros lançavam tijolos e pedras para manter o outro lado afastado. Rômulo conhecia bem aqueles tipos. A Cidade dos Ingleses era um bairro bastante conservador, com prédios baixos e casas térreas revestidas de tijolos e madeira. Os moradores costumavam usar suspensórios, camisas xadrez, saias e blusas de manga longa. Os homens usavam barbas fartas, enquanto as mulheres preferiam cabelos longos, lisos e amarrados.

“Idiotas.”

Confrontando-os, havia um grupo muito mais diversificado, composto por pessoas vestindo uma ampla paleta de cores. Levantavam placas e cartazes com dizeres semelhantes aos dos outros vídeos, pedindo a punição dos responsáveis e a presença da polícia para manter os arruaceiros em seus devidos lugares. Não arremessavam objetos, mas erguiam os punhos e gritavam com a mesma ira e empolgação de seus opositores. Eram os típicos cidadãos modernos: cores, corpos e vozes muito mais variados e uma total falta de senso do ridículo. Mais afeitos a protestos e notas de repúdio do que a ações concretas, achavam-se superiores aos outros. Claro, não diziam isso em voz alta, pois provaria justamente o contrário.

“Idiotas.”

Em certo momento, saindo do meio do grupo de forasteiros, duas mulheres vestidas de branco avançaram de mãos dadas, caminhando vagarosamente. Os gritos diminuíram um pouco, e o ar ficou momentaneamente livre de objetos voadores. Quando a imagem tremida se estabilizou, Rômulo notou que apenas uma delas era uma mulher de verdade. A outra era uma robô, a julgar pelo porte físico perfeito e o rosto semelhante ao de uma boneca de porcelana. Elas pararam exatamente no meio dos dois grupos e ergueram as blusas, exibindo os seios nus, onde se liam duas palavras pintadas em tinta vermelha, uma em cada corpo: “paz” e “amor”.

Até então, Rômulo não estava prestando muita atenção aos protestos, mas, naquele momento, percebeu que algo mais grave estava para acontecer e sentiu um frio na barriga.

“Não, não. Vocês não fizeram isso… suas idiotas.”

Um enorme pedaço de ferro, arremessado com precisão, atingiu a manifestante humana no peito. Logo em seguida, uma pedra atingiu o crânio da robô, revelando o metal por baixo. A imagem começou a tremer, mas ainda foi possível ver as duas correndo de volta para a segurança, enquanto as turbas voltavam a pular e gritar como primatas enfurecidos. Depois disso, a câmera mostrou apenas o chão e pés em correria, e nada mais.

O café ficou pronto. Pegou a caneca fervendo e caminhou até a janela. Enquanto bebericava o líquido amargo, contemplou o mundo lá fora. Dezenas de metros abaixo, as pessoas se acotovelavam nas calçadas estreitas, evitando cair nas ruas cheias de carros e máquinas. Pareciam pequenas formigas em suas tarefas intermináveis de levar comida de um lugar para outro, o que era, de certa forma, uma imagem muito próxima à realidade da maioria. Ninguém parecia fazer nada além de trabalhar para comer e comer para trabalhar.

Não havia muitos robôs naquele bairro. O principal motivo, é claro, era que nenhum morador dali tinha o tipo de dinheiro necessário para comprar um. Muitas vezes, as pessoas tinham que escolher entre comprar um robô ou uma casa própria. Havia modelos refinados que custavam mais do que uma cobertura de cinquenta metros quadrados no centro da cidade. Isso sem falar na manutenção. Não que fossem frágeis — eram comparáveis a seres humanos nesse quesito, alguns sendo até mais resistentes —, mas, quando quebravam, exigiam uma fortuna em peças e serviços. Então, para um morador de um simples bairro afastado, era um luxo que ia muito além das possibilidades de uma vida inteira de trabalho assalariado.

Rômulo não era pobre. Morava sozinho em um apartamento, o que por si só era muito mais do que a maioria podia sonhar. Era um apartamento pequeno, de dezoito metros quadrados, com três cômodos: um quarto, uma sala com cozinha integrada e um pequeno banheiro. Ficava num bairro ruim, numa vizinhança suja e mal-educada, mas Rômulo tinha orgulho da organização e do conforto que conseguia manter dentro daquelas quatro paredes finas. Não era o proprietário, obviamente. De fato, quase ninguém era dono do lugar onde morava; a maioria pagava aluguel. Quem tinha dinheiro suficiente escolhia ter um robô, que, além de ser um sinal de riqueza, tinha uma utilidade inestimável. Virtualmente idênticos aos humanos, os robôs eram incrivelmente capacitados e úteis, superando seus criadores de carne, osso e sangue em quase todas as tarefas. Infinitamente prestativos e educados, realizavam todo serviço que lhes era solicitado com eficiência.

Quase todos adoravam os robôs.

Quase todos.

Havia grupos contrários à ideia de seres sintéticos andando entre as pessoas. Eram uma minoria extrema, dominada por religiosos radicais. Diziam que robôs eram demônios ou seres sem alma que serviam apenas para corromper e tornar a sociedade preguiçosa. Isso até faria sentido se não fossem produtos tão caros e exclusivos. Pouquíssimos podiam se dar ao luxo de entregar seu trabalho às máquinas. A esmagadora maioria tinha que suar muito para conquistar seu pão de cada dia, portanto a humanidade ainda estava longe de delegar todas as suas tarefas a autômatos milagrosos. A lógica, infelizmente, não fazia parte dos argumentos dos ativistas antirrobôs, que encontravam qualquer desculpa para protestar e reclamar. Até o dia anterior, era tudo o que faziam. Agora, aparentemente, alguém resolveu agir.

Um caminhão fez barulho lá embaixo ao acelerar na rua estreita. Jogou fumaça na cara das pessoas que andavam pela calçada e dos moradores dos andares mais baixos dos prédios que enclausuravam a via. Um logotipo preto e branco podia ser visto em sua carroceria. Era formado por duas letras, “MN”, grudadas a ponto de parecerem uma só, desenhadas em linhas retas, na cor branca, contra um fundo preto com formato de quadrado arredondado. Nesse momento, algo estalou dentro da cabeça de Rômulo. Voltou ao painel de mensagens e abriu a que continha os vídeos que tinha visto há pouco. Avançou a reprodução até uma cena em particular, que mostrava, em panorâmica, os moradores da Cidade dos Ingleses. Usando um gesto com os dedos, aproximou a imagem até focalizar em um grupo específico de pessoas. Não eram muito diferentes da multidão ao seu redor: o mesmo tipo de roupa tradicional e um exagero no uso de barbas e cabelos compridos. Só que muitos usavam um boné com o mesmo logotipo “MN” que acabara de ver no caminhão.

“Máquinas Neuer.”

Sua memória se ativou. Era um grande conglomerado do ramo de robótica, que estendia seus tentáculos a todos os nichos de mercado que conseguia alcançar. Fábricas de veículos, empresas de construção, comércio de aparelhos eletrônicos e laboratórios da indústria química eram apenas uma fração de sua presença na economia. Além disso, possuíam terras por todo o país. Embora não pudesse afirmar com certeza, suspeitava que metade das casas, prédios e galpões do Bairro dos Ingleses fossem de propriedade deles.

“Provavelmente apenas uma coincidência.”

Rômulo terminou de beber seu café, lavou a caneca e foi ao quarto trocar de roupa. Ainda não tinha terminado o relatório, mas precisava ir ao escritório, onde iria se encontrar com seu cliente para receber pelo serviço da noite anterior. Olhou-se no espelho e respirou fundo, como sempre fazia ao sair de casa, preparando-se para enfrentar a multidão nas ruas. Porém, a luta diária começou um pouco antes do que esperava. Assim que abriu a porta, deu de cara com Denise, sua vizinha do apartamento ao lado.

— Oi — ela disse, com sua cara triste de sempre.

— Bom dia — Rômulo respondeu de costas, enquanto passava a chave na porta.

— Você viu o noticiário? — Seus olhos eram grandes, castanhos. Os cílios piscavam de maneira exagerada enquanto falava.

— Ainda não, estive trabalhando a noite toda e agora de manhã também estou bastante ocupado. — Deu dois passos em direção à escada.

— Mataram um robô — ela murchou a boca, tristonha.

— Fiquei sabendo.

— Não é estranho? Por que alguém faria isso?

— Não faço a menor ideia… Desculpe, Denise, estou com pressa.

— Oh, está bem. A gente se vê de noite? — Ela deu um sorriso que não foi capaz de apagar o aspecto enfadonho do rosto.

Denise vivia insinuando que saíssem juntos. Assim como Rômulo, também morava sozinha, mas não tinha emprego. Sobrevivia com o dinheiro enviado pelos pais.

— Vou chegar bem tarde hoje.

— Oh, está bem. Outro dia, então.

— Quem sabe? Tchau.

— Tchau.

Rômulo sentiu o olhar da vizinha acompanhando-o enquanto descia as escadas. Denise não era feia. Tinha um corpo esguio, mas com curvas salientes e apetitosas. Seu rosto era bem proporcionado, fino, e os cabelos ruivos encaracolados caíam bem sobre a testa e bochechas. Apesar da beleza natural, não sabia se vestir direito. Sempre usava calças compridas que eram largas demais para seu corpo, e camisetas com estampas tão coloridas quanto cafonas. Também tinha um cheiro estranho, que misturava o odor de cabelos que ficaram úmidos por muito tempo com o do bolor que impregnava o apartamento onde passava o dia inteiro sem fazer nada. Rômulo não conseguia ficar muito perto dela sem sentir repulsa. Além disso, era insuportavelmente chata. Não sabia fazer outra coisa além de reclamar da vida, da vizinhança, dos parentes, da política, da cidade, do país e do mundo todo.

Chegou ao térreo e caminhou alguns minutos até chegar ao ponto de táxi. Não havia nenhum tipo de ordem ou fila ao redor do poste amarelo que sinalizava a área de pouso. O grande número de pessoas ali não se preocupava com os princípios básicos de civilidade, como pedir licença ou recolher os braços para não esbarrar na cabeça da pessoa ao lado. Também não respeitavam a ordem de chegada. Simplesmente passavam na frente como se fossem os únicos precisando chegar logo ao seu destino. Havia muitos transportes chegando, formando uma longa fila no céu, mas não adiantava muito, pois antes mesmo que um veículo pousasse, já havia dois ou três mal-educados lutando para ficar no lugar certo para embarcar. Faltava pouco para que alguém fosse empurrado para debaixo de um táxi e morresse amassado.

Rômulo estava irritado. Ainda havia cerca de dez pessoas à sua frente, mas o número diminuía muito vagarosamente, devido aos fura-filas. A maioria era por falta de educação mesmo, mas havia alguns idosos, que gozavam de prioridades no embarque, conforme a lei. Esses eram ainda mais irritantes, pois pareciam tão saudáveis quanto os demais. Rômulo não foi o único a perceber isso. Um rapaz reclamou quando um dos supostos idosos entrava no veículo:

— Tá furando a fila, cara?

— Eu sou idoso, tenho direito.

— Idoso? Ainda tem espinhas na cara, seu safado!

— Quer que eu enfie minha identidade na sua cara?

— Experimenta!

— Espere sentado, seu babaca. Ou melhor, espera aí em pé, enquanto pego meu táxi. Tchau, idiota!

O mau humor era uma constante, e Rômulo teve que aprender, a duras penas, a se blindar desse ambiente tóxico. Bastava fechar os olhos e aguardar, não era o fim do mundo. Foi o que começou a fazer, quando uma voz chamou sua atenção:

— Rômulo?

Abriu os olhos e olhou na direção da voz. Um veículo preto pairava a centímetros do chão, a poucos passos dali. Não era um táxi, e sim um carro particular revestido por uma belíssima e impecável pintura preta. Um rosto sorridente flutuava na janela aberta.

— Rômulo? — Era Dédalo-seis, o robô que tinha conhecido na noite anterior. — Venha, eu te dou uma carona.

Estranhando muito a coincidência, Rômulo abandonou relutantemente seu precioso lugar na fila e se dirigiu até o local. Disse, com uma cara assustada:

— Você? O que faz aqui?

— Negócios. Entre, eu te explico.

Rômulo olhou para trás e apreciou a cara de inveja das dezenas de passageiros afoitos e nervosos à espera de um táxi. Com um sorriso maroto, abriu a porta e entrou no luxuoso veículo. Sentado no banco de couro brilhante, estava o robô. De pernas cruzadas e com um dos braços apoiado no encosto traseiro do banco, fez sinal para que seu convidado se sentasse.

— Para onde vai? — Dédalo perguntou, cordialmente.

— Se puder me deixar no próximo ponto de táxi, eu agradeço. Este aqui está muito lotado, como pode ver.

— Para onde vai? — Dédalo abriu um sorriso ainda maior.

Rômulo hesitou ao responder:

— Distrito noventa e quatro. É meio longe, não precisa se incomodar.

— Distrito noventa e quatro! — repetiu Dédalo, informando o destino ao motorista, que não ficava ali, e sim em uma central de comando. A maioria dos veículos era autônoma, controlada remotamente. O rosto do motorista fez um sinal positivo que apareceu na tela do comunicador de alta definição. Dédalo completou:

— Mas espere até que eu desembarque, por favor.

— Mas… — Rômulo começou a protestar.

— Não precisa dizer nada. É um prazer ajudar.

— Nem sei como agradecer.

— Não precisa, eu já ia descer aqui mesmo. O favor é de graça.

— Bem, o combustível…

— Carro da firma. — O robô deu uma piscadela, interrompendo o protesto de Rômulo. — Ninguém vai verificar.

Rômulo sorriu, mais uma vez encantado com a solicitude do robô.

— Bem, muito obrigado. Te devo uma. Aliás, duas. Ontem à noite você também me quebrou um galhão. Me diga, o que faz por aqui? Não é comum vermos robôs nessa vizinhança.

Dédalo-seis abriu a porta e saiu do veículo. Antes de se afastar, entregou um cartão para seu passageiro. Sem dar tempo para a leitura, explicou:

— Estou aqui na região para organizar um evento hoje à noite.

— Evento? — Rômulo bateu o olho no cartão. Era o endereço de um velho balcão abandonado que estava em obras nas últimas semanas.

— Sim, um show dos Milenares.

— Milenares?

— Não conhece? É um grupo bem famoso.

— Não. É teatro?

— Música! — Dédalo fez uma pequena dança com os braços e corpo. Ele tinha gingado. — A melhor banda de robôs da cidade. É a primeira vez que eles se apresentam nesta região.

— É provável. Não há muitos shows por aqui.

— Pois então. Devia ir.

— Não sei. Não gosto de lugares lotados.

— Devia ir. — Seu sorriso alegre ficou mais misterioso. — Vai ser bom para você. E para mim também. Quanto mais pessoas forem, maior a minha comissão.

— Vou pensar.

O robô o olhou por uns instantes, parecendo analisar a probabilidade de Rômulo estar dizendo a verdade. Em retribuição, o investigador também analisava seu rosto artificial. Cabelo preto, liso, brilhante e bem penteado. Pele lisa, lábios simétricos e nariz reto. Uma verdadeira escultura lapidada à perfeição pelos fabricantes. Também se parecia muito com uma foto retocada artificialmente, daquelas que aparecem nas revistas e notícias de fofoca. Uma voz interrompeu a estranha interação:

— Senhor? Preciso decolar — disse o motorista pelo comunicador.

Dédalo-seis deu dois tapinhas na lataria e se afastou, ainda sorrindo. Enquanto o veículo ganhava altitude, ele gritou:

— Chegue cedo, dez horas no máximo. Me procure assim que estiver lá. Eu te pago um drinque.

Acenando, Rômulo ficou pensando no erro grosseiro de julgamento do robô. Ir a uma festa por vontade própria era a última coisa que faria naquela ou em qualquer outra noite.

***

— Aqui está. Seis mil créditos, conforme combinado.

— O triplo. Valeu a pena?

Samuel coçou os olhos. Seu semblante derrotado era um reflexo de suas roupas sujas e malcuidadas.

— Ah… foi bom porque ela não teve como negar. Foi pega no ato.

— Isso é verdade.

— E se eu estivesse lá pessoalmente, acho que… não consigo imaginar o que faria.

Rômulo não precisou imaginar. Ele sabia.

— É verdade. Na hora da raiva — as memórias lhe vieram à mente —, muitos perdem o controle.

Samuel concordou, cabisbaixo. De repente ele perguntou:

— Posso te pedir uma coisa?

— Pois não?

— Eu posso ver a gravação?

— Eu acho melhor não. — Rômulo engoliu em seco ao responder. — Eu te envio a transcrição amanhã, sem falta. Ainda não terminei.

— É que… eu queria ver uma coisa. Na hora não deu pra ver.

— A transcrição…

— Não foi nada que ela falou. Eu queria ver uma coisa. Por favor?

A contragosto, Rômulo cedeu. Passou o aparelho para Samuel, que colocou a gravação para reproduzir. Depois de alguns segundos, ele disse:

— Aqui. Olhe.

— Eu já vi o vídeo todo.

— Acha que ela está arrependida? Veja, o olhar dela. Por favor, eu preciso muito saber.

Suspirando fundo, Rômulo pegou o aparelho e contemplou o rosto de Mônica. Sua boca estava distorcida. A maquiagem borrada e as rugas na testa destacavam o desespero e a tristeza congeladas no quadro da gravação. Era impossível não perceber a verdade.

— Não sei dizer — respondeu. — Você a conhece melhor do que eu, deve ser capaz de julgar sua expressão.

— Ficamos conversando a noite toda. Ela jurou que vai mudar, me pediu perdão. Acha uma boa ideia perdoá-la? Acha que ela está arrependida?

Rômulo olhou para o vídeo e mais uma vez não conseguiu afastar a lembrança de Janaína. Lembrou-se do seu olhar de alegria ao ver o marido ameaçando o suicídio. Em nada se parecia com o rosto daquela mulher, uma imagem cristalina do mais puro arrependimento. A julgar por aquela imagem, Mônica amava Samuel e estava disposta a merecer seu perdão. Não havia dúvidas sobre isso.

— Desista dessa mulher, amigo. — O conselho rancoroso saiu de sua boca sem a menor dificuldade.

Samuel o olhou com tristeza uma última vez e assentiu com a cabeça.

— Tem razão. Obrigado, detetive.

Rômulo acenou em resposta e observou enquanto seu cliente saía da sala. Mal teve tempo para pensar no que tinha acontecido, pois ouviu seu nome sendo chamado no comunicador sobre a mesa.

— Rômulo? — Era a secretária daquele andar.

— Sim, Teresa?

— Tem um cara aqui querendo conversar com você. Disse que é do escritório de contabilidade.

Rômulo suspirou. Tinha esquecido aquele compromisso. Teria que passar o resto do dia revisando os gastos e recebimentos do mês.

— Pode deixar entrar.

— É pra já, querido.

Levantou-se e pegou os créditos que tinha recebido. Separou-o em três partes, deixou uma delas na gaveta e colocou o restante em sua carteira. O contador não precisava saber que recebeu o triplo pelo serviço.

***

— Foram os terroristas do Sudoeste, estou te falando.

O restaurante estava lotado. Rômulo conseguiu um lugar no balcão, espremido entre dois homens. Um deles era Gomes, seu vizinho, argumentando com a dona do estabelecimento. Ela respondeu:

— Como você pode saber, senhor Gomes? Ninguém sabe.

— Carmem, sua tola. É só ver o noticiário. Eles querem provocar tumulto, causar o caos aqui na cidade.

— Não falaram nada disso no noticiário — respondeu a mulher, com um olhar genuinamente preocupado.

— Me refiro ao noticiário de verdade. Não esse aí que transmitem de graça pra todo mundo ver.

— E o que mais falaram nesse seu noticiário de verdade? — Rômulo lançou um olhar desafiador ao vizinho, enquanto sugava um pouco de caldo quente da colher.

O velho ergueu o queixo e reproduziu o boato que certamente esteve ruminando por um bom tempo:

— Querem provocar uma rebelião dos robôs. Querem que os robôs fiquem com raiva dos humanos e destruam tudo por aqui.

— E o que os tais terroristas ganhariam com isso? — perguntou Rômulo.

— Terrorista só quer causar terror, eles não têm que ganhar nada.

— É, suponho que não. — Rômulo voltou a encarar seu prato de sopa, sem querer continuar a conversa sem sentido.

O sujeito do outro lado tossiu, espirrando ar e gotas de saliva na direção do prato de Rômulo. Ele fechou os olhos e contou até dez.

“Calma. Germes não sobrevivem mais do que poucos segundos num caldo quente desses.”

Alguém na mesa do fundo gritou:

— Ei! Dona! Dona!

— Já vou, espere um segundo! — ela respondeu. Depois se virou para Gomes e continuou: — Isso não faz o menor sentido. Robôs não podem atacar humanos, podem? Eu nunca ouvi algo parecido.

— Eles têm uma programação escondida. Um mecanismo de defesa. Se forem provocados do jeito certo, vão lutar para sobreviver.

— Bobagem.

— Você acha que a indústria não ia querer proteger seus produtos mais valiosos? Robôs custam uma fortuna! Pode acreditar que tem uma boa dose de violência programada por trás dessas caras bonitas e desse jeitinho amigável.

Rômulo pensou em Dédalo-seis fazendo sua dancinha ao lado do táxi. Não conseguia imaginá-lo atacando um ser humano.

Cansado da conversa fiada, terminou de beber sua sopa contaminada, pagou a conta e foi embora. A primeira coisa que fez ao chegar em casa foi guardar seu recém-conquistado pagamento no cofre que tinha no armário da cozinha. Ao abrir a carteira, o cartão branco entregue por Dédalo escapou e foi parar no chão. Olhou para o relógio: nove e meia. Se saísse naquele momento, daria tempo de ganhar aquele drinque grátis.

Soltou um riso debochado, colocou o cartão sobre o balcão e decidiu tomar um demorado banho. Antes que pudesse se mexer, a campainha tocou. Abriu a porta para ver uma sorridente Denise à sua frente.

— Oi Rômulo, tudo bem?

Ela usava um vestido diferente do que o usual. Era mais curto e justo na cintura. Porém, era florido demais para seu gosto. Sua boca, no entanto, estava mais bonita do que de costume, assim como seu rosto. Tinha se maquiado.

— Oi Denise, o que quer?

— Você disse que ia chegar tarde, mas não chegou. Então pensei em dar um alô.

— Oh, bem… alô. — Rômulo sorriu e se arrependeu imediatamente de ter feito um gracejo. Denise gostou e sorriu de volta.

— Está diferente hoje — ela disse.

— Acha?

— Sim. Você está atraente.

Rômulo olhou para baixo. Estava usando suas roupas de sempre, calças marrons, camisa branca e casaco marrom por cima.

— Você também está diferente… está usando um vestido novo?

Os olhos dela acenderam:

— Você reparou? Sim, comprei hoje.

— É bonito.

— Está ocupado? Pensei que podíamos preparar um jantar juntos.

— Acabei de jantar, me desculpe.

— Podemos ver um filme.

— Olha, Denise, não vai dar. Eu tenho que…

— Tem que o quê? — Ela parecia impaciente.

— Eu tenho um compromisso.

— Onde? Você nunca sai de casa depois que chega do serviço.

— Bem…

— Rômulo, você está diferente hoje, eu estou percebendo. Por que não faz algo novo, para variar? — Ela sorria e o olhava desafiadoramente.

Rômulo ficou sem saída. Podia ser sincero e dizer que não gostava dela, e que a achava uma chata. Ou então, podia ceder à investida e passar algumas horas ouvindo reclamações e desviando-se do assédio enquanto fingia ver um filme desinteressante. Em qualquer um dos casos, o dia seguinte o aterrorizava. O que seria menos ruim? Aguentar seus choros lamuriosos e os olhares de vítima que ela certamente faria questão de mostrar sempre que se encontrassem? Ou alimentar uma falsa esperança de que algum dia ele teria coragem de transar com ela?

Rômulo pensou por uns instantes. Não sabia o que fazer. Nesse exato momento, o som do chamado de seu comunicador tocou dentro do apartamento. Agradecendo o breve momento de alívio, disse:

— Com licença, preciso atender.

Deu alguns passos para dentro de casa e procurou pelo aparelho, que estava sobre o balcão da cozinha. O mostrador indicava que a chamada vinha da polícia.

“Polícia? A essa hora? O que pode ser?"

Ficou imaginando se tinha feito algo errado, mas não conseguiu se lembrar de nada. O comunicador não parava de tocar.

— Rômulo? — Denise o chamava do lado de fora. — Está tudo bem? Não vai atender?

Sim, devia atender. Seria uma boa desculpa para mandar a vizinha chata embora, mas algo lhe dizia para não o fazer. Não tinha feito nada de errado — tinha quase certeza disso —, mas não queria arriscar.

— Rômulo?

Se tocasse no aparelho, mesmo que não o atendesse, saberiam que ele estava ali e que tinha optado por não atender. Se tivesse mesmo feito algo errado, fariam uma visita.

Nesse momento, seus olhos pousaram no pequeno cartão branco sobre o balcão, ao lado do aparelho. O endereço da tal festa se exibiu para ele.

“Ora, que se dane! Se for importante, ligam de novo.”

Mesmo sabendo que se arrependeria depois, deixou o comunicador fazendo barulho sozinho. Pegou o cartão, fechou a porta, calçou as botas e disse:

— Eu tenho mesmo um compromisso, Denise. Me desculpe. Tchau.

Deixando a vizinha de boca aberta atrás de si, Rômulo começou a descer as escadas, enquanto conferia o endereço do tal evento no cartão.

“Um drinque de graça até que vai cair bem agora.”

Capítulo 3 - Conhaque

O arrependimento foi imediato.

“Que merda estou fazendo aqui?”

Assim que entrou no enorme galpão, Rômulo sentiu vontade de ir embora. Estava tão lotado quanto o local de sua última aventura em uma festa, a boate “Veludo Azul”, mas era ainda maior. Isso significava que havia muito mais gente ali. Também estava escuro. Apenas as luzes estroboscópicas davam às retinas raras chances de enxergar alguma coisa, e o que via eram pessoas pulando e dançando por todo lado. Havia também, é claro, o barulho. Em um volume próximo ao limite de provocar uma lesão nos ouvidos, não deixava espaço para o cérebro raciocinar. Pelo menos o cheiro não era ruim. Por ser um galpão antigo, o teto era bem alto, o que ajudava com a ventilação. Foi isso o que o impediu de ir embora assim que chegou. Além do drinque prometido, é claro.

Não fazia ideia de como encontrar Dédalo-seis em meio àquela multidão. Decidiu se mexer, em busca do robô ou de um bar. Qualquer um dos dois serviria ao objetivo de tornar a experiência tolerável.

Enquanto abria caminho em meio ao bloco maciço de corpos suados e embriagados, fez um esforço para entrar no clima e apreciar o ambiente. Depois de um tempo ali, seu ouvido se acostumou com o barulho e passou a discernir os acordes e melodia produzidos pela banda robótica, os tais Milenares. Rômulo não sabia dizer onde eles estavam, mas telões espalhados nas paredes mostravam o grupo animado de quatro músicos dançando e cantando. Eram dois homens e duas mulheres, todos vestindo o mesmo modelo de calças sociais, paletó, gravata e chapéu, na cor branca, sobre uma camisa social preta. O branco do tecido brilhava de forma intensa sob as luzes de néon azulado que iluminavam o palco, destacando seus movimentos sincronizados e reforçando sua natureza robótica.

E a música, de fato, era boa. Era uma melodia simples, adornada por um complexo arranjo de sons eletrônicos. O som tinha um caráter quase hipnótico, com batidas graves repetitivas e baixos de timbre sintético que entravam na mente. Sobre esse acompanhamento, as quatro vozes cantavam, alternando entre uníssonos e harmonias precisas, evocando um sentimento que Rômulo não sabia descrever, mas que era agradável e provocava um inesperado bem-estar.

As pessoas pareciam se divertir, com danças malucas e movimentos caóticos, seguindo as batidas simples da música, mas também pareciam se exibir. Olhavam bastante para os lados, encarando longamente qualquer um que passasse por perto. Rômulo tentava desviar os olhos, mas acabou sendo atraído por um rosto familiar. Era Fermino, um consultor financeiro que trabalhava no mesmo prédio de escritórios que ele.

— Rômulo? Não acredito. É você mesmo?

— Noite, Fermino. Como está?

— No paraíso! E não acredito que você esteja aqui. Roberta! Olha quem eu encontrei! — Fez sinal para uma mulher a poucos passos dali.

— Quem é?

— Oi, Roberta, tudo bem? — Rômulo cumprimentou a mulher, que também reconheceu, do prédio. Era dentista e trabalhava dois andares abaixo do seu.

— Rômulo? — Ela abriu um sorriso irônico. — Você? Aqui? Eu não acreditooooo!

— Pois é, estou aqui, não é?

— Que máximo! Venha dançar com a gente, tem uma galera aqui. Chega mais.

Roberta puxou-o para perto e começou a dançar ao seu redor, ainda mais animadamente do que antes. Enquanto se acostumava com o ambiente, Rômulo foi reconhecendo as pessoas. De repente, aquela multidão passou de uma massa de desconhecidos para um grupo de rostos familiares. Reconheceu Carla, que trabalhava com serviços de limpeza e organização; Anselmo, dono de uma pequena fábrica de tintas; Marcos e Silmara, um casal que trabalhava em um escritório de contabilidade; além de outros que não sabia nome ou ocupação.

Não eram seus amigos, muito longe disso, mas a sensação de não estar em meio a completos estranhos lhe trouxe um pouco de ânimo. Porém, vê-los em um ambiente tão diferente do profissional causava certo constrangimento, principalmente devido às roupas extravagantes que usavam. Ao invés de ternos sem graça, paletós neutros, camisas sociais, gravatas e saltos discretos, usavam camisetas cavadas, calças justas e coloridas, saias curtas e botas de cano alto. Os cabelos, normalmente lisos, escuros e bem penteados, estavam agora desarrumados, coloridos ou descoloridos. Além disso, rostos limpos foram cobertos por maquiagens variadas, tanto em homens quanto em mulheres.

A sensação de estranheza se dava porque Rômulo quase nunca os encontrava socialmente. A maioria era simpática e cordial, e Rômulo gostava deles, pelo menos no ambiente de trabalho. Não sabia como interagir com eles em uma festa daquelas. Na verdade, não sabia como interagir com ninguém em uma festa daquelas. Sentia-se como um peixe fora d’água. Mesmo assim, sem querer parecer um estraga-prazeres, ele acompanhou os movimentos deles, tentando ignorar a incômoda sensação de que sua tentativa patética de dança era observada com estranheza por todos. Ninguém parecia ligar; estavam todos dançando igual ou pior do que ele.

Roberta disse, gritando em seu ouvido para se fazer ouvir:

— Eu disse para o Fermino que a gente ia encontrar todo mundo, hoje. Está todo mundo aqui, cara!

Rômulo assentiu com a cabeça. Reparou que a maquiagem de um dos olhos dela estava borrada, estragando a simetria do bonito rosto. Fermino perguntou, também gritando:

— Você gosta dos Milenares?

— Nunca tinha ouvido falar até hoje — respondeu Rômulo. — São legais.

— Legais? — Fermino soltou uma gargalhada. — Roberta, ele acha os Milenares legais!

Ela riu também, constrangendo Rômulo ainda mais. Fermino continuou:

— Eu tenho todos os álbuns deles, desde que eles surgiram.

— Você tem o álbum cinco? — Silmara interrompeu. — Ninguém tem esse. Eu tenho.

— Claro que eu tenho. Mas eu queria mesmo o álbum cinco e meio. Foi um lançamento exclusivo para quem comprou o relógio da banda.

Ela esticou o braço, exibindo o dispositivo colorido que tinha no pulso, quase encostando-o no nariz de Roberta.

— Ah, vai se foder! Você tem?

— Ahã!

— E o álbum?

— É igual ao cinco, mas tem uma música que tem um arranjo diferente no final…

Rômulo não estava mais ouvindo. Queria sair logo dali. Interrompeu a disputa infantil:

— Com licença, eu vou procurar o bar.

— Hã? — perguntou Roberta.

— O bar! — Fez um sinal com as mãos, fingindo beber.

— Ei! Você tem que pegar um drinque que chama “Segredo do milênio”. É uma mistura exclusiva da banda. Eu experimentei e adorei.

— Não, não, pega esse aqui. — Anselmo ergueu uma pequena garrafa. — Esse aqui é o melhor drinque da noite, eu já experimentei todos. Chama “Fogo escarlate”, e vem nessa garrafa maneira.

— Ah, eu já tomei esse — disse Carla. — Uma vez, eu tomei tanto que acabei dormindo no terraço da boate.

— E eu? — emendou um rapaz cujo nome Rômulo não lembrava. — Uma vez, eu tomei esse aqui misturado com licor de cacau. Foi uma péssima ideia. Eu nem sentia o gosto do álcool. — Ele passou um braço por cima do pescoço de Rômulo. Seu hálito fedia a cerveja barata. Com a mão livre, esfregou a garrafa que segurava no nariz de Rômulo e continuou falando, alheio ao fato de que este tinha acabado de dizer que queria sair dali:

— Eu bebi tanto que acabei desmaiando, só fui acordar depois de tantas horas. — Ele começou a rir. — Aí… — A risada interrompia sua frase toda hora. — Depois disso, eu… Eu…

— Er… — Rômulo tentou interromper, afastando um pouco o rosto, mas Roberta começou a falar também.

— Ah, eu lembro, eu lembro! Foi aquele dia que eu inventei de usar a minha bota nova e machuquei meu pé, não foi? A bota era linda, mas era apertada demais.

— Não foi, esse dia foi outro.

— Não, foi sim, minha bota vermelha, lembra? Aquela que estava na promoção…

— PESSOAL! — Rômulo gritou e finalmente conseguiu chamar a atenção para si. — Vou ali no bar, e já volto!

— Tá, vai! Então, Fermino, nesse dia, eu comprei…

— Não, Roberta, eu…

Rômulo se afastou, abandonando as conversas, aliviado. Depois de andar alguns passos, ouviu um grito às suas costas:

— Rômulo! Ei, Rômulo?

“Ah, não! Que foi agora?”

Virou-se devagar, imaginando que eles tinham esquecido de mencionar alguma coisa muito importante — para eles, é claro —, mas deu de cara com Dédalo-seis.

— Que bom que veio, parceiro! — disse o robô, esticando seu sorriso impecável.

Rômulo não conseguiu retribuir o sorriso imediatamente, pois ficou chocado com o visual de Dédalo. Ao invés dos trajes finos em que o viu nos dias anteriores, ele usava roupas que mais pareciam saídas de um circo. Suas calças eram sociais, mas feitas de centenas de lantejoulas prateadas e azuis que brilhavam como se fossem diamantes. Para segurar as calças, vestia um suspensório gritantemente vermelho. Não usava camisa, deixando à mostra a pele lisa que cobria os músculos artificiais esculpidos de forma surpreendentemente detalhada pelos seus fabricantes. Usava um chapéu-coco também coberto de lantejoulas que combinavam com as calças. Em seu rosto, uma enorme estrela preta tinha sido pintada ao redor do olho direito.

— Pois é, eu vim… eu vim…

— Vi você conversando antes, com seus amigos, e não quis incomodar.

— Ah, sim, obrigado.

— Eles repetiam muito o pronome “eu”, não acha?

Rômulo ficou sem saber o que dizer. Dédalo estava ouvindo sua conversa? Não que fosse um segredo, mas ainda assim era estranho. E ele tinha razão em sua estranha e precisa observação.

— Suponho que sim.

— Estava indo ao bar, acertei? Não me esqueci da promessa. Vamos?

— Obrigado.

Enquanto caminhavam, Rômulo não parava de reparar no visual do robô. Ele parecia tão à vontade com suas roupas espalhafatosas como tinha parecido à vontade com seu traje social fino de antes. Em ambos os casos, sua presença dominava o ambiente. As pessoas ao redor também pareciam sentir o mesmo, pois olhavam para a dupla com visível admiração e até mesmo abriam espaço para eles, o que fez Rômulo agradecer profundamente.

— Reparei que você está intrigado com as minhas roupas. — Ele olhava de lado enquanto caminhava. — Imagino que tenha achado um tanto… diferente?

— Acertou de novo.

— Todo mundo se veste assim em uma festa. Olhe ao seu redor. O que vê?

— Pessoas dançando, bêbadas, pulando e se divertindo com a música.

— E você não consegue entender como elas estão se divertindo, correto?

— Com uma dose de álcool no sangue, um sujeito consegue achar alegria em qualquer lugar.

Dédalo-seis apenas sorriu e ficou quieto. Continuaram assim até chegar ao balcão do bar. Estava lotado, mas as pessoas abriram caminho assim que avistaram o robô reluzente se aproximando.

— Vega-treze! — gritou Dédalo. — Meu amigo quer uma dose de álcool no sangue. Dê-lhe o que tem de melhor aí.

— Mas é claro, Dédalo, com prazer. — O bartender robótico se virou para Rômulo e perguntou: — Do que gosta, amigo de Dédalo-seis?

— Uísque, se tiver.

— E se não tiver? Pode ser conhaque?

— Não tem uísque?

Vega riu e se afastou para pegar uma garrafa com líquido dourado. Pegou um copo e derramou uma dose generosa de uísque. Enquanto preparava o drinque, olhava para Rômulo e sorria misteriosamente. Seus cabelos eram brancos e lisos, e se estendiam até os ombros. O rosto tinha formato triangular, com o queixo se destacando embaixo da boca e nariz finos. Seus olhos eram estranhamente brancos, e brilhavam nas luzes artificiais. Era difícil olhar para eles sem se encantar.

— Aqui está. Uísque sem gelo, como você gosta.

— Como sabe que…

— Obrigado, Vega — Dédalo interrompeu. — Pronto, Rômulo, agora que você vai colocar álcool no seu sangue, eu pergunto: vai se divertir?

— Uma coisa de cada vez, meu caro. — Rômulo levou o líquido aos lábios e se deliciou com a riqueza de aroma e sabores da bebida. Ergueu o copo para o bartender, que acenou em reconhecimento. Bebeu outro gole e sentiu a familiar queimação na boca e garganta.

— Se quer realmente se divertir, sugiro algo a mais.

— O quê?

Dédalo abriu os braços e estufou o peito, exibindo seu corpo para o humano. Rômulo respondeu, sem graça:

— Bem, amigo, me desculpe, mas não é muito a minha praia, sabe?

— Não gosta da companhia de um robô?

— Bem, confesso que nunca interagi muito com robôs, antes. E você é agradável de se conversar, mas…

— Já entendi, desculpe-me se o constrangi. Prefere do sexo feminino, é claro. Entendi mal esse seu jeito carrancudo e caladão, parceiro. Não diga mais nada.

O robô se afastou, deixando Rômulo atônito para trás. Em poucos minutos, voltou acompanhado de duas mulheres, uma de cada lado.

— Essas são Arista-dezenove e Nix-quatro. Este, meninas, é Rômulo, meu amigo.

— Oi, Rômulo, muito prazer. — A robô chamada Arista-dezenove aproximou seu corpo do dele e o beijou na bochecha, deixando um resquício de umidade no seu rosto e um perfume doce em seu nariz. Ela usava um vestido longo que parecia ser feito de escamas de peixe metálicas. O vestido era justíssimo e ressaltava as curvas perfeitas de seus quadris e seios. Seu rosto redondo tinha uma pele impecável, alva e quase brilhante. Os olhos grandes e expressivos fitavam Rômulo com interesse óbvio por trás do tom castanho-avermelhado incomum de suas írises. Um longo e ondulado cabelo em tons de cobre caía sobre seu rosto e ombros.

Antes que ela se afastasse muito, Nix-quatro repetiu o gesto na outra bochecha. Seu perfume era menos doce, com notas apimentadas chamando a atenção. Ela usava uma combinação de saia e blusa curtas e justas, sobre curvas tão perfeitas quanto as de sua companheira. Seus cabelos pretos encaracolados faziam um grande volume sobre a cabeça. A pele amarronzada com brilhos dourados era uma tela perfeita sobre a qual os fabricantes tinham pintado os olhos, boca e nariz volumosos. Um batom em tom de pêssego tornava quase impossível parar de olhar para sua boca.

Rômulo sorriu para as duas e respondeu, com uma sinceridade que ia além das boas maneiras:

— O prazer é meu.

— Rômulo — Dédalo o puxou de lado —, esqueça os humanos por um momento. Aqui é um lugar para se divertir com robôs. Não deixe de apreciar a companhia de Arista e Nix. Você vai descobrir que somos muito melhores do que uma dose de álcool no sangue.

Ele deu uma piscadela e se afastou, dançando. Enquanto sumia na multidão, dezenas de mãos tentavam agarrá-lo, mas ele se desviava com habilidade. Alguns instantes depois, tomou sua decisão. Puxou uma mulher para junto de si e a levou embora, ignorando o fato de que ela gritava histericamente por ter sido escolhida.

— Rômulo, vamos dançar? — Arista-dezenove perguntou, com um olhar de súplica.

— Sim, vamos? — Nix-quatro acrescentou, colocando-se ao lado da companheira.

— Eu não sei dançar direito — Rômulo disse, consciente de que se arrependeria do gesto tímido.

Elas se entreolharam e sorriram sem dizer nada. Cada uma delas agarrou um braço de Rômulo, que imediatamente sentiu o calor de seus corpos artificiais sendo transmitido através da pele nua de seus braços. Gentilmente, elas o conduziram para longe do bar.

Assim como aconteceu com Dédalo, as pessoas pareciam abrir espaço para o trio. Era estranho, quase como se fosse uma regra implícita de que os robôs tinham prioridade no deslocamento. Eles foram andando sem dificuldade até chegar a uma área mais reservada: um círculo elevado delimitado por uma pequena mureta de pedra, onde a densidade de pessoas era menor.

Assim que entrou, Rômulo reparou que metade dos presentes não eram pessoas, e sim robôs. Também percebeu que os humanos ali pareciam muito mais à vontade, principalmente por causa da forma como eram tratados pelos seres artificiais. Estes os olhavam com admiração, sorrindo como se estivessem na presença de alguma divindade. Dançavam de maneira precisa e coreografada, o que fazia com que os movimentos mais orgânicos e caóticos dos humanos parecessem mais graciosos do que realmente eram. E sorriam o tempo todo enquanto conversavam animadamente com as pessoas de carne e osso.

— Aqui está bem melhor — disse Nix. — Dá pra gente se movimentar, né?

— Sim — respondeu Rômulo.

— E dá pra ouvir melhor a música, também — emendou Arista.

— Sim.

Elas ficaram dançando em silêncio, repetindo os mesmos belos movimentos dos colegas ao seu redor. Rômulo continuou mais bebendo do que dançando, tentando se acostumar com a situação estranha.

— Ele ainda está meio tímido, Arista.

— Pois é, Nix, vamos fazer alguma coisa?

— Vamos.

Elas conversavam como se ele não estivesse ali. Antes que Rômulo tivesse tempo para dizer alguma coisa, elas se aproximaram dele e começaram a envolvê-lo com suas mãos e braços, tocando em todo seu corpo sem pudor. Sentiu o hálito quente de uma delas em seu ouvido, ao mesmo tempo em que a outra começou a beijá-lo na boca. Não sabia dizer qual delas estava em qual posição.

Imediatamente, Rômulo se viu tomado por uma mistura de emoções. Primeiro veio a lembrança: a última pessoa que beijou foi sua esposa, ou melhor, ex-esposa, na época em que ainda se beijavam, é claro. Ele a amou muito, e a lembrança veio vívida e doce, trazendo de volta as mesmas sensações de anos atrás. Quase podia sentir os lábios de Janaína tocando os seus, sedentos e movidos por um desejo que não mais existia.

Isso só o fez pensar em uma coisa: os lábios que o beijavam naquele momento em nada se pareciam com os da lembrança. Eram igualmente quentes, macios e sedosos. E a sua dona sabia usá-los muito bem. Contudo, eram muito diferentes. Não sabia dizer exatamente como, mas parecia ter alguma coisa faltando…

— O que foi?

A robô percebeu a hesitação de Rômulo e se afastou um pouco. Ele olhou para aquele rosto perfeitamente desenhado, com seus lábios carnudos entreabertos em dúvida. Ouviu a outra voz em seu ouvido repetindo a mesma pergunta:

— O que foi?

As duas se afastaram ao mesmo tempo e o encararam de frente. Nix – ou Arista, não sabia mais quem era quem – disse:

— Nunca beijou uma robô, antes?

— Não. Me desculpem, eu…

— Não, não peça desculpas, por favor. A culpa é nossa, não devíamos ter feito isso sem sua permissão.

— Desculpe-nos, Rômulo — disse a outra. — Nix foi com muita sede ao pote, não foi, Nix? — Essa era Arista.

— É que é difícil para a gente se controlar, sabe? — Nix sorriu como uma criança arrependida. — Para nós, humanos são…

Elas ficaram um tempo sem falar nada, apenas sorrindo. Arista completou:

— Deliciosos!

E elas riram. Rômulo percebeu o que tinha acontecido.

— Vocês são robôs sexuais, não são?

— O quê?

— Vocês foram feitas para sexo, para seduzir humanos, para ganhar dinheiro para o seu dono. Foram projetadas para gostar de humanos. Programadas para gostar de… — as próximas palavras deixaram um gosto ruim na boca — qualquer humano.

Rômulo achou que as tinha ofendido, pois elas abriram a boca simultaneamente, com um olhar de espanto. Arista disse:

— De onde você tirou uma bobagem dessas?

— Nós trabalhamos para a banda, somos dançarinas — explicou Nix.

— Me poupem dessa conversa fiada. Por que me trouxeram para cá, para esse… camarote da pegação? — Apontou para os lados, onde só havia humanos e robôs se agarrando.

— Bem, eu não posso falar por ela — disse Arista, passando a mão no braço de Nix —, mas quando Dédalo nos mostrou você e disse que estava querendo se divertir, eu… gostei.

— Eu também! — emendou Nix.

— Dédalo? Vão me dizer que ele não me trouxe aqui por um motivo?

— Sim, ele é promotor, é o trabalho dele…

— Promotor? Do quê? De sexo com robôs? Acham que eu não reparei que todo mundo nesse camarote está sentado em dinheiro? Quanto custa, aliás? Duas horas com vocês? Fiquei curioso, agora.

Dessa vez, Rômulo teve certeza de que tinha ofendido as garotas, mas elas não reagiram mal. Pelo contrário, trocaram um olhar que parecia de pena. Nix falou:

— Rômulo, você nunca passou muito tempo com robôs, né?

Ele foi pego de surpresa pela reação amigável. Respondeu, sem graça:

— É, bem, não. Não tem muitos robôs aqui, esse bairro é muito pobre, ninguém tem dinheiro para…

— E lá vem você falar de dinheiro de novo! — Arista fingiu estar brava, mas logo abriu um sorriso.

— Me desculpem, mas robôs são caríssimos, e isso é um fato!

— É? — Nix, que estava de frente para Rômulo, deu dois passos e se apoiou na pequena mureta, ficando ao seu lado. Enquanto olhava para o grupo à frente, perguntou: — Arista, quanto você acha que aquele ali vale?

Sorrindo, Arista repetiu o gesto da amiga e se apoiou na mesma mureta, do outro lado de Rômulo.

— Qual? Aquele ali, sem camisa?

— É.

— Não sei… Rômulo, o que você acha?

— Aquele ali é um humano — ele respondeu, sem muita convicção. — Não é?

— Sim, é humano. Quanto acha que ele vale? Três bilhões?

— Acho que não dá pra fazer um com três bilhões — interrompeu Nix. Parecia se divertir com o papo. — Cinco?

— Também acho que não. Talvez dez bilhões? — Arista se virou e disse: — Rômulo, com dez bilhões você consegue fazer um humano pra gente?

— Uuu, eu também quero — emendou a outra. — Faz dois? A gente paga à vista.

Rômulo não soube o que dizer. Ali estava ele, entre duas mulheres lindíssimas, em uma festa barulhenta, em um camarote cheio de pessoas e robôs dançando e se beijando, tendo uma conversa surreal sobre o valor de humanos e de robôs.

— Tá, acho que já entendi.

Elas permaneceram sorrindo ao lado dele, divertindo-se com sua confusão. Depois de um tempo de contemplação, Nix apoiou a cabeça no ombro dele e disse, suspirando:

— Você se machucou, não foi?

— O que foi que disse?

— Eu senti. Quando te beijei. Você parecia estar gostando, no começo, mas depois ficou todo retraído. Só pode ser um machucado. Foi um corte nos lábios, ou algo assim?

Rômulo riu. Por um momento, achou que ela tinha lido suas lembranças enquanto estava com os lábios colados nos dele. Respondeu:

— É, algo assim.

Nesse momento, sentiu Arista encostando a cabeça em seu outro ombro. Ficaram assim por um instante, até que Nix perguntou:

— Por que vocês, humanos, vivem dizendo que a gente tem dono, hein? Nós somos tão livres quanto vocês.

— São?

— Tanto quanto vocês, humanos. O que você faz?

— Eu? — Não quis revelar de imediato sua profissão. — Sou um prestador de serviços.

— E você gosta desses serviços?

Podia dizer que sim, que gostava de escavar informações, de descobrir mentiras, de desmascarar traidores. Mas não conseguiu mentir:

— Nem sempre.

— Mas você não pode parar, não é? Precisa do dinheiro, não é?

— É.

— Pois eu, senhor Rômulo, adoro dançar. — Arista se desencostou da mureta e retomou os movimentos sinuosos à sua frente.

— Eu também. — Nix a seguiu, começando a dançar também. — E eu gosto de beijar um humano de vez em quando, ainda mais quando acho bonito.

— Acho que somos mais livres que você. — Elas sorriam alegremente enquanto faziam o que gostavam de fazer.

Rômulo não pôde deixar de abrir um sorriso. Aquelas figuras eram… não sabia explicar… especiais. Nunca tinha ficado tanto tempo com robôs antes. Estava gostando, e isso não tinha nada a ver com a beleza estonteante das duas.

Nesse momento, um chapéu-coco começou a brilhar a poucos metros dali. Embaixo dele, o olho estrelado de Dédalo-seis avistou o trio e se aproximou. Agarrou as duas pelas cinturas e se juntou à dança. Disse:

— Ainda não acabou seu conhaque?

Rômulo olhou para o copo em sua mão e percebeu que havia mais da metade da bebida dentro. Espantou-se por ter durado tanto tempo, ainda mais por se tratar de uma bebida tão saborosa.

— É uísque — respondeu.

Dédalo sorriu e estendeu um dos braços para Rômulo, chamando-o para ficar junto dos três.

“Ora, que se dane!”

Rômulo virou o restante do uísque, sentindo mais uma vez a queimação familiar do álcool, e se juntou aos três robôs na dança frenética embalada pela música dos Milenares.

Durante uma hora, Rômulo sentiu uma leveza que há muito não sentia. Os robôs o levaram para dançar em praticamente todos os lugares do galpão. Nix e Arista se revezavam dançando com ele e Dédalo. Em nenhum momento se sentiu desengonçado ou desajeitado como sempre se sentia quando tentava se soltar em uma dança. A música ajudava, pois era repetitiva e simples. Bastava seguir o ritmo e pronto, estava bailando como um artista.

Foi apresentado a inúmeros robôs também. Tentou decorar seus nomes, mas a grande quantidade de combinações de palavras e números cardinais tornou a tarefa quase impossível, ainda mais sob o efeito das bebidas que se acumulavam. Dédalo o conduziu até o bar mais uma dezena de vezes, e nessas ocasiões ele teve que pagar pela própria bebida, como o robô foi obrigado a informar:

— Nem pensar! Meu patrão me mata se eu ficar dando drinques de graça para a mesma pessoa a noite toda!

Enquanto bebia a enésima dose de uísque, sorria sem parar para seus novos amigos. Nix disse:

— Pare de beber e venha aqui!

Ele engoliu o resto do que achava ser sua última dose da noite e voltou a dançar.

***

— Que tipo de serviço? — Nix insistia.

— Não vou falar.

— Eu vou adivinhar — disse Dédalo. — Você é corretor de imóveis?

— Vocês nunca vão adivinhar.

— Então nos dê uma dica! — Arista implorou. — Trabalha com vendas?

— Não.

— Envolve pessoas?

— Sim.

— Então é…

Rômulo estava meio tonto. Tinha parado de beber, mas o efeito ainda se fazia presente. Estavam encostados na mesma mureta de antes, no camarote. Nix e Arista se apoiavam nos ombros de Dédalo, e os três se revezavam fazendo perguntas para tentar adivinhar a profissão dele.

— Seguros. Trabalha com venda de seguros.

— Não.

Sentia que estava ali fazia muito tempo, mas a banda tinha acabado de anunciar uma pausa, o que significava que ainda estava na metade do show. Passando os olhos pela multidão, Rômulo reconheceu Fermino, Roberta e os demais colegas de trabalho. Pelo jeito, eles também tinham encontrado robôs para se divertir. Dançavam juntos ao som da música eletrônica que tocava naquele intervalo, sem se importar mais uns com os outros, apenas com seus pares robóticos.

— Já sei! Você é policial!

Rômulo ergueu as sobrancelhas.

— Acertei? — perguntou Arista, animada.

Ele não respondeu. Tinham chegado perto, mas não foi esse o motivo da sua reação abrupta. Foi outra coisa.

Rômulo estivera apreciando as pessoas na multidão, reparando em como os robôs e humanos interagiam. Os robôs, como tinha aprendido naquela noite, eram extremamente agradáveis, pois sabiam como agradar. Seus gestos, olhares e conversas pareciam sistematicamente calculados para proporcionar aos humanos a melhor experiência de interação possível. E eram bonitos. Uma beleza idealizada, com traços de perfeição e qualidades genéricas que eram prazerosas aos olhos. Depois de contemplar um robô por alguns minutos, era impossível olhar para um humano e não perceber os milhares de defeitos, imperfeições, rugas, sorrisos idiotas, palavras falsas e olhares estúpidos que trocavam entre si. A cada minuto que passava, Rômulo sentia que nunca mais conseguiria ver um ser humano na frente sem sentir repulsa.

Até que ele a viu.

Ela estava perto dali, mas embaixo, na pista. Usava uma saia preta, justa, e botas de cano longo da mesma cor, que iam até as coxas. Cobrindo os seios e quase nada a mais, vestia uma blusa curta, prateada, que cintilava na luz escura do ambiente, piscando como se estivesse coberta de estrelas.

Seu corpo acompanhava a música de maneira tão graciosa como faziam os robôs, mas vez ou outra tinha um pequeno atraso, compensado nos compassos seguintes de um jeito quase imperceptível. Os quadris se curvavam para a esquerda e direita em contraponto com os ombros e cabeça, dando um gingado ímpar aos seus movimentos.

Os robôs não se mexiam daquele jeito.

Seus quadris eram largos e a cintura, fina. Sua barriga não era musculosa, chapada. Tinha curvas naturais e um certo excesso de gordura que em nada diminuíam sua beleza. Pelo contrário, tornavam a visão mais real. Mais… familiar.

Seus cabelos negros, levemente ondulados, chicoteavam no rosto enquanto balançava a cabeça de um lado para o outro ao ritmo da música. Entre um movimento e outro, congelado pelos flashes das luzes estroboscópicas, seu rosto aparecia brevemente entre as mechas escuras, revelando uma volumosa boca vermelha. Seus olhos fechados diziam que ela estava em uma espécie de transe, sentindo a música fluindo em suas veias. Não podia afirmar com certeza, mas ela parecia ter traços orientais em suas feições.

— E então?

— O quê? — Rômulo retornou ao local onde estava antes.

— É ou não é um policial? — Nix o encarava.

— Quase isso. Sou um investigador particular.

— Não brinca? — Arista levou as mãos à boca.

— É mesmo um investigador? — Dédalo deu um passo à frente, parecendo muito interessado.

— Sim, por que o interesse?

Os três robôs se entreolharam. Nix disse:

— Deve saber do assassinato, então?

Rômulo encarou os três pares de olhos assustados à sua frente. Pareciam criancinhas prestes a ouvir uma história de terror. Sentiu pena.

— Não sei muita coisa. Só sei que assassinaram um robô na Cidade dos Ingleses.

— E o que mais sabe, Rômulo? Por favor, nos diga se souber — implorou Arista.

— Não sei de nada, sério. Só sei que as pessoas estão impressionadas. Ninguém consegue explicar o motivo pelo qual alguém mataria um robô.

Depois daquela noite, Rômulo tendia a concordar. Como alguém poderia atentar contra seres tão interessantes como os três à sua frente?

— Ah, mas isso a gente sabe. É óbvio, não? — disse Nix.

— Vocês sabem o motivo? — perguntou Rômulo.

— A culpa foi do robô, com certeza — disse Dédalo.

— Sim, ele deve ter ficado doente — acrescentou Nix. — Teve um problema mental, ou coisa parecida, e fez alguma coisa muito errada para os humanos.

— Mas isso não dá o direito de um humano cometer assassinato! — protestou Rômulo, sem deixar de notar o fato de que ela tinha usado a palavra “doente” ao invés de “com defeito”.

— Você não conhece mesmo os robôs, não é? — disse Nix — Se soubesse como a gente pensa…

— Eu não entendo. Mataram um de vocês, e mesmo assim ficam do lado do assassino?

— Não deve ter sido fácil para o humano, pobrezinho. Mas com certeza o robô foi o culpado. Um humano nunca mataria um robô em estado normal.

— A não ser… — refletiu Dédalo — que o assassino seja um robô!

— Bobagem — disse Arista. — Robôs não são agressivos. Humanos, sim, mas robôs, não.

— E se ele estivesse doente? Pode ser que…

Rômulo estava ouvindo, mas seus olhos não conseguiam desviar da mulher dançando na sua frente. Ela estava sozinha, aparentemente. Havia pessoas e robôs ao seu lado, mas ela não interagia. Apenas dançava, sozinha.

— Ei, Rômulo? Rômulo?

— Hein? Me desculpem, eu me distraí.

Percebendo o que estava acontecendo, Nix apoiou seu braço no ombro de Rômulo e encostou sua bochecha na dele, de modo a copiar seu ângulo de visão. Disse:

— Ah, sim. Estou vendo o que foi que o distraiu.

— O que foi, Nix? — perguntou Arista.

— Acho que Rômulo está cansado da nossa companhia. Ele está a fim de um pouco de calor humano.

— O quê? — Rômulo protestou. — Nada disso, vocês são ótimos, a melhor companhia que tive em muito tempo, de verdade.

— Ela está olhando para você, está vendo? — Arista cochichou em seu outro ouvido, assustando-o com a aproximação repentina.

Rômulo então percebeu. A mulher que dançava estava de fato com os olhos apontados para ele. Não era fácil ver, pois as luzes estroboscópicas davam pouca chance à visão. Mas não havia dúvidas de que ela o encarava. E, definitivamente, tinha traços orientais. Era de ascendência japonesa. Ficou envergonhado por demorar tanto para perceber, pois esteve mais ocupado admirando o chacoalhar de seus quadris e a beleza de suas coxas do que tentando ver seu rosto.

— Não diga mais nada — disse Dédalo, juntando as palmas das mãos, animado.

O robô desceu do camarote e foi até onde a mulher estava. Ela o acompanhou com os olhos enquanto se aproximava. Parou um pouco de dançar para conversar com ele. Trocaram algumas palavras. Ele sorriu. Ela sorriu também. Mais algumas palavras foram ditas. Ela assentiu com a cabeça e segurou no braço do robô. Eles se viraram e começaram a caminhar de volta. Subiram até o camarote, parando em frente a Rômulo, que ainda tinha Nix e Arista penduradas uma de cada lado. Dédalo disse:

— Pessoal, essa é Noemi.

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